Mostrando postagens com marcador Hagiografia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Hagiografia. Mostrar todas as postagens

26 de março de 2025

TRECHOS DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (3ª PARTE)

Livro; Edwiges - A santa libertária; Toninho Vaz; Evangelhos
Uma Tragédia Familiar

Disputas violentas entre parentes – incluindo pais e filhos – beiravam a banalidade na Idade Média e eram decorrência de uma desesperada luta pela posse da terra, única forma possível de poder para um senhor feudal. Atos de crueldade promovidos por príncipes poloneses resultaram em inquérito instaurado pelo papa Gregório IX, que acusava Henrique de injúria e danos morais ao bispo de Gnensen e outras autoridades eclesiásticas. Essas questões ficaram conhecidas na história como Querela das Investiduras, a maior disputa entre a Igreja e o Estado, que regulava o papel e a importância do príncipe e do bispo no comando das ações. A questão começara no século XI e atravessaria o século XIII, quando os Estados se consolidavam pelas forças militares e ousadia dos príncipes.

No caso de Henrique, ele não apenas desdenhou as admoestações do papado como desautorizou seus procuradores a abrirem qualquer processo de defesa – levando as autoridades de Roma a pedirem sua excomunhão, que seria finalmente consumada pela retumbante decisão papal. Sabe-se que Edwiges sofreu muito nesse período, pois considerava uma tragédia a exclusão de Henrique do Reino dos Céus.

Parece não haver dúvidas de que Henrique era um homem valente e determinado, que não fugia à luta quando necessário. Em 1227, durante os conflitos deflagrados pela disputa familiar entre Otto, da Alemanha, e seu filho Wladislau, o nobre Henrique – que tinha uma aliança militar com o imperador – acabou gravemente ferido, sendo salvo das lanças por um soldado de nome Peregrino de Weszemberg, que acabou morrendo pela espada inimiga. Otto foi derrotado e expulso de suas terras pelo próprio filho. Mesmo ferido, Henrique conseguiu escapar e dias depois estava curado.

Durante uma disputa entre príncipes regionais – poloneses versus pomeranos –, Henrique I acabou prisioneiro do filho Conrado. Isso acontecia porque os herdeiros, ao adquirir terras e autonomia, ganhavam também uma dose extra de responsabilidade, ambição e ousadia, fazendo com que muitas vezes os laços familiares fossem superados por interesses políticos. Assim acontecia com Conrado, que num passado recente tinha sido o favorito do pai e, agora, tornara-se seu algoz.

Determinado em aumentar seu poderio na região. Conrado decide invadir uma missa e fazer de seu pai Henrique prisioneiro. Seu destino estava marcado: o filho decide mandar o pai para a região da Mazóvia. Foi Edwiges quem corajosamente viajou horas numa carruagem para apresentar-se diante do filho em defesa do marido. Dizem os relatos que Conrado, que já tinha recebido pedidos idênticos de outras autoridades influentes, capitulou diante da própria mãe. Como um anjo, ela o ameaça com a justiça divina – o que teria feito Conrado libertar o pai imediatamente. Seu poder de argumentação recebia em certos momentos o reforço de um enérgico tom messiânico, quase divino. Nos Acta Sanctorum, esse momento ficou assim registrado:

Quando Edwiges apresentou-se diante do filho, que inspirava ferocidade, este se transformou completamente, assumindo um aspecto lamentável, de alguém pilhado em flagrante, cabisbaixo, apavorado mesmo, ouvindo a mãe e prometendo humildemente fazer tudo o que ela mandasse. p. 52

O desfecho deste episódio revela que, com sua atitude determinada, Edwiges conseguiu não apenas a libertação imediata do marido, mas a reconciliação dos príncipes. Os registros dos Acta revelam que:

Henrique, o Pai, acabou deixando para Conrado a monarquia da Polônia e a tutela dos filhos do irmão Boleslau. Todos esses tratados foram firmados por juramento solene. Edwiges conseguia restabelecer a paz entre os príncipes.

[...].


A purificação

[...].

A fama da austeridade de Edwiges ultrapassava as paredes do mosteiro, criando um uma verdadeira onda (comentários) sobre seu retiro e modo de vida, onde o jejum era uma forma importante de mortificar e purificar o corpo e o espírito, como registram os Acta:

Observava o jejum todos os dias do ano, com exceção dos domingos e principais dias festivos, quando chegava a tomar duas refeições. Durante quarenta anos se absteve do consumo de carne e gorduras. Uma vez, seu irmão dom Egberto, bispo de Brambemberg, com quem ela mantinha boas relações, censurou-a por causa da severidade do regime. Dizia que ela não podia sacrificar sua vida a tal ponto. Ela, entretanto, se recusou a atender às ponderações do irmão dizendo que, com a ajuda de Deus, pretendia levar a cabo aquelas práticas de purificação que adotara exatamente por amor a Ele.

Certa vez, quando estava doente e fraca, Edwiges foi censurada pelo marido por só beber água morna nas refeições, recusando o vinho, que já nessa época era considerado saudável por suas propriedades medicinais. Contam os Acta:

Henrique ficou indignado, primeiro porque julgava aquele radicalismo realmente exagerado; e, segundo, porque a mentalidade da época atribuía à falta de vinho o frequente mal-estar que acometia a maioria das mulheres. Dizem os relatos que certo dia Henrique I chegou de surpresa à mesa onde Edwiges estava tomando a refeição, pegou a bilha que estava à frente dela (com água) e levou-a à boca. Afirmam as testemunhas que Henrique provou o esplêndido sabor de um vinho fino, reagindo com severidade ao delator, um servo do mosteiro de nome Chevalislau, que jurava ter colocado água na bilha, como fazia todos os dias. Era mais um milagre de Edwiges, agora transformando água em vinho. No final, ela ainda consolou o delator, que ajoelhado a seus pés pedia perdão e jurava inocência: “Minha Santa Edwiges, eu tinha a melhor das intenções, pois temia pela sua saúde...” Este episódio revela o prodígio de Edwiges, que assim fortalecia sua devoção.

Do ponto de vista da solidariedade, a devoção de Edwiges, aliada à sua riqueza pessoal, permitiram que durante duas décadas ela pudesse construir uma grandiosa obra social, erguendo e colocando para funcionar vários hospitais e mosteiros. Este capítulo vai tratar apenas das obras inteiramente executadas pelo casal, deixando de lado a recuperação e a restauração de hospitais e igrejas menores – que somam mais de uma dezena. As ações assistenciais de Edwiges visavam ao conforto do corpo e da alma dos necessitados. p. 55

[...], o primeiro mosteiro construído por Henrique e Edwiges, depois de Trebnitz, seria a Casa Saganense (na aldeia de Sagano), em 1207, onde antes existia a abadia de Santa Maria de Arena. [...]. Em seguida, veio o mosteiro de Camencz (ou Kamenza), cujas obras começaram em 1207 e terminaram em 1216. [...]. No decorrer dos anos, muitos monges de diferentes ordens passaram por ali: os Cônegos Regulares saíram de Camencz em 1222 e foram substituídos pelos Cistercienses, que ali permanecem até os dias de hoje.

A quarta obra de importância construída na Silésia pelo casal Henrique e Edwiges seria o hospital e Albergue dos Estrangeiros, em Vlatislávia (como os poloneses chamavam Breslau). Eles atendiam a um pedido de ajuda de dom Witoslau, abade do mosteiro dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho. Foi o próprio Henrique, o Barbado, quem lançou a pedra fundamental e financiou a construção do hospital, que tinha capacidade para atender sessenta pessoas. Toda a administração humana, digamos, do hospital era de responsabilidade de Edwiges, que orientava enfermeiros e serventes, tratando pessoalmente dos doentes como na casa de Lázaro, ela dizia. [...]. Em seguida, fazendo uma conexão com o que acontecia em Assis, na Itália, Edwiges planejou e executou a construção do mosteiro de Goldberg (monte áureo), que a seu convite seria administrado pelos frades menores ou franciscanos. O mosteiro nascia apoiado financeiramente pela Fundação do Monte Áureo, que seria inaugurado entre 1219 e 1220. [...]:

A divina Edwiges consagrou esse lugar aos estudos da doutrina e da religião antes dos anos 300. Com grandes gastos, mandou buscar frades franciscanos em Assis, uma cidade na região da Úmbria, na Itália, onde um homem religioso chamado Francisco reunira um pequeno grupo de pobres. Estes frades, também conhecidos como mendicantes, foram instalados primeiro na aldeia de Monte Áureo, onde foi criada uma escola para propagar o Evangelho na língua local.

[...]

Outras iniciativas de Edwiges, incluídas na categoria “obras assistenciais”, se seguiram com a construção do convento Henricoviense, que ficou pronto em 1227, e seria administrado pelos monges Cistercienses. Essa obra vinha anexada ao Instituto Eclesiástico Henricoviense, uma forma jurídica criada para captar recursos oficiais. [...]. (p. 58). A sétima e última obra de Edwiges, a construção do mosteiro de Boleslávia (antiga Bunzlau), em 1234, administrado pelos Monges Pregadores, consolidava uma das maiores iniciativas sociais da Idade Média. Pouco depois, esse mosteiro seria atacado, destruído e os monges mortos, inaugurando um período de fúria e violência que devastaria grande parte do território europeu. Eram os mongóis arrombando os portões dos castelos e abadias.

 

Uma vida exemplar

Ano de 1238. Apesar de longo tempo passado em frentes de batalha, Henrique I, o Barbado, iria morrer de doença e não de valentia, como era de se supor. Um pouco antes, Edwiges havia conseguido (com a ajuda dos filhos religiosos) uma absolvição papal para o marido, alegando que sua obra de caridade deveria neutralizar os motivos da excomunhão. Era, como se dizia no direito canônico, uma “questão rescindível”, que permitiria a Henrique recorrer da decisão. E assim foi feito. Agora, quando estava na região da Crosna, Henrique fora acometido de um mal súbito – uma doença não identificada, talvez infecção seguida de febre – e faleceu, longe de casa. Quando Edwiges chegou, Henrique já estava morto, cercado de servos de uma enfermaria que se lamuriavam diante do cadáver do patrono [3]. “Senhora, até o último instante seu esposo continuou chamando pelo seu nome”.

Por iniciativa de Edwiges, o marido seria também sepultado no mosteiro de Trebnitz, ao lado do filho Conrado. Trebnitz era, sem dúvida, o mais rico e bonito entre todos os mosteiros que havia na Silésia – e não eram poucos. Em seu túmulo está esculpido o epitáfio:

Tento chorar aqui, oh, duque Henrique, honra da Silésia. Aqui jaz ele, como um alicerce deste imenso fundamento (o mosteiro), pleno de virtudes: asilo dos necessitados, escola de costumes, castigo dos culpados. Reza, sejas tu quem fores, tu que daqui a pouco tiveres a felicidade de encontrar este lugar bom para o descanso, reza!

A morte do marido foi determinante pra Edwiges radicalizar uma postura de devoção ao espírito, elevando suas virtudes aos patamares clássicos da santidade. O filho Henrique II, o favorito de Edwiges, seria agora o herdeiro político do pai. As exéquias pela morte de Henrique I (uma mistura de homem religioso e senhor feudal) motivaram testemunhos eloquentes das freiras de Trebnitz, segundo Acta:

Enquanto todas choravam inconsoladas pela perda do excepcional protetor e patrono [4], como era visto o fundador de Trebnitz, Edwiges, sem derramar uma lágrima, se apresentou ante as irmãs censurando-as pela fraqueza de coração. Dirigia-lhes palavras de conforto para amenizar a tristeza. Não que ela nada sentisse pela morte do marido – que em vida tanto amara –, mas porque sempre se curvava diante da vontade divina. Ela também avaliava que, próxima de outras monjas, deveria ser um exemplo de constância e paciência. p. 60

Apesar disso, ela nunca aceitou oficialmente o título de religiosa ou monja – com reconhecimento pelo bispo –, preferindo trabalhar na condição de leiga. Argumentava que o voto de pobreza iria impedi-la de manter o patrimônio e, consequentemente, de continuar ajudando os pobres e necessitados. Ela nada queria para si, mas sabia muito bem como administrar seu patrimônio.  


A vida no Mosteiro

Houve um momento na vida de Edwiges em que toda a sua atenção estava voltada aos pobres e necessitados. Sua fama como beata milagrosa atraia a curiosidade de peregrinos que passavam pela Silésia – quase sempre a caminho de santuários franceses e espanhóis. Santiago de Compostela, na região da Galícia, era considerado um lugar místico para os católicos romanos, desde que no século IX anunciou-se a descoberta dos ossos do apóstolo São Tiago – James em inglês e Santiago em espanhol – naquelas plagas. A romaria de fiéis seguindo a estrela-guia passou a ser contínua e sistemática, até tornar-se atração turística [5]. Ao longo do sinuoso trajeto pelo território europeu, infestado de tribos nômades e selvagens, os peregrinos podiam contar, eventualmente, com a proteção dos Cavaleiros Templários.

O papa, entre 1227 e 1241, era Gregório IX, criador do Tribunal Eclesiástico da Inquisição, instituição que prendia, julgava e condenava os hereges. Foi Gregório quem proclamou santos Francisco de Assis, Domingos de Gusmão (Ordem dos Dominicanos), todos contemporâneos de Edwiges e mendicantes. [...]. O papa Gregório também se notabilizou pela luta travada durante anos contra a arrogância do imperador Frederico II e seus explícitos interesses pecuniários. p. 66. [...]. Fora Gregório também quem, alguns anos antes, acusara Henrique I, o Barbado, de violar as imunidades eclesiásticas em seu ducado, perseguindo e taxando as terras da Igreja. [...].

___________________

3. Patrono era o provedor do mosteiro ou abadia. Era o chefe – caput mansi –, como se refere um auto dos arquivos clunisianos.

4. O historiador Steven Runciman, em A História das Cruzadas, registra: “Depois de conquistar Kiev, na Ucrânia, parte do exército mongol seguiu para a Polônia, ao norte, pilhando Sandomir e Cracóvia. Houve uma batalha em Wahlsdadt, quando as tropas do duque Henrique seriam desbaratadas. Após devastar a Silésia, os mongóis foram para o sul, atravessando a Morávia até a Hungria”.

5. A passagem bíblica do Evangelho Segundo Marcos destaca aquela que seria a primeira peregrinação no mundo cristão: a dos três Reis Magos seguindo a estrela cadente até o recém-nascido menino Jesus. Assim que Baltasar, Melquior e Gaspar chegaram à manjedoura, em Jerusalém, no dia 6 de janeiro do primeiro ano da era cristã, ofereceram ao recém-nascido ouro, incenso e mirra.  


22 de novembro de 2024

TRECHOS DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (2ª PARTE)

 

livros; Santa Edwiges; Evangelho; parte 2
As virtudes de Edwiges

No primeiro dia de sol, ajudado pela irmã Adelaide, Henrique levou a mulher para conhecer os povoados vizinhos de Glogan e Loewenberg, onde ela encontraria, entre as ostentações dos nobres, uma quantidade assustadora de miseráveis perambulando pelas proximidades dos castelos. Todos famintos e debilitados.

Assim que aprendeu a se comunicar em polonês – começando pelas traduções das orações do Padre-nosso e da Ave-maria –, Edwiges costumava sair do castelo de Breslau com uma pequena comitiva (a cunhada Adelaide, que tinha a mesma idade, estava sempre junto) para visitar as choupanas vizinhas e avaliar as condições de vida de seus moradores. Edwiges estava engendrando, com o apoio luxuoso das finanças do marido e da própria economia, uma forma objetiva de assistência social, levando alimentos, agasalhos e esperança aos necessitados.

Sabe-se que o tom de formalidade predominava como norma nas relações conjugais da Idade Média. Marido e mulher eram duas entidades separadas, algumas vezes unidas pelos mesmos interesses e crenças. A relação sexual, por exemplo, era entendida como uma concessão de Deus visando à procriação. Era, portanto, algo formal. A castidade, nesse contexto, seria um apreço especial ao amor divino, transformado em renúncia aos prazeres da carne. Diante dessa conjugação de valores, Edwiges e Henrique decidiram, em comum acordo, criar algumas regras de conduta íntima. Por “comum acordo” entenda-se uma imposição dela que Henrique, por força de circunstâncias até mesmo políticas, acabou aceitando. O “acordo” tinha como primeira regra a abstinência sexual durante a gravidez e nos quarenta dias após o parto. O mesmo comportamento deveria ser observado durante a Quaresma, nas vigílias das grandes solenidades cristãs e aos domingos, por ser o dia do Senhor. Págs. 34-35.

Apesar dessas medidas restritivas, que falam muito da falta de afeto e do excesso de formalidade entre os cônjuges. Edwiges seria mãe aos 13 anos. Foi uma experiência frustrada, na verdade, pois o bebê – que seria batizado como o nome dela – viveu apenas três meses, de fevereiro a abril. Um ano depois chegava Ignês (ou Sofia, como aparece em alguns documentos), também morta prematuramente. Nessa época, a maioria dos recém-nascidos não passava dos primeiros meses e poucos dos sobreviventes chegavam à adolescência. As crianças sucumbiam às febres, gripes, diarreia e outras infecções, que em pouco tempo se tornavam graves e fatais. Não havia antissépticos e apenas algumas plantas serviam como remédio.

Henrique, que tanto esperava pelo primeiro filho, não se conformava com a falta de sorte e, revoltado, mantinha um comportamento agressivo com a mulher. Edwiges rezava na esperança de poder dar um herdeiro ao marido. Vestia-se com extrema simplicidade e fazia caridade em hospitais e asilos. Tentava livrar das grades os miseráveis, muitas vezes resgatando suas dívidas com os agiotas. Ela estava apenas começando a construir, com gestos simples e objetivos, aquela que seria considerada – no futuro – uma grande obra social. Foi nesse contexto que surgiu uma nova gravidez, a terceira, ainda incapaz de trazer esperança ou otimismo ao desalentado Henrique.

Dessa vez, porém, Edwiges resolveria passar a gravidez longe do clima conturbado da casa, refugiando-se no castelo de Laenhaus, onde certo dia assistiu a uma cena chocante: alguns servos arrastavam um homem pelo pátio, amarrado a uma corda. Era um devedor de impostos em estado de inadimplência com o burgomestre – como era chamado o funcionário encarregado de arrecadar os dízimos. O pobre homem, todo esfolado, implorava clemência e prometia resolver o problema em questão de horas, caso fosse libertado. O episódio chegou ao fim com a interferência de Edwiges, que pagou 2 marcos de prata pela liberdade do camponês. Apesar de nobre, ela sabia que a vida desses camponeses não era nada fácil. Além do trabalho pesado, estavam sujeitos a diversos impostos e taxas que pagavam ao senhor do feudo. Moravam em pequenas e desconfortáveis casas, muitas vezes de um cômodo e chão de terra batida. Mas havia um alento, no momento em que eles começaram a ser protegidos por Edwiges.

Semanas depois, numa noite de outono de 1191, os sinos repicaram na catedral de Breslau: Edwiges, aos 17 anos, dava à luz um menino forte e sadio, que seria batizado como o nome do pai, Henrique II. O nascimento do primeiro filho começava a dar contornos de família ao núcleo do casal. A maternidade deixava Edwiges mais bela e madura. Uma maturidade que seria acentuada com a morte do pai, Bertholdo, em 1204. Logo depois, viria um outro filho, Conrado, para reconstituir de maneira trágica, num futuro próximo, a história bíblica de Esaú e Jacob, sobre a desavença entre dois irmãos. Neste sentido, os Acta Sanctorum dedicam um capítulo inteiro a analisar as origens desse dissídio. Existem fortes evidências de que, apesar de o primogênito ser considerado o herdeiro natural da fortuna do pai, acontecia de Conrado – conhecido como Crespo, o favorito de Henrique – ficar com as honras de sucedê-lo. A despeito das regras tradicionalmente estabelecidas, ele foi o eleito. Em contrapartida, Henrique II receberia a cumplicidade e o apoio da mãe. p. 36-37.



A primeira obra

A ideia de construir um mosteiro em Trebnitz, tornando concreto um antigo sonho de Edwiges, surgiria após uma caçada nos pântanos da Silésia, quando Henrique (agora conhecido com o Barbado, influenciado pelo estilo dos monges) correu risco de vida ao embrenhar-se de maneira imprudente na floresta. Ele e o cavalo ficaram presos num atoleiro, e a cada movimento feito ne tentativa de escapar, afundavam-se mais. Durante a noite fria, reconhecendo-se em risco de morte e muito longe de casa, Henrique fez a promessa pensando em Edwiges: “Se eu sobreviver a isso, vou realizar o sonho dela”. Diante da gravidade da situação, a fé de Henrique ganhou contornos de oração. Foi quando algo estranho aconteceu – ele diria depois que um “vulto” teria saltado sobre o lodaçal, tomando as rédeas da situação, afastando o cavalo para um terreno seco. De qualquer maneira, tudo foi muito rápido. Quando Henrique voltou-se para agradecer, não encontrou ninguém, apenas a escuridão. Qualquer que seja a interpretação desse episódio, pelo lado místico ou casual, o fato é que, na volta a Breslau, com o dia amanhecendo, seu estado era lamentável. Apesar disso, Henrique procurou Edwiges para dizer:

- De hoje em diante vou prestar mais atenção em você. Tudo que eu puder fazer para realizar suas obras, eu farei.

Esse episódio, em última análise, revela o prestígio de Edwiges como força espiritual. Mais tarde, Henrique diria: “Naquela noite eu pedi por um milagre. E ele aconteceu”. A construção do mosteiro em Trebnitz, que consumiu seis anos entre planejamento e trabalhos forçados, finalmente chegou ao fim em 1203.

Era uma obra monumental e cara, pois tinha as paredes e parte do teto revestidas de chumbo. O edifício havia sido construído no mesmo lugar onde Henrique sofrera o acidente no pântano. Era o primeiro monastério exclusivamente para mulheres de se chamaria mosteiro de Trebnitz [1]. A restrição ao sexo feminino foi um pedido expresso de Henrique. Numa carta datada de 1208, ele explica: “Existem na minha terra três claustros, de três ordens diferentes, todas com representantes do sexo masculino, que podem se recolher para cuidar da salvação de suas almas. Mas, para as mulheres, não existe um claustro. As representantes do sexo feminino também têm o direito de se recolher para expiar seus pecados”.

[...].

Dizem os relatos dos Acta Sanctorum que durante o período de construção de Trebnitz, nenhum condenado à morte pelas barras dos tribunais foi executado. Por sugestão de Edwiges, todos os castigados pela pena máxima receberam indultos e foram deslocados para trabalhar na obra. Ela conseguiu tirar do cadafalso, às vésperas da morte, pessoas condenadas por dívidas ou pequenos furtos. Suas visitas aos presídios eram regulares. Ela levava comida, agasalhos e providenciava a limpeza das roupas sujas. Como as prisões eram escuras, deixava velas e tochas para que os lugares fossem iluminados. Pobres, enfermos e encarcerados estavam descobrindo o caminho do mosteiro de Trebnitz onde, a partir de agora, poderiam contar com o plantão permanente de Edwiges.

Os núcleos das abadias medievais se parecem com pequenas cidades. Em torno delas eram construídas igrejas, bibliotecas e oficinas para a produção e conservação de ferramentas e carroças, estrabarias e cocheiras. O edifício principal estava quase sempre localizado no centro de uma grande propriedade, onde se cultivava trigo, cevada, centeio e cuidava-se de videiras. Em espaços separados da casa, eram criados porcos, galinhas, patos, vacas e cavalos. Além do trabalho pesado, que acontecia até o pôr-do-sol, boa parte do tempo era dedicada à oração e ao canto sacro.

A enfermaria de um mosteiro era um lugar especial e a doença – contagiosa em particular -, uma marca do pecado. As pessoas atingidas pelo estigma da lepra (mal de Hansen), por exemplo, deveriam ser afastadas até a purgação. Ficavam isoladas nas florestas e eram frequentemente molestadas quando apareciam em local público. Quando muito, eram recolhidas por uma embarcação conhecida como Stultifera Navi e levadas para uma ilha deserta. Acreditava-se, então, que as doenças se espalhavam pelo mau hálito que, por sua vez, expressava o resultado dos “pecados da alma”. Na visão de Edwiges, essa situação de isolamento era infamante e representava uma excrescência do ser humano. p. 39.

[...]

O amor sublime

No palácio, Henrique e Conrado já eram meninos crescidos quando outros filhos vieram: Boleslau, Ignês, Sofia e Gertrudes, que foram batizados com os nomes de avós e tias. Os Acta Sanctorum registraram uma controvérsia sobre a ordem correta de nascimento dessas crianças. Em alguns documentos, Gertrudes aparece como a primogênita, seguida por Henrique II. É certo, porém, que após o parto do sexto filho, em 1208, o casal decidira formalizar, ajoelhados diante do bispo Lourenço, os solenes votos de castidade, jurando manter-se em estado de abstinência sexual até o fim da vida. era o que se chamava de “uma vida de continência”. Henrique tinha 42 anos e Edwiges 36. A cerimônia formal, oficiada no domingo da Paixão de 1209, seria acompanhada por um coral de meninos cantando Magnificat, [2], enchendo a catedral de Breslau com sons e acordes majestosos. Sobre essa situação, os Acta Sanctorum registraram o grau de cerimônia entre eles, a partir desse momento:

Por estas razões, Edwiges procurava evitar companhia e as conversas com o marido, para não ficar próxima a ele. Só o procurava quando tinha algum assunto importante a tratar, assunto que dizia respeito às obras de piedade, negócios religiosos ou auxílio aos miseráveis. E mesmo assim, em público ou na igreja, na presença de todos. Era claro que para ela o relacionamento não se oferecia à libidinagem. Quando seu marido estava doente, ela não o visitava sozinha, mas com sua nora Ana (mulher de Henrique) ou outras mulheres.

É fácil perceber que ao educar os filhos na fé cristã, incutindo-lhes um forte sentimento de piedade e apontando-lhes o caminho das virtudes. Edwiges transformava sua casa numa verdadeira igreja. Esse registro dos Acta nos permite conhecer melhor essa devoção:

Durante toda a vida, Edwiges tratou de guardar a maior honestidade em suas palavras e ações, quer nas conversas com Deus ou perante os homens. Ela sempre tratou de conservar a família sob cuidados diretos, principalmente as mulheres. Dos camareiros e outros empregados exigia disciplina e correção. Não queria intimidade com delatores, aqueles que sempre têm duas palavras, como se fossem duas almas que interferem entre si, a alma que vê e a alma que ouve, como o veneno e a mordida de uma serpente. E considerava este tipo de gente instrumento do demônio. p. 42.


___________________

1.Trebnitz – gíria que significa “nada” ou “não preciso de nada”. Uma referência aos votos de abstinência e pobreza. Assim, sempre que perguntavam às freiras do mosteiro se elas precisavam de alguma coisa, elas respondiam apenas: Trebnitz.

2. Canto religioso em forma de hino falando do encontro da Virgem Maria, mãe de Cristo, com sua prima Isabel. Faz parte da obra o Evangelho Segundo Lucas, terceiro livro do Novo Testamento.


Continuação da leitura: TRECHOS DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (3ª PARTE)

17 de outubro de 2024

TRECHOS DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (1ª PARTE)


Livro; Edwiges - A santa libertária; Autor; Toninho Vaz; hagiografia

Capítulo 1

Os milagres da fé

[...].

Quando Edwiges nasceu, em 1174, em Andesh, na região hoje conhecida como Bavária, o mundo estava em ebulição. Para alguns historiadores, a evolução ocorrida nessa época, quando tem início a formação dos Estados europeus (decomposição feudal) e a expansão do comércio e do cristianismo, só pode ser comparada ao processo desencadeado, séculos depois, pela Revolução Industrial e tecnológica. A antiga organização econômica, com pequenas cidades, industrias dispersas e mercados locais, começa a dar lugar a um sistema com outros industriais densamente povoados, produção em grande escala e comércio de âmbito mundial. A Europa se preparava, então, para viver o que alguns historiadores modernos chamam de “a Renascença do século XIII”. p.14

Enquanto a igreja alertava para “o pecado da usura e do lucro excessivo”, a Europa estava condenada a conhecer, em pouco tempo, a figura do mercador ou “intermediário” nas transações comerciais. Em temos históricos, era o surgimento da burguesia como extrato social ativo producente.

No aspecto religioso, o mundo cristão na Idade Média era uma chama viva ameaçando a soberania muçulmana no Oriente, consequência das Sete Cruzadas que tinham como objetivo primário resgatar a cidade de Jerusalém (desde 1174 nas mãos de Saladino, líder muçulmano) e restabelecer a ordem depois do Império Romano. Mesmo em nome de Jesus, e apesar do aspecto contraditório dessa iniciativa, foi grande o derramamento de sangue durante quase duzentos anos.

Ao contrário dos mártires surgidos nos primeiros anos do cristianismo, produtos do período conhecido como de “caça aos cristãos”, Edwiges não se debatia contra o estigma da discriminação religiosa. Sua dor tinha origem no próprio sofrimento pela perda do marido e dos filhos – e na solidariedade aos pobres e desvalidos. Era o que os não-cristãos chamavam de carma (ou Karman, em sânscrito) – sistema cósmico de justiça e definidor das forças que geram o destino. Mulher rica, Edwiges dedicava sua vida a construir hospitais, conventos e manicômios, edificando uma grande obra social, sempre em harmonia com os propósitos do esposo, Henrique I, duque da Silésia, uma mistura equilibrada de cristão e tirano. p.15.

As invasões mongólicas e as batalhas entre os príncipes (na disputa de poder e terras) aconteceram quando Edwiges era adulta e podem ser apontadas como a causa imediata do seu martírio. Enquanto assistia com amargura à morte do marido e dos filhos nos campos de batalha, a beata amenizaria sua dor abraçando a causa dos miseráveis. Para melhor conduzir sua fé, isolou-se no mosteiro de Trebnitz, da Ordem Cistercienses, que durante muito tempo seria administrado por sua filha caçula Gertrudes.

[...].


Capítulo 2

A menina de ouro

[...].

É certo que Edwiges nasceu em berço nobre. Seu pai, Bertholdo III, um católico fervoroso, ostentava vários títulos nobiliárquicos: era duque de Merânia, conde o Tirol e príncipe da Coríntia, além de bisneto de Frederico I, o Barba-roxa, que por sua vez era neto do imperador Otto, o patriarca. O poderoso Barba-roxa foi, durante quarenta anos, a mais importante peça do xadrez imperial germânico, com poderes semelhantes na Itália, onde o acumulou as funções – entre 1155-1190 – com o Sagrado Império Romano.

A mãe de Edwiges, Ignês Rochlethz, de família oriental, também católica, era filha de Dedon V, conde de Rochlethz e marquês de Luzyce (ou Landesberch), também de grandes riquezas e poderes. O nome Andesh, que designa a família de Bertholdo e o castelo na Baviera, aparece pela primeira vez em documentos por volta de 1080.

Quando Edwiges nasceu, em dia e mês desconhecidos de 1174, já encontrou no mundo sete irmãos – quatro homens e três mulheres. Sua chegada foi o desfecho de uma longa semana de expectativa no Castelo de Andesh. Agora, finalmente, a princesa Ignês entrava em trabalho de parto. Havia um clima de excitação no ar. As criadas providenciavam tudo que médicos e parteiras solicitavam, deslizando rápidas pelos corredores. O marido Bertholdo, apesar de experiente, demostrava nervosismo. Os Acta Sanctorum registraram assim esta passagem:

Foram horas de espera. Quando finalmente a porta dos aposentos da princesa se abriu, a parteira-chefe apareceu com o rosto iluminado pela alegria. Houve uma agitação geral. Ela perfilou-se e anunciou, solene:

- A princesa Ignês acaba de ter uma criança, que passa bem.

A mãe também está bem. É uma menina!

Quando a criança foi depositada nos braços da mãe, ganhou um sinal-da-cruz na testa e um beijo na face rosada. p. 19.

Dias depois da cerimônia de batismo, a alegria da família de Bertholdo era compartilhada com a sociedade de Andesh e das regiões vizinhas, numa festa que contou com a presença destacada do arcebispo, uma das maiores autoridades da região. O ponto algo foi o banquete, quando se consumiu muita carne de caça e vinho. As damas de honra e senhoras da nobreza comentavam:

- A criança vai se chamar Edwiges.

[...].


Um retrato de época

A essa altura do século XII, os ensinos católicos representavam a própria vanguarda da elite europeia. A criação da universidade de Paris, em 1150, pelos abades de Saint-Germain-des-Prés, subordinada diretamente ao papa, representava o triunfo da Igreja como centro irradiador de cultura. A iniciativa teve como consequência a fundação da universidade de Oxford, 15 anos depois, por estudantes e professores ingleses que haviam passado pela universidade de Paris. A Igreja se havia transformado em suporte e garantia de uma sociedade da qual ela própria era primeira beneficiária: tudo era cristandade.

Do ponto de vista da educação, era a febre do saber, o privilégio das elites, o poder da informação. Uma febre que atingiria até mesmo a pequena Edwiges, ainda em fase de alfabetização, que passou a considerar a possibilidade de permanecer para sempre no convento de Kitzingen, estudando e consagrando sua vida a Deus. A madre Petrussa, sua principal monitora, quando ouviu a confidência prontamente sugeriu uma reflexão mais profunda, ponderando: “Entregar-se ao serviço de Jesus é uma bela causa, porém, somente Deus sabe qual o melhor lugar para você servi-lo”. É certo, porém, que a partir desses dias – e por toda a adolescência – Edwiges acalentaria o sonho de viver para sempre num mosteiro. p.17.

A rotina no convento e os estudos das obras sagradas, que se intensificaram após a primeira comunhão, fizeram de Edwiges uma menina encantadora, que a todos cativava com sua vivacidade e inteligência. Certa vez, como recebesse regularmente a visita da família, ela comunicou ao pai Bertholdo, laconicamente, em tom de descoberta:

- Papai, aqui me ensinaram que os pobres verdadeiros são os preferidos de Deus.


E assim, na hesitação e na incerteza próprias da idade, ecoou em seus ouvidos o anúncio das Escrituras que diz que Deus está presente nos campos, nas florestas e que seu discurso é voltado para os simples. Desde cedo, levando tudo ao pé da letra, Edwiges começou a procurar do lado de fora do palácio os campos que Deus prestigia com sua presença. E, nisso, ela era obstinada.

Todos comentavam que Edwiges, mesmo sendo uma menina, pensava como uma adulta. Suas virtudes cristãs, manifestadas precocemente como resultado dos exercícios de purificação da alma (auto de piedade), podem e devem ser interpretadas como uma imitação de Deus, algo exemplar enquanto manifestação divina. Ou, como registram os Acta Sanctorum, “ela sempre procurava a pureza da vida inocente, evitando a leviandade e a insolência próprias da idade”.

 Foi na abadia de Kitzingen que Edwiges teria recebido uma revelação divina, por intermédio da irmã Romundes, já velha, cega e doente, que lhe confidenciou:

- O Senhor me revelou que, ao contrário do que você imagina, não será com as grinaldas celestiais das esposas de Cristo que você será coroada, mas com coroa terrena, adornada de ouro e pedras preciosas. E muito pesada, por causa de sua responsabilidade. Lembre-se que Deus estará ao seu lado para aliviar o peso, mas você será uma princesa de verdade.


Edwiges deixou os aposentos da irmã Romundes bastante intrigada, chocada mesmo, acreditando ter ouvido uma sentença capaz de lhe determinar o rumo do próprio futuro. Tudo ficaria mais claro, semanas depois, quando a irmã Berta lhe comunicou que seu pai estava vindo para buscá-la, era hora de voltar para casa. Chegara ao fim um longo e rico período de recolhimento e estudos. Do lado de fora, além dos muros da abadia, o que aguardava Edwiges era um mundo mergulhado em guerras e fanatismo. p. 29. [...].


Capítulo 3

Sinal dos tempos

 O casamento, como era visto e praticado na Idade Média, pode ser simbolizado por um jogo de cartas marcadas. Ou seja, enquanto instituição, o casamento estava a serviço de diversos interesses, inclusive da procriação e do amor. Mas, não foram estes certamente os sentimentos que aproximaram a pequena Edwiges do jovem polonês Henrique I, nessa época apenas duque da Silésia (mais tarde ele seria príncipe da Polônia, sucedendo seu pai, Boleslau). Havia interesses estratégicos nessa união, que simbolizou uma aliança de pacificação na fronteira entre os dois países – as culturas teutônicas e eslava viviam em choque e os casamentos funcionavam como uma espécie conciliação, trégua entre os nobres que defendiam seus patrimônios. Foi Bertholdo quem comunicou à filha, com alguma solenidade, que seu noivo, um jovem de família polonesa recém-cristianizada, estava a caminho de Andesh para conhece-la – e que não seria difícil para ela “simpatizar” como um rapaz com tantas virtudes: valente, forte e rico.

Henrique chegou acompanhado de alguns cavaleiros da sua guarda e foi recebido com festa no palácio. Sua alegria foi maior quando percebeu que Edwiges – além de rica – era bela e formosa. Entre os dotes da moça havia um quesito particularmente importante para o jovem duque, que investia em sua nova prática religiosa: ela era católica fervorosa. E, como havia uma certa urgência nas decisões a serem tomadas, o noivado foi formalizado e concluído em questão de dias, pois tudo havia sido decidido previamente. págs. 31-32.

quando o casamento foi celebrado, em 1186, por Godofredo de Heifenstein, bispo de Wesburgo, Henrique tinha 18 anos e Edwiges, 12. Eles estavam particularmente formosos nesse dia – Henrique com seu traje de nobre, espada reluzente na cintura, e Edwiges no melhor vestido, confeccionado durante dias pelas melhores costureiras. Na cabeça, uma grinalda ornamentada com pedras preciosas em forma de coroa (porém, não era uma coroa), de formato baixo, mais parecida com uma grinalda.

Os convidados para a cerimônia em Andesh foram escolhidos a dedo e representavam a fina flor das aristocracias alemã e polonesa. [...]. Esses mesmos convidados, todos da nobreza, eram testemunhas do empenho das duas famílias em estabelecer uma “união de forças” contra a invasão dos bárbaros, que perseguiam os proprietários de terras e saqueavam suas mansões. O fato de estarem combatendo, na condição de aliados, um inimigo comum ajudava a dissipar antigas mazelas e desavenças entre os príncipes. Em tempo de guerra, era necessário adotar e reconsiderar as estratégias – e o casamento era uma delas.

Para Edwiges, a possibilidade de se afastar da família, depois da experiência de seis anos no mosteiro de Kitzingen, não seria mais um grande sofrimento. Ela estava experiente e podia encarar com alguma naturalidade o fato de, logo após o casamento, ter que se mudar para a Silésia, na Polônia, onde seu jovem marido era o senhor. Dias depois, quando as condições do tempo permitiram, uma pequena comitiva uma pequena comitiva deixava o castelo de Andesh, em carruagens, seguindo em direção ao leste. Uma violenta tempestade de neve, porém, iria intercepta-los no meio do caminho. Eles ficaram abrigados num castelo pertencente ao pai de Henrique, o nobre Boleslau.

O imprevisto iria retardar em alguns dias a chegada do casal ao castelo de Breslau, onde seriam recebidos pelo repicar de sinos e as boas vindas do bispo Siroslau. Depois da bênção na catedral, todos rezaram pedindo que o nobre Henrique I, agora adulto e no poder, tivesse serenidade para dirigir os destinos da pátria, ou seja, da Silésia. p. 33.

[...].

15 de agosto de 2024

Livros Apócrifos de Enoque e Vida e Milagres de São Bento - Download

 

livros de Enoque e São Bento; Download




6 de fevereiro de 2020

Antônio: O santo do amor (Parte 2)

A RÁPIDA DECEPÇÃO

Quando Fernando entra para o serviço dos regrantes agostinianos, o prior de São Vicente de Fora é dom Pedro Mendes e o diretor espiritual dos noviços, que será seu primeiro mestre no mosteiro, dom Gonçalo Mendes. O próprio dom Gonçalo virá a tornar-se, mais tarde, o prior da casa. 
Ali, o rapaz almeja sentir-se distante do burburinho e da turbulência da cidade, que está sempre a receber mercadores, aventureiros e soldados, marinheiros e cruzados, gente de toda espécie. Palco de intenso combate em período recente, e sujeita a nova invasão a qualquer momento, Lisboa ainda é uma cidade de leis frágeis, onde ocorrem grandes arruaças e os costumes são violentos. Fernando conclui que fez a escolha acertada. Finalmente, interno do mosteiro, poderá estudar com tranquilidade, dedicar-se a uma vida devota e ao mesmo tempo ajudar os doentes e necessitados.
Esse novo estilo de vida implicou a renúncia à família, que não mais tomará a exercer influência sobre os destinos do filho. O pai teria preferido, já o sabemos, vê-lo cavaleiro e homem-bom do reino, como ao irmão Pedro, mas a mãe devota sabe tão bem como ele que o destino de um filho primogênito com frequência o conduz ao claustro, e provavelmente, como as outras mães da época, se conforma melhor a isso; no fundo, ela julga mesmo ser essa a melhor alternativa de vida para este filho sensível.
Bem logo, no entanto, o noviço perceberá a incompatibilidade entre seu projeto de vida e a instalação em um mosteiro tão próximo de rebuliço de uma cidade que se desenvolve rapidamente. Quando se recolheu entre as paredes do claustro, imaginou a si próprio – como viria a escrever anos mais tarde – em situação semelhante à das mulheres que foram procurar Jesus no sepulcro e se viram diante do problema de retirar a grande pedra que o fechava.
É verdade que no mosteiro pode-se conversar sobre as questões religiosas e culturais, e os monges que vêm do estrangeiro trazem assuntos importantes e discussões como a causada pela proibição, em 1202, do estudo do antigo filósofo grego Aristóteles em Paris. (No entanto, o pensamento aristotélico viria a ser incorporado pela teologia católica poucas décadas depois, pelas mãos do monge dominicano São Tomás de Aquino, que se tornaria mestre da própria universidade de Paris, a Sorbonne, em 1256.) Mas o tom geral da conversação, lá dentro, é bastante diferente. Dom Gonçalo e outros líderes agostinianos se orgulham de receber entre os monges um novo membro tão importante, de família fidalga, ao passo que o noviço prefere passear sozinho pelos corredores do claustro. A estada de Fernando em São Vicente de Fora acaba durante apenas pouco mais de dois anos. Págs. 60-62.

[...]. 

EM SANTA CRUZ

[...].

Fundado oitenta anos antes pelo arcediago dom Telo e mais doze seguidores, o mosteiro de Santa Cruz tem tradição de estudo e santidade. Dom Telo viera inspirado pelo exemplo dos monges orientais que conhecera durante uma viagem de quatro anos pela Palestina e por Constantinopla, acompanhado pelo bispo de Coimbra, dom Maurício Bordinho. Assim, ao fundar Santa Cruz com seus discípulos, dom Telo torna-se um dos pioneiros da retonificação do movimento monástico na Europa ocidental. Em 1130, dom Afonso Henriques doa aos novos cônegos regrantes as terras ao redor da Igreja de Santa Cruz, em que haviam se instalado, além de mandar construir o claustro e outros anexos necessários à ampliação do lugar. O rei, que sempre que podia se juntava aos internos nos momentos de oração, foi nomeado cônego honorário e, posteriormente, anunciou a fundação da abadia a Adriano IV (Nicolas Breakespeare, pontífice de 1154 a 1159), o único papa inglês da história. A propósito, foi esse período um dos mais internacionalistas da Igreja, em que o papado de Roma completava a solidificação de sua autoridade sobre os bispados regionais – tendo sido Inocêncio III o pontífice mais eficaz nesse sentido. Menos de cinquenta anos depois da morte de Santo Antônio, em 1276-1277, também houve um papa, João XXI – Pedro Julião –, a quem se atribui origem portuguesa.
O mais importante talvez, nesta altura da história é que dom Afonso guardava em Santa Cruz os tesouros resultantes de suas incursões anuais às terras mouras do sul. Assim, o mosteiro se torna uma espécie de caixa-forte do primeiro rei português. Embora seus bens não possam ser usufruídos pelos religiosos residentes, as doações para atender às necessidades vitais dos internos são régias. Págs. 66-67.

[...].

A realidade é que a pobre ermida fundada por dom Telo e São Teotônio tornara-se uma rica abadia, com as doações dos reis e da nobreza que para lá enviava seus filhos. Era o mosteiro do reis, a abadia da Corte – com tudo o que isso implicava. Assim, à revelia daqueles que ali buscavam um lugar de contemplação e oração (como Fernando Martins), ou de prática voltada ao bem-estar da comunidade, eram os que queriam se aproximar do poder, os ambiciosos e os bajuladores, passavam a se dirigir ao mosteiro, pedindo para nele se internar – ou os filhos secundogênitos da nobreza do reino, que mesmo sem herança podiam gozar vestidos de monges as benesses do tesouro real. Por isso mesmo as admissões tinham passado a ser controladas pelo rei e por seu apaniguado.
E fora assim que dom João César, clérigo da nobreza, mais ligado aos bens materiais e ao jogo do poder, assumira o priorado do mosteiro em 1196, protegido por dom Afonso II, então príncipe, ainda. Pág. 71. 

FINALMENTE

Num dia de meados de 1220 (em junho, ou talvez até em agosto, não se guardou a data), assim que raia o sol, os novos companheiros vêm buscar o cônego Fernando Martins no mosteiro dos agostinianos. Ali, na frente de todos, ele se descalça e troca o elegante traje branco dos cônegos pela áspera veste franciscana, com a grossa corda sobre a cintura. Ouve-se a voz de um agora ex-colega, um cônego, que diz em tom de gracejo:
- Isso, vai! Podes ir, que ainda vais ser santo.
Já em seu novo traje, o homem que parte responde apenas:
- Quando te contarem que me tornei um deles, louvarás a Deus.
Quando chega a Santo Antão já se tornou outro homem. A partir de agora ele será frei Antônio.
Para aquele que foi Fernando Martins faz-se outra vez a luz, o mundo é criado novamente.
O franciscanismo vem, como um descobrimento oceânico, aperfeiçoar e aprofundar sua vocação. Quase se poderia falar, na verdade, em mudança de vocação, em redescoberta pessoal, ao ponto de envolver a mudança do próprio nome.
O que ficou para trás, no entanto, não será desperdiçado. Se por um lado pode-se falar que Fernando já era uma espécie de franciscano entre os agostinianos (tinha “alma franciscana”, como se diz), com certeza é ele quem levará para a ordem de Francisco de Assis a teologia, o gosto pelo estudo e a disciplina aprendida nos mosteiros de Agostinho de Hipona.
A Igreja Católica está no bojo de sua primeira grande reforma, uma reforma que não envolve a separação de outras igrejas da sé de Roma, mas uma espécie de resgate da tentativa de viver mais literalmente os ensinamentos de Jesus. Pág. 95.

[...]. 

A REVIRAVOLTA DAS LETRAS

O talento desse homem único produz uma reviravolta nas políticas da ordem franciscana. Até então, Francisco de Assis, considerado avesso às letras, aos livros, e até ao uso da palavra como meio de convencimento – pelo que isso representava de estímulo ao orgulho e à vaidade, por tudo o que constituía como instrumentos de poder –, pregava que os membros de sua ordem só podiam usar o exemplo de vida, a humildade, a oração, a vida pacífica, como maneiras de comunicar sua mensagem. Um noviço que pedira autorização a Francisco de Assis para ter um livro de salmos recebera do santo uma resposta negativa. Frei Francisco, vendo na posse de um livro a possível causa de um problema interior da própria ordem, explicara que o irmão que o tivesse certamente trataria com ar de superioridade aos outros irmãos, como um senhor a seus empregados.
Não deixava de ter seu tanto de razão. Para ele, o ensino devia se processar de modo espontâneo, ao sabor das oportunidades que surgissem, ao ajudar um leproso, ao encontrar por acaso um doente ou um desvalido: para isso não é necessário ser Letrado, o Espírito Santo ilumina com a inspiração adequada no momento certo. Disso Antônio já tomara conhecimento ao ouvir contar as tantas histórias que corriam sobre Francisco, antes de conhecê-lo, quando viera ter, quase náufrago, à Sicília.
Francisco chegara, inclusive, a cortar pela raiz uma primeira tentativa de dar luzes intelectuais à ordem, mandando fechar a escola instalada no mosteiro de Bolonha por frei João de Estácia. Dizia-se mesmo que o santo de Assis chegara a usar palavras muito duras e amargas para vituperar a tentativa de estabelecer um ensino franciscano, tendo inclusive amaldiçoado frei João e os irmãos seus alunos, expulsando-os da abadia de Bolonha, inclusive os doentes com dificuldade de locomoção, como já vimos. Somente a chegada do cardeal Hugolino, protetor da ordem, teria revertido – ou pelo menos amenizado – a fúria anti-intelectualista de Francisco. Ao reprisar o episódio, pensamos que, como esse comportamento não condiz com a biografia do santo de Assis, acabamos por adentrar provavelmente o terreno pantanoso do boato e do comentário malicioso, difundidos por seus adversários (tanto os anticatólicos como os “católicos demais”). O mais certo, portanto, é fazer alguns descontos a esses relatos, embora preservando a ideia de que Francisco ama a humildade, por mais que seja fruto da ignorância, e aborrece o intelectualismo arrogante.
No entanto, se por um lado ai daquele que viesse falar em dialética ou em retórica em casa franciscana (pois Jesus tampouco as usou, e como ele devíamos recorrer somente às parábolas de entendimento fácil), por outro a ignorância geral em matéria religiosa adubava campo fértil para todo tipo de heresia. Antônio surge na ordem franciscana como o elemento articulado que, a par de ser capaz de lidar, com sua humildade, de igual para igual e sem arrogância com o povo, também sabe como transmitir a doutrina de acordo com os ensinamentos canônicos da Igreja. Vem formado pela ordem agostiniana, e já Santo Agostinho, tantos séculos antes, elaborava o discurso e os argumentos para vencer as teses heréticas em voga na época de Francisco e de Antônio. Antônio chega para materializar a prédica em que entram coração e razão, em que se mesclam devoção e raciocínio.
Assim como se chegou a dizer que Francisco, desconfiado dos demônios que se escondiam (ou que se revelam) nas palavras impressas, proibira que os membros de sua ordem tivessem livros, também se afirma que foi Antônio, com sua atitude, quem conseguiu provar ao mestre ser possível ler e estudar sem tornar-se arrogante, sem incutir nos ignorantes a noção de que são inferiores aos doutos simplesmente por não saberem ler. Que, em suma, Antônio teria sido o único membro da ordem a receber do próprio fundador a permissão para possuir e ler livros.
Na verdade, a proibição de livros chegou a ocorrer, mas havia outro motivo mais forte: o de que, sendo interditada aos franciscanos a posse de bens materiais, os livros entravam nessa categoria.
Certamente, o frade vindo de Portugal contribui muito para que seu herói, o fundador da ordem, reveja em parte suas posições, passando a encarar o estudo e as letras como benéficas quando se destinam a pavimentar os caminhos do amor ao próximo e da santidade. Págs. 126-128.

[...]. 

O SERMÃO AOS PEIXES

É de Rímini que vem o relato do primeiro milagre de Antônio em solo italiano. No entanto, ao chegar à cidade, em 1223, as coisas não são nada fáceis: é natural que ele não encontre a benevolência daqueles a que pretende se dirigir. Nos primeiros dias no lugar, sai a pregar pelas praças principais. Para ouvidos moucos. Não é agredido, tampouco sua pregação é agressiva, mas fazem pouco-caso ou zombam dele e de sua serenidade.
Um belo dia, seguindo uma inspiração, Antônio vai até a foz do rio Marecchia. Ali, “da parte de Deus” (como diz o relato medieval de suas “florezinhas”, ou milagres), dirige seu sermão aos peixes:
- Peixes do mar e do rio, serão vocês a ouvir a palavra de Deus, já que os homens, infiéis, a desprezaram. Num instante, acorre para junto dele uma enorme quantidade de peixes, tal como nunca se vira nesse lugar, que erguem a cabeça para fora da água. Atentos, eles parecem prestes a ouvir com devoção as palavras do frade. Diz o relato que até se colocam em ordem: os menores mais junto à areia, os médios logo atrás e mais ao fundo os maiores. Antônio retoma o sermão:
- Peixes, nossos irmãos, vocês devem dar graças ao Senhor conforme a sua possibilidade, pois Ele lhes deu como morada um elemento muito nobre: a água, doce e salgada. Além disso, deu a vocês, nela, abrigo contra tempestades. Ele fez a água clara e transparente para que possam ver os caminhos por onde devem andar e a comida que os alimenta. O Senhor, generoso e bom, ao criá-los, abençoou-os e deu-lhes o preceito de se multiplicarem. Quando veio o dilúvio e os outros animais que não entraram na arca morreram, Deus fez que fossem vocês os únicos a escapar vivos.
E nessa toada prossegue frei Antônio, enquanto os peixes, cada vez em maior número, abrem a boca e inclinam a cabeça, como se estivessem louvando a Deus da forma que lhes é possível, até a conclusão da prédica:
- Por todas essas graças, vocês devem bendizer ao Senhor. Bendito seja Deus para sempre, pois é mais venerado e honrado pelos peixes do rio e do mar que pelos homens infiéis. Os seres irracionais ouvem melhor a palavra de Deus do que os homens, racionais.
Durante o sermão, o número de pessoas que se aproxima também aumenta a cada passo. Admirada, a multidão recém-formada cai de joelhos ao fim da homilia, pedindo que Antônio também lhe dirija a pregação.
O santo dá licença aos peixes para mergulharem, e assim que ele os abençoa os animais voltam para o fundo da água. Enquanto isso, surpresos e maravilhados, vários daqueles homens que o hostilizavam vão se reunindo em redor dele. É então que Antônio inicia um novo sermão desta vez dirigido às pessoas, e o faz com tamanha convicção que acaba por converter todos os assistentes que ainda não se haviam deixado convencer ao ouvir suas palavras aos peixes. Págs. 130-132. 


A PROVA DA MULA

A notícia do milagre dos peixes se espalha rapidamente. Logo no dia seguinte, durante a pregação de Antônio ao povo de Rímini, um dos líderes da cidade, chamado Bonomilo (ou Bonilo) lhe propõe um desafio: ele tem uma mula, que deixará em jejum durante três dias. No quarto dia, a mula será solto na praça, tendo de um lado um monte de aveia e do outro Antônio com o ostensório da comunhão erguido à sua frente. Como os cátaros não acreditam na presença de Cristo na eucaristia, o chefe aceitará render-se a Ele se a mula se dirigir para a comunhão em vez de partir direto para o monte de aveia. Antônio aceita a prova, mas com uma ressalva: se a mula preferir a aveia à hóstia consagrada, isso não significará que a eucaristia não tenha valor, mas sim que ele, Antônio, como um simples pecador, não terá merecido a dignidade e a graça do milagre divino. Bonomilo e seus asseclas apenas riem, ridicularizando a resposta do frade franciscano. 
Antônio também passa os três dias em jejum – e em oração. No quarto dia, no fim da tarde como foi combinado, dirige-se para a praça. O líder cátaro chega logo depois com sua mula, visivelmente enfraquecida. Muita gente já está lá, tendo rumado para a praça depois dos afazeres diários. O dono do animal vira-o para a direção do monte de aveia e estimula-o a comer. A mula, porém, se volta para o outro lado, onde está Antônio, e com passo trôpego chega à frente do ostensório. Ao chegar ali, dobra as patas dianteiras, como que se ajoelhando diante da hóstia. O murmúrio cresce na multidão, tanto entre os que não tinham presenciado o sermão aos peixes como entre os que apenas tinham ouvido falar nele.
O dono da mula se dirige a Antônio:
- Em verdade a sua fé me convenceu. E comigo se convertem todos os meus seguidores aos ensinamentos da Igreja.
Com a difusão do relato de mais essa maravilha, é nesse período que começa a se firmar entre o povo a fama de Antônio como santo milagreiro. No entanto, ele nunca aceitará a fama. Diz frei Antônio que, se milagre há, é Deus quem o realiza, não ele, um simples homem e pobre frade franciscano. É quase como se ele não percebesse a imensidade das maravilhas que cercam sua vida – pois é bem verdade que, se deixasse estagnar o pensamento sobre elas, muito cedo se esvairia sua humildade... e também a possibilidade de novos eventos miraculosos.
Por isso, conta-se também que, sempre que ocorre algo que possa ser classificado como milagre, Antônio impõe o silêncio a quem o recebe ou aos que o testemunham – imposição inútil, aliás. Pois quem consegue fechar a boca do povo, ainda mais em assuntos como esse? Haverá exageros, claro, e quanto mais tempo se passar, no futuro, depois da morte do santo, mais avultarão as maravilhas vividas, vistas ou de que se ouviu falar. Por outro lado, sempre haverá algo inefável que não sabemos e que almas discretas terão guardado para si, respeitando a ordem de Antônio. Págs. 132-133.

[...] 


O PÃO DOS POBRES

A fome é rara entre os camponeses e os pobres burgos. Sempre que tem tempo para isso, Antônio enche um cesto com pães fabricados no convento e os leva à praça para distribuir entre os pobres. Um dia, inadvertidamente, carrega consigo todos os pães que os irmãos haviam preparado nãos só para a distribuição aos necessitados como para o consumo próprio. 
É somente ao retornar para o convento que percebe o suposto engano, e lamenta o ocorrido. Apesar de os irmãos franciscanos dizerem que o pão esta ali para isso mesmo, frei Antônio lembra que eles também são pobres como os outros e, portanto, também merecedores da dádiva do pão ofertado.
O fato é que, no momento de servir a parca refeição, para maravilhamento de todos, o irmão que cuida da cozinha nota que o cesto de pães – que Antônio tinha esvaziado – se encontrava novamente repleto.
Em outra versão, conta-se que um dia aparecem alguns pobres a pedir pão ao porteiro do convento, que se recusa a dá-lo, alegando falta de comida suficiente para os frades. Santo Antônio ouve a conversa e lhe ordena que dê todos os que têm, acrescentando:
- Deus nos há de prover!
Ao entrar no refeitório, vêem os frades, maravilhados, que o cesto está repleto.
Em lembrança desse milagre (ou desses milagres: nunca se sabe quando se trata da mesma história lembrada de diferentes modos ou quando é a vida que se replica) é que viria a surgir o tradicional “pão dos pobres de Santo Antônio”, distribuído tradicionalmente nos conventos franciscanos às terças-feiras ou, pelo menos, no dia 13 de junho de cada ano. Págs. 135-136.

[...]

Aquelas simples sete semanas de 1231 constituem uma autêntica revolução nos usos e costumes dos paduanos. A quaresma impregna a cidade de uma aura religiosa como nunca se vira. O preço dessa colheita se faz sentir, no entanto, no estado físico de frei Antônio: a hemoptise, que o faz perder sangue sempre que tosse – o que ocorre cada vez com mais frequência –, o enfraquece crescentemente. Isso, com a hidropisia, constituem as consequências decorrentes, tantos anos depois, da afecção contraída à beira do deserto e de uma vida de privações e de pouco cuidado com o corpo. O martírio que buscara encontrar no Marrocos, numa missão que a princípio julgara malsucedida, parecia cumprir-se afinal, adiado por anos: o mal contraído naquelas plagas, somado à desatenção acumulada em relação a seu próprio estado físico, o corroera lentamente, em vez do cutelo ou da cimitarra a decepar-lhe de um só golpe a juventude. Os jejuns severos, somados a essas enfermidades, muito contribuirão, com toda a certeza, para a morte precoce do santo.
Quando chega a Semana Santa, Antônio se encontra exausto, além de consumido pela doença. Todos lhe recomendam o descanso. Mas não, ele insiste.
Muitas pregações fez, muito assistiu pobres e enfermos. Mesmo assim, permanece ativo; só muda um pouco o teor das tarefas. Faz um pequeno intervalo nas pregações, para completar a redação de mais alguns textos e praticar a contemplação, que pode restaurar um pouco suas forças. Ele pretende realizar ainda alguns sermões e só descansar na alta estação da colheita, principalmente a partir de julho, quando os fiéis precisam dedicar mais tempo aos trabalhos no campo. Mas será que estará em condições de levar adiante essa intenção quando julho chegar? 


A CARTA PERDIDA

Em maio, porém, sentindo-se no limite da resistência física, Antônio parece ter-se dado por vencido: escreve ao provincial para pedir que o autorize a se retirar a um lugar tranquilo, um oratório ou ermida em que possa repousar e, sobretudo, meditar e rezar. A rigor, nem precisaria pedir essa autorização, tal é sua importância entre os franciscanos, mas Antônio nunca deixará de assumir a postura mais humilde. 
O lugar em que pensa fazer o retiro é próximo a Pádua e chama-se Camposampiero – também conhecido como Camposanto (fato curioso, pois em italiano camposanto significa “cemitério”).
No entanto, logo depois de ter escrito a carta ao ministro, surge uma dificuldade:
- Irmão Pio, não viu onde está a carta que escrevi há pouco para o nosso provincial? Eu a deixei ainda agora nesta mesa.
- Deve ser um sinal de Deus.
E, interpretando dessa forma o sumiço da correspondência, Antônio desiste de reescrevê-la. Julga entrever nesse fato a ordem divina para que permaneça onde está.
No entanto, alguns dias depois o irmão Pio vem procura-lo com um sobrescrito na mão:
- Frei Antônio, chegou carta do provincial.
Ao tirar-lhe o lacre, lê a resposta que o autoriza a retirar-se para o lugar que melhor lhe aprouver. Ao saber daquilo, Pio sai correndo a contar aos outros do convento o caso da resposta que chegou para a carta que não foi. Num instante a história se espalha, mais uma vez, como sempre, na versão do milagre:
- Então foi um anjo do Senhor quem levou a carta do nosso santo ao provincial. Foi por isso que sumiu o escrito da mesa em que ele o deixou.
E assim é que aparece essa história, como um evento miraculoso, já nos relatos mais antigos da vida de Santo Antônio.
O conde Tiso VI, a quem pertencem às terras de Camposampiero, havia construído no lugar uma capela, com um pequeno alojamento para religiosos, por ficar em local próximo de seu palácio. Antes de se retirar para a capela, frei Antônio visita o conde e, depois de muita insistência da parte deste, aceita hospedar-se por uma noite num dos quartos de sua casa.
Logo na noite da chegada de frei Antônio ocorre um fato maravilhoso, que Tiso, no entanto, só viria a divulgar depois da morte do santo. Págs. 236-237. 

O MENINO JESUS CONSOLA A QUEM O CONSOLA

Cabe contar neste ponto a história que o conde Tiso guardou para revelar apenas depois do falecimento de Antônio.
Diante dos religiosos unidos na imensa tristeza pela morte de um homem tão querido por todos, o conde relata, às lágrimas, o que viu quando o santo pernoitou em seu palacete:
- Como sempre, Il Santo não quis jantar. Aceitou apenas um pouco de pão e água. Antes de nos retirarmos para dormir, conversamos um pouco sobre assuntos religiosos. Ele se recolheu então ao quarto. Depois que todos na casa se aprontaram para dormir, resolvi passar pelo quarto de frei Antônio e ver se não precisava de alguma coisa. Quando olhei para dentro, tomei um susto. Onde se supunha reinar a escuridão, via-se uma luz forte que não vinha de nenhuma vela ou tocha. O santo estava de pé, no meio do quarto, com um lindo menino no colo. A criança, pouco mais que um bebê, tinha uma aura de luz em torno do corpo e acariciava o rosto de frei Antônio. E o santo beijava a testa e o rosto do menino de luz. Então a criança avisou o nosso querido frade de que eu os estava observando, e ele em seguida me pediu encarecidamente que não contasse a ninguém o que presenciei ali. Mas agora, vendo morto aquele que era a nossa luz e o nosso exemplo, não pude deixar de contar a mais bela cena que vi em minha vida.
Enquanto as lágrimas rolam pelo rosto do conde Tiso, começa a formar-se, no espírito dos que o escutam, aquela que será a imagem pela qual Antônio se tornará conhecido em todo o mundo cristão. As representações do santo trazem sempre a figura do Menino Jesus amparado em seu colo, invariavelmente com um livro – inevitável lembrança de seu dom de instruir – e de um lírio – símbolo da pureza, física e espiritual, que ele sempre almejou e praticou.
Estão todos convencidos de que a aparição do Menino Jesus a Antônio constitui um sinal de que seus dias se encontravam no fim, um ato de consolação. Págs. 237-238.

[...]. 


O DIA DO REENCONTRO

Ao amanhecer do dia 13, o santo se levanta em sua nova cela sentindo grande satisfação interior. Desce pela escada de madeira e ruma para a capela, onde os irmãos se reúnem para a primeira oração do dia. Em seguida, seguem todos para o refeitório improvisado, e é ali, antes de sequer pegar o costumeiro pedaço de pão duro, que Antônio desmaia, provavelmente de fraqueza, associada a uma provável crise de hidropisia. 
É carregado e colocado sobre o feixe espesso de palha que faz as vezes de cama a um dos irmãos. Quando finalmente volta a si, Antônio pede:
- Irmãos... Por favor, levem-me para o convento de Santa Maria.
Por causa de sua fragilidade, os outros relutam em fazer a remoção, mas Antônio insiste:
- Quero voltar para Pádua... Para Santa Maria...
Assim, ele é agasalhado e estendido sobre um carro de boi. Com todo o cuidado, vai sendo levado pelos religiosos da ermida, embora a contragosto deles. Antônio deseja viver em lugar dedicado à Virgem de sua devoção o que parecem ser seus últimos momentos; já os irmãos preferiam poupar-lhe o esforço.
Na entrada de Pádua, encontram outro franciscano, frei Inoto.
- Eu ia justamente visitar frei Antônio – diz ele. – Mas o caso parece grave! Para onde o estão levando?
Informado da decisão do santo, frei Inoto também tenta demovê-lo de continuar por aquele caminho:
- Mas, frei Antônio, se deseja vir para Pádua, por que não fica no eremitério de Arcella? O movimento é pequeno, lá vivem apenas alguns irmãos que cuidam das idosas pobres. Santa Maria é um lugar pequeno, mas lá faz muito barulho, há muito entra-e-sai. Com certeza isso irá prejudicar ainda mais a sua saúde.
E, argumentando dessa forma, Inoto consegue convencer Antônio a que concorde em ir para o pequeno convento de Arcella, pois fica no vilarejo de Capo di Ponte, ali bem próximo. Nessa ermida (também chamado de oratório) vivem uns poucos franciscanos, ao lado de outro pequeno convento de “mulheres pobres” da ordem feminina fundada por Santa Clara de Assis; as duas construções formam os anexos da pequena Igreja de Santa Maria della Cella (conhecida popularmente pela forma contrata “Arcella”). Talvez o fato de ser esse oratório também dedicado a Nossa Senhora tenha pesado na mudança de decisão do santo.
A decisão de levar frei Antônio para esse local se revela acertada: a viagem a Pádua, apesar de curta, seria puxada demais para seu estado físico. No entanto, assim que o instalam numa das minúsculas celas do lugar, nota-se que seu estado de saúde se agrava rapidamente: Antônio sente falta de ar, só pode ficar sentado. A tosse se torna mais intensa, os calores do corpo se acentuam.
Quando consegue reunir forças para falar, Antônio pede para se confessar com um dos frades de Arcella. Recebido o sacramento, põe-se a entoar a canção “Ó gloriosa Senhora, excelsa, que estais acima das estrelas”, dedicada à Virgem Maria. Seu olhar está fito no teto, mas sem dúvida não o enxerga: Antônio vê o que está muito além dele. Um dos frades, que sustenta seu corpo, lhe pergunta:
- Que está vendo, irmão Antônio?  Págs. 239-241. 

O REENCONTRO (13 DE JUNHO DE 1231)

E voltei a me perguntar: Que vim fazer aqui?
Contemplei a Deus, e Ele me contempla. Ouvi o chamado do Senhor. E vim. Ele me trouxe até aqui. Entreguei-me a Ele de corpo e alma e agora espero o Seu juízo. Terei pecado por omissões, por palavras, por obras.
- Quero confessar-me...
Sussurros, ruídos, a absolvição.
Sinto fiapos de odores,
Apenas pressinto os confusos ruídos.
- O gloriosa Domina excelsa supra sidera qui te creavit provide lactasti sacro úbere... Ó gloriosa Senhora, excelsa, que estais acima das estrelas e nutristes com vosso seio sagrado Aquele que vos criou.
Quero morrer de amor por Aquele que morreu de amor por todos os homens e mulheres deste mundo que pertence a Ele próprio, pois além de homem é Deus.
Quem me dessem a morte por tanto Vos amar, que me torturassem em nome do amor divino que frutificaria a conversão dos ímpios;
Que tanto morre por Vós, e vivi Vosso plano, Senhor. Anseio pela salvação que só Vós trazeis, anseio pelo Amor.
Vejo com os olhos da alma os altos céus, acima do telhado desta casa, acima do sol e das estrelas. Neste lugar quase sem iluminação e em que me falta o ar, sinto a presença do sol maior de todos, do sopro que me inspira enquanto expiro. A luz me preenche, sinto que não respiro, sim sou respirado.
Em algo que está aqui dentro não sinto mais as dúvidas, as perguntas se esgotaram, mas, sobretudo, surge a resposta necessária que se forma entre os abalos causados pelo mal-estar da doença. Ardo em febre, perco a consciência, recobro os sentidos. Longe das ânsias do martírio da fé, do sacrifício do meu corpo dado em oferenda Àquele que como eu viveu vida de homem, mas que também é Deus.
Está cumprida minha missão. Para isto me chamastes. Aceito o jugo que me impusestes, seja feita a Vossa vontade. Sinto-me esvair rapidamente, sei a tristeza dos companheiros assustados.
Pai, em Vossas mãos entrego meu corpo e minha alma. Alegre estou porque posso ir para junto de Vós. Seja feita a Vossa vontade...
Ouço a modulação de uma voz amiga que vem de tão perto e ao mesmo tempo de tão longe:
- Que está vendo, irmão Antônio?
Vejo meu Senhor.
- Vejo o meu Senhor...
Quase em seguida, o frade sacerdote lhe dá a extrema-unção. Com os olhos voltados para o alto, Antônio exala pela última vez. Págs. 243-244.


[...].


Referência 

Nuno, Fernando. Antônio: O santo do amor. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

Formulário de contato

Nome

E-mail *

Mensagem *