terça-feira, 18 de dezembro de 2018

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: OS DONS DO ESPÍRITO SANTO (ÚLTIMA PARTE)

2. NÚMEROS DOS DONS

É clássico o texto de Isaías (11,1-3):

Um broto vai surgir do tronco seco de Jessé, das velhas raízes, um ramo brotará.
Sobre ele há de pousar o espírito do SENHOR, espírito de sabedoria e compreensão, espírito de prudência e valentia, espírito de conhecimento e temor do SENHOR.
No temor do SENHOR estará sua inspiração.


Esse texto é claramente messiânico e fala propriamente só do Messias. Mas, não obstante, os Santos Padres e a própria Igreja estende-o também aos fiéis de Cristo, em virtude do princípio universal da economia da graça enunciado por São Paulo quando disse: “Pois aos que ele conheceu desde sempre, também os predestinou a se configurarem com a imagem de seu Filho, para que este seja o primogênito numa multidão de irmãos” (Rm 8,29). De onde se infere que tudo quanto há de perfeição em Cristo, nossa Cabeça, se é comunicável, se encontra também em seus membros unidos a Ele pela graça. E é evidente que os dons do Espírito Santo pertencem às perfeições comunicáveis, tendo em conta, ademais, a necessidade que temos deles para nossa santificação.
Os dons do Espírito Santo são sete: Sabedoria, Entendimento, Ciência, Conselho, Piedade, Fortaleza e Temor de Deus. No texto massorético
1 de Isaías falta o dom de Piedade e repete duas vezes o de Temor; mas isto se deve à tradução, já que a mesma expressão hebraica pode ser aplicada a ambos os dons indistintos.

3. FUNÇÃO ESPECÍFICA DE CADA UM DOS DONS

Vejamos agora muito brevemente a função especifica de cada um dos sete dons. Santo Tomás as precisou admiravelmente.
2 Cada um dos dons têm por missão direta e específica a perfeição de alguma das sete virtudes fundamentais (as três teologais e as quatro cardeais), e através delas repercutem em todas as demais virtudes infusas derivadas daqueles e sobre o conjunto total da vida cristã.
Eis aqui, muito brevemente, a missão especial e característica fundamental de cada um dos dons em ordem descendente de excelência e perfeição.
3
a) O dom de sabedoria aperfeiçoa maravilhosamente a virtude da caridade, dando-lhe a respirar o ar ou modalidade divina que reclama e exige por sua própria condição de virtude teologal perfeita. Por sua divina influência, as almas amam a Deus com amor intenso, por certa conaturalidade com as coisas divinas, que as funde, por assim dizer, nas profundidades insondáveis do mistério trinitário. Vêm tudo através de Deus e julgam tudo por razões divinas, com senso de eternidade, como se houvessem ultrapassado as fronteiras do mais além. Perderam por completo o instinto do humano e se movem unicamente por certo instinto sobrenatural e divino. Nada nem ninguém pode perturbar a paz inefável de que gozam no íntimo de sua alma: as desgraças, enfermidades, perseguições e calúnias, etc., as deixam completamente “imóveis e tranquilas, como se estivessem na eternidade” (Ir. Elisabete da Trindade). Não lhes importa nem afeta nada de quanto ocorra neste mundo, a não ser que esteja relacionado com a glória de Deus, que é seu único anelo e preocupação. Já começaram sua vida na eternidade. Algo disto queria dizer São Paulo quando escreveu em sua carta aos Filipenses: Nós, porém, somos cidadãos dos céus... (Fl 3,20).
b) O dom do entendimento aperfeiçoa a virtude da fé, dando-lhe uma penetração profunda dos grandes mistérios sobrenaturais: a inabitação trinitária, o mistério da redenção, de nossa incorporação a Cristo, a santidade de Maria, o valor infinito da santa missa e outros mistérios semelhantes adquirem, sob a iluminação do dom de entendimento, uma força e eficácia santificadoras verdadeiramente extraordinárias. Estas almas vivem obcecadas pelas coisas de Deus, que sentem e vivem com a máxima intensidade que pode dar de si uma alma peregrina ainda sobre a terra.
c) O dom da ciência aperfeiçoa, em outro aspecto, a mesma vida de virtude da fé, ensinando-a a julgar retamente as coisas criadas, vendo em todas elas a marca ou vestígio de Deus, que manifesta sua beleza e sua bondade inefáveis. A alma de São Francisco de Assis, iluminada pelas claridades divinas desse dom, via inclusive nos seres irracionais ou inanimados: o irmão lobo, a irmã flor, a irmã morte... O mundo tem por insensatez e loucura o que é sublime sabedoria perante Deus. É a “ciência dos santos”, que será sempre estulta ante a incrível estultícia e insensatez do mundo (cf. 1Cor 3,19).
d) O dom do conselho presta magníficos serviços à virtude da prudência, não só nas grandes determinações que marcam a orientação de toda uma vida (vocação, eleição de estado), mas até nos mais pequenos detalhes de uma vida em aparência monótona e sem transcendência alguma. São palpites, golpes de vista intuitivos, cujo acerto e oportunidade se encarregam mais tarde de averiguar os acontecimentos. Para o governo de nossos próprios atos e o reto desempenho de cargos diretivos e de responsabilidade, o dom do conselho é de um preço e valor incalculáveis.
e) O dom da piedade aperfeiçoa a virtude da justiça, uma de cujas virtudes derivadas é precisamente a piedade. Tem por objetivo exercitar na vontade, por instinto do Espírito Santo, um afeto filial para com Deus considerado como Pai amantíssimo, e um profundo sentimento de fraternidade universal para com todos os homens enquanto nossos irmãos e filhos do mesmo Pai que está nos céus. As almas dominadas pelo dom da piedade experimentam uma ternura imensa ao sentirem-se filhos de Deus, e sua prece favorita é o Pai-nosso que estais nos céus (Santa Teresinha). Vivem inteiramente abandonadas a seu amor e sentem também uma ternura especial para com a Virgem Maria, sua doce mãe; ao Papa, “o doce Cristo na Terra” (Santa Catarina de Siena), e a todas as pessoas nas quais brilha uma luz da divina paternidade: o superior, o sacerdote...
f) O dom da fortaleza reforça incrivelmente a virtude de mesmo nome, fazendo-a chegar ao heroísmo mais perfeito em seus dois aspectos fundamentais: resistência e persistência frente a toda classe de ataques e perigos, e acometida viril do cumprimento do dever apesar de todas as dificuldades. O dom de fortaleza brilha em frente dos mártires, dos grandes heróis cristãos e na prática calada e heroica das virtudes da vida cristã ordinária, que constituem o “heroísmo de pequeno” e uma espécie de “martírio às alfinetadas”,
4 com frequência mais penoso que o grande heroísmo e o martírio entre os dentes das feras.
g) O dom do temor, por fim, aperfeiçoa duas virtudes: primariamente, a virtude teologal da esperança, arrancando a raiz do pecado da presunção, que se opõe diretamente a ela por excesso, e nos faz apoiar unicamente no auxílio onipotente de Deus Pai, que é o motivo formal da esperança. Secundariamente, aperfeiçoa também a virtude cardeal da temperança, já que não há nada tão eficaz para frear o apetite desordenado dos prazeres como o temor dos castigos divinos. Os santos tremiam ante a possibilidade do menor pecado, porque o dom do temor lhes fazia ver com clareza a grandeza e majestade de Deus, por um lado, e a vileza e degradação do pecado, por outro. A Santa Teresa de Jesus lhe “arrepiavam os cabelos” quanto pensava na grandeza e majestade de Deus, ofendidas por nossos pecados. 

4. OS FRUTOS E AS BEM-AVENTURANÇAS

Quando a alma corresponde fielmente à moção divina dos dons do Espírito Santo, produz atos de virtude sobrenatural tão sazonados e perfeitos, que se chamam frutos do Espírito Santo. Os mais sublimes e extraordinários correspondem às bem-aventuranças evangélicas, que marcam o ponto culminante e o coroamento definitivo, aqui na Terra, de toda a vida cristã e são já como o começo e prelúdio da bem-aventurança eterna. 
São Paulo enumera alguns dos principais frutos do Espírito Santo quando escreve aos Gálatas: Os “frutos” do Espírito são: caridade, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, autodomínio. Contra estas coisas não existe lei (Gl 5,22-23). Mas sem dúvida alguma, não teve a intenção de enumerar todos. São, repetimos, os atos procedentes dos dons do Espírito Santo que têm caráter de especial qualidade e perfeição.
Diga-se o mesmo das bem-aventuranças evangélicas. No sermão da Montanha, Cristo assinalou oito: pobreza de espírito, mansidão, lágrimas, fome e sede de justiça, misericórdia, pureza de coração, paz e perseguição por causa da justiça. Mas também podemos dizer que se trata de um número simbólico que não reconhece limites. São as obras heroicas dos santos, que os faz experimentar um gosto e uma antecipação da bem-aventurança eterna do Céu. Págs. 127-134


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1 O Texto Massorético foi preservado pelos massoretas em meados do século VI, um grupo de escribas Judeus de renome que tinham como objetivo preservar fielmente os textos que eles consideravam ser divinamente inspirados. Esse texto foi usado para compor a Bíblia Hebraica e posteriormente como fonte de tradução para outros idiomas, inclusive para o português, realizada pelos católicos e também pelos protestantes, inclusive para as traduções de João Ferreira de Almeida.
No século XV, ao ser inventada a imprensa, Daniel Bomberg, um cristão veneziano de Antuérpia, Bélgica, realizou uma impressão do Texto Massorético em 1524 e foi usado também por Martinho Lutero ao traduzir o Antigo Testamento para o Alemão.
O Texto Massorético também é a base universal para o que podemos chamar de uma “Bíblia” Judaica, se referindo claramente aos livros canônicos judaicos, chamados Tanakh, que contém os 24 livros sagrados dos judeus que compõem os mesmos 39 livros do Antigo Testamento, porém em ordem diferente. Biblioteca Teológica: http://bibliateca.com.br/site/a-biblia-manuscrita/o-texto-massoretico - NT.
2 Nós mesmos as expusemos amplamente em nossa Teologia de la Perfección Cristiana, n.117-139, para onde remetemos o leitor que queira maior informação.
3 Cf. Nossa obra somos hijos de Dios, p.38-41.
4 A expressão deriva da frase de Santa Teresa de Lisieux “Antes de morrer pela espada, morramos às alfinetadas...”, (cf. Obras completas – Teresa do menino Jesus e da Sagrada Face. São Paulo: Ed. Loyola, 1995, p. 399) – NT.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: OS DONS DO ESPÍRITO SANTO

1. IMPORTÂNCIA E NECESSIDADE

As virtudes infusas, apesar de serem estritamente sobrenaturais, como já explicamos, não bastam para nos fazer viver em toda sua perfeição e grandeza a vida divina, própria do cristianismo na graça. Precisamente por se tratar de uma vida verdadeiramente divina – portanto, infinitamente superior à vida puramente natural ou humana – qualquer elemento humano que se mescle a ela apaga de alguma forma seu brilho e esplendor. Sem dúvida alguma, as virtudes infusas podem atuar e atuam sobrenaturalmente, fazendo-nos viver a vida divina própria da graça, embora não em toda sua força e perfeição. Para isso, necessitam da ajuda e da colaboração dos dons do Espírito Santo pela razão que explicaremos imediatamente.
As virtudes infusas, de fato, movem-se e governam pelo próprio cristianismo na graça, seguindo o ditame da razão iluminada pela fé. Enquanto iluminada pela fé, a razão natural está mil vezes acima de si mesma, abandonada a suas próprias luzes naturais. Nesse sentido, as virtudes infusas se encontram muito acima das naturais ou adquiridas, que são governadas pelas luzes sobrenaturais da fé. Por isso as virtudes infusas são muito mais finas e exigentes do que as adquiridas – “fiam mais fino”, como diria Santa Teresa – porque a fé mostra à alma maravilhas que rebaixam, e muito, as luzes da razão natural. Assim, por exemplo, o amor natural ao próximo não vai tão longe ao ponto de darmos a própria vida por ele, como por vezes exige a caridade sobrenatural em imitação ao Senhor Jesus Cristo; a virtude natural da temperança evita tudo o que pode prejudicar a saúde do corpo ou a reputação perante os demais, mas nada sabe de mortificações ou imolações voluntárias pelo bem espiritual próprio ou alheio, em imitação ao divino Crucificado, etc., etc. As virtudes infusas são, evidentemente, muito mais finas e perfeitas do que suas correspondentes virtudes naturais ou adquiridas.
Contudo, nas virtudes infusas, em seu mecanismo e funcionamento, se mistura inevitavelmente um elemento humano: a própria razão natural, ainda que iluminada pela fé. É ela, como dissemos, quem rege e governa as virtudes infusas, embora sempre sob a influência e impulso da graça atual, sem a qual a razão humana, mesmo informada pela fé, não pode fazer absolutamente nada na ordem sobrenatural. A razão iluminada pela fé ao reger e governar por si mesma as virtudes infusas sob o impulso de uma graça atual, imprime, forçosa e inevitavelmente, uma modalidade humana, posto que essa modalidade é própria e característica da razão natural, mesmo iluminada pela fé: não há outra. Essa atmosfera e modalidade humana procedente da razão natural é um elemento estranho e enormemente desproporcionado em relação à natureza sobrenatural ou divina das virtudes infusas, sobretudo das teologais. Estas reclamam, por sua própria natureza, uma atmosfera ou modalidade divina para desvelar em tudo seu esplendor suas maravilhosas virtualidades divinas. Por isso, enquanto estiverem submetidas à modalidade humana que lhes imprime a razão natural, as virtudes infusas não respiram a plenos pulmões, por assim dizer, e é impossível que nessas condições alcancem seu perfeito desenvolvimento. Poderão crescer e se desenvolver até certo ponto, mas sempre de forma precária, incompleta e imperfeita. Impossível chegar ao ápice de seu desenvolvimento e perfeição enquanto uma atmosfera ou modalidade plenamente divina não venha a lhes dar o oxigênio puro que reclamam e exigem, por sua própria natureza de virtudes sobrenaturais ou divinas.
Esse é o papel dos dons do Espírito Santo e sua razão de ser. Também eles são hábitos naturais ou infusos – e neste sentido coincidem genericamente com as virtudes infusas que sempre acompanham –, mas seu mecanismo e funcionamento é completamente distinto. Não é a razão humana iluminada pela fé que os governa e regula, senão o próprio Espírito Santo, utilizando-o como seus instrumentos direitos e indiretos. Ele é quem os move diretamente e não a razão humana. O Espírito Santo, ao utilizar os dons diretamente, por si mesmo lhes imprime sua modalidade divina, que é própria e específica do mesmo Espírito Santo, como é evidente. Assim, o ato sobrenatural procedente dos dons do Espírito Santo, não somente é sobrenatural quanto à sua essência – também o é das virtudes infusas – senão quanto ao modo. Nesse sentido supera imensamente em qualidade e perfeição o ato das virtudes infusas submetidas ao governo da simples razão natural pela fé.
Poderíamos comparar as virtudes infusas a uma harpa sobrenatural com mais de cinquenta cordas, que Deus entrega à alma em estado de graça para que a toque e tire dela harmonias divinas (os atos sobrenaturais); mas como o artista que maneja a harpa – a própria razão humana – é muito torpe e míope, mesmo sob as luzes da fé, resulta numa melodia desafinada e imperfeita (se pratica a virtude “até certo ponto”, “contanto que não me exija me exija demais”, etc.). Até que chega um momento em que o próprio Espírito Santo toca por si mesmo a harpa das virtudes infusas através de seus próprios dons, e então sai da alma uma melodia bela, absolutamente divina, que não é outra coisa senão os atos de virtude perfeita e heroica dos verdadeiros santos. Então, é quando o cristão começa a viver em toda a plenitude sua filiação divina adotiva, como disse explicitamente o apóstolo São Paulo na sua carta aos Romanos: “Todos aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8,14). Págs. 123-127.



segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: O PORQUÊ DE TANTOS FRACASSOS (ÚLTIMA PARTE)

3. A FALTA DE DIREÇÃO ESPIRITUAL OU DEFICIÊNCIA DA MESMA

Outra das razões que explicam com maior clareza o rotundo fracasso de tantos aspirantes à perfeição ou santidade cristã, diz respeito à direção espiritual, seja porque careceram totalmente dela ou porque a receberam de maneira equivocada ou deficiente. Vamos expô-las com a maior precisão possível.


a) Em que consiste a direção espiritual
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A direção espiritual consiste ou tem por objeto assinalar às almas o verdadeiro caminho que devem percorrer progressivamente, desde o começo da vida espiritual até os cumes mais elevados da união íntima com Deus. Quem dever percorrer o caminho é a alma – indubitavelmente –, mas cabe ao diretor traçar-lhe a rota a ser seguida em cada momento da vida espiritual. Não se trata de empurrar a alma, mas de conduzi-la suavemente adiante, respeitando sempre a liberdade e particular idiossincrasia da alma dirigida.
O caminho deve ser firme, sem rodeios e desvios, porém sem saltos nem precipitações imprudentes. O diretor deve conduzir a alma gradual e progressivamente, sem exigir-lhe, a cada momento, mais do que a alma pode dar de si conforme as graças que Deus via derramando sobre ela (cf. Mt 23,4; Jo 16,12-13).
A direção deve começar imediatamente quando a alma, sob o impulso da graça divina, se decide a empreender o caminho da perfeição cristã. Em todas as etapas desse caminho há uma infinidade de obstáculos e dificuldades que não poderão ser superados sem a vigilância e ajuda de um experiente diretor espiritual, segundo a providência ordinária de Deus.
O ideal de santidade a ser aspirado pela alma não pode conhecer limites nem fronteiras. O diretor deve orientar todas as energias da alma em direção à plena e íntima união com Deus, ou seja, para o ápice da santidade. Um diretor “meio letrado e assustadiço” – como diria Santa Teresa
7 – que contente em manter as almas em uma vulgar mediocridade e não as estimule sem descanso a buscar uma perfeição cada vez maior, fará grande dano às almas e incorrerá em uma grave responsabilidade perante Deus.8 Se só as ensina a andar arrastando-se rente ao solo como sapos, jamais poderão retomar o voo para os mais altos cumes, como as águias reais. 

b) Importância e necessidade
Segundo o testemunho da Tradição, a direção espiritual é moralmente necessária para alcançar a perfeição cristã. São Vicente Ferrer não vacilou em escrever no seu famoso “Tratado da vida espiritual” as seguintes categóricas palavras: “Nunca o Senhor Jesus Cristo outorgará sua graça – sem a qual nada podemos fazer – a quem, tendo à disposição um varão capaz de instruir-lhe e dirigir-lhe, despreza essa ajuda, persuadido de que se bastará a si mesmo e de que encontrará por si só tudo o que é útil para sua salvação.9
A necessidade moral da direção espiritual pode ser comprovada pelo testemunho da Sagrada Escritura, pela prática universal da igreja e pela própria psicologia humana.
i) Pela Sagrada Escritura – não há nela nenhum texto claro e definitivo que aluda diretamente a esta questão, mas o insinua suficientemente em inúmeros textos. Vejam por exemplo os seguintes:
“Segue o conselho dos prudentes e não desprezes nenhum bom conselho” (Tb 4,18).
“Se um vem a cair, o outro o levanta. Mas ai do homem solitário: se ele cair não há ninguém para o levantar” (Ecl 4,10).
“Filho, nada faças sem reflexão, e não virás a arrepender-te depois” (Eclo 32,24).
“Quem vos ouve a mim ouve, quem vos despreza a mim despreza, e quem me despreza, despreza aquele que me enviou” (Lc 10,16).
“Sendo assim, em nome de Cristo exercemos a função de embaixadores e por nosso intermédio é Deus mesmo que vos exorta” (2Cor 5,20).
Pode-se citar ainda os exemplos de Cornélio, enviado a São Pedro (At 10,5), e o de São Paulo a Ananías (At 9,6).
ii) Pela prática universal da Igreja – de fato, a prática da direção espiritual aparece na Igreja desde os tempos apostólicos. É certo que se citam exemplos de santidade alcançadas sem direção espiritual – o que comprova que a direção não é absolutamente necessária –; mas a regra geral mostra que, ao lado das almas mais perfeitas se encontra um sábio diretor, que se inicia e governa até leva-las à santidade. Algumas vezes se estabelece uma corrente de mútua influência sobrenatural entre ambos. Recordem-se dos exemplos de São Jerônimo e Santa Paula, do Beato Raimundo de Cápua e Santa Catarina de Sena, de São João da Cruz e Santa Teresa, de São Francisco de Sales e Santa Joana de Chantal, de São Vicente de Paula e Santa Luisa de Marrilac, etc.
iii) Pela própria psicologia humana – em geral, ninguém é bom juiz de si mesmo, ainda que pressuposta a máxima sinceridade e boa fé. Compreendemos muito melhor os estados da alma alheia – quando se expõem a nós com clareza – do que os de nossa própria alma. Uma mesma situação, clara e fácil quando se trata dos demais, resulta-nos obscura e complicada quando se trata de nós mesmos. Isso ocorre porque não podemos prescindir de uma série de fatores sensíveis, de imaginação, de egoísmo, de interesse, de gostos e afeições, ou de escrúpulos e preocupações excessivas, que vêm a enturvar a claridade da visão e a entorpecer o ditame da razão prática.
Não obstante, como já dissemos, a necessidade de um diretor espiritual não é absoluta ou indispensável para todos. Às vezes, as condições nas quais vive uma alma impedem-na de ter uma direção espiritual conveniente (por exemplo, aldeões que nem sequer dispõem de um pároco, ou monjas de clausura submetidas a um só confessor não de todo competente para uma direção espiritual séria, etc.). Nesses casos, Deus suprirá com suas inspirações internas a falta involuntária de um guia idôneo. Mas a direção se faz indispensável – segundo a providência ordinária de Deus – para todo aquele que possa facilmente obtê-la. Nada mais oposto ao espírito do cristianismo e à natureza mesma da Igreja – na qual o ensinamento e o governo se realizam por meio da autoridade – do que buscar a regra de vida em si mesmo. Tal foi o erro dos protestantes, que abriram a porta aos excessos do livre exame e do mais desenfreado iluminismo. Págs. 51-56.


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6 Estudamos longamente tudo relativo à direção espiritual na Teologia de la Perfección Cristiana, n. 671-705, para onde remetemos o leitor que queira maiores informações sobre este importantíssimo assunto. Aqui oferecemos somente o resumo do mais importante.
7 Cf. SANTA TERESA, VIDA5,3; 13,14-16, ETC.
8 Cf. SÃO JOÃO DA CRUZ, LLAMA CAN.3 N. 56.
9 SÃO VICENTE FERRER, TRATADO DE LA VIDA ES´PIRITUAL, P.2.A C.1 (VALENCIA 1950) 43-44.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: O PORQUÊ DE TANTOS FRACASSOS (PARTE 3)

5ª Constante e progressivo. Há muitas almas que sob a influência de algum acontecimento de sua vida (ao sair de uns exercícios espirituais, ao receber as ordens sagradas ou ao entrar na religião, etc.) têm uma grande arrancada. Mas muito prontamente se cansam ao experimentar as primeiras dificuldades e abandonam o caminho da perfeição ou deixam esfriar ao menos o desejo ardente que possuíam. Às vezes se permitem férias e pequenas pausas na vida espiritual, com o pretexto de “respirar um pouco” e recuperar as forças da alma. É um grande equívoco. A alma não só não recupera a força, senão que, pelo contrário, enfraquece e se debilita extraordinariamente. Mais tarde, quando queira recomeçar a marcha, se encontrará destreinada e sonolenta, e deverá fazer um grande esforço para colocá-la outra vez no grau de tensão espiritual que antes havia atingido. Tudo isto poderia ser evitado se o desejo da perfeição se impusesse sempre de maneira constante e progressiva – sem violência nem extremismos, embora sem desfalecimentos nem fraquezas –, impedindo-lhe a alma essas férias espirituais que lhe custarão cara depois.
6ª Prático e eficaz. Não se trata de um quisera, mas de um quero, que há de se traduzir eficazmente na prática, dispondo hic et nunc de todos os meios a nosso alcance para conseguir a perfeição a todo o custo. É muito fácil iludir-se de que se tem o desejo da perfeição por certas veleidades e caprichos que ocorrem à alma durante a oração. Mas o movimento se demonstra caminhando. Desejar a perfeição em teoria, mas “esperar terminar este trabalho”, ou “que se passe tal ou qual data” ou “esperar sarar completamente” ou “ao sair de tal ofício ou cargo exigente”, etc., etc., é viver em perpétua ilusão. De prazo em prazo, de prorrogação a prorrogação, a vida vai passando insensivelmente, e nos expomos a comparecer perante Deus com as mãos um pouco menos que vazias.

b) Como aumentar o desejo de santidade
Insistindo nesse assunto tão transcendental, vamos propor agora os meios mais importantes para avivar em nós o desejo eficaz da perfeição e da mais elevada santidade. São estes:
I. Pedi-lo incessantemente a Deus. Enquanto sobrenatural, só do alto pode nos vir, já que é absolutamente impossível que brote de nossas próprias forças naturais. O meramente natural não produzir jamais nenhum efeito sobrenatural, ao contrário do que afirma a heresia pelagiana expressamente condenada pela Igreja (D 101ss/DH 222ss).
Deus se comprometeu a nos conceder tudo quanto pedimos com a oração revestida das devidas condições. A promessa divina consta explicitamente no evangelho: “Pedi e vos será dado! Procurais e encontrareis! Batei e a porta vos será aberta! Pois todo aquele que pede recebe, quem procura encontra, e a quem bate, a porta será aberta” (Mt 7,7-8). Estas categóricas palavras foram pronunciadas pelo próprio Cristo no sermão da Montanha, dirigindo-Se a todos os seus discípulos, e não a uma só classe seleta e privilegiada: “Todo aquele que pede, todo aquele que busca, todo aquele que chama...”, sem nenhuma limitação ou restrição.
Pois, se assim o é, como se explica que não tenhamos obtido de Deus o grande dom de desejar eficazmente a perfeição e a santidade cristãs? A explicação pode ser mais simples: porque não a pedimos, ou a pedimos insuficientemente ou sem reunir as devidas condições para que a oração resulte infalivelmente eficaz.
Para que a oração resulte infalivelmente eficaz segundo a promessa evangélica deve reunir as seguintes condições indispensáveis: 
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i) Há de ser humilde. Quem pede uma esmola não pode exigi-la de modo algum, diferente de um trabalhador que mereceu o salário correspondente.
ii) Confiante, ou seja, esperando-a com toda segurança e certeza da misericórdia de Deus.
iii) Perseverante, repetindo-a mil vezes, sem se cansar nem desfalecer jamais, mesmo quando Deus parece não querer nos escutar. A razão de tardar em nos escutar, apesar de nossa insistência, é que Deus quer provar nossa fé e confiança em sua bondade e misericórdia, e fazer-nos ver, ao mesmo tempo, que por nós mesmos jamais poderíamos alcançar o que esperamos obter confiadamente de sua infinita misericórdia.
Quando reunidas essas três condições principais, a oração de petição resulta infalivelmente eficaz, em virtude da promessa evangélica expressada pelo próprio Jesus Cristo no sermão da Montanha.
II – Renovar com frequência o desejo de santidade, como já dissemos. Diariamente nos momentos mais solenes e importantes (santa Missa, sagrada comunhão, orações privadas). Não é necessário pronunciar fórmula alguma; basta um impulso amoroso do coração, uma breve e simples jaculatória, etc., etc.
III- Meditar com frequência nos motivos para querer a santidade. Eis aqui os principais:
i) Temos a obrigação estrita de aspirar à perfeição em virtude da vocação universal à santidade, segundo vimos amplamente ao expor a magnífica doutrina do Concílio Vaticano II.
ii) É o maior dos bens que podemos alcançar nesta vida. Em comparação a ele, são como “esterco e lixo” todos os bens deste mundo (Fl 3,8).
iii) A perfeita imitação de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos amou até derramar todo o seu sangue por nós, exige a máxima correspondência e o máximo esforço de nossa parte: amor com amor se paga. A visão de Jesus Cristo crucificado deveria ser o incentivo mais nobre e eficaz para nos impulsionar à mais alta santidade. Págs. 47-51.


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5 Cf. SANTO TOMÁS, II-II, 83, 15 AD 2.


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quarta-feira, 28 de novembro de 2018

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: O PORQUÊ DE TANTOS FRACASSOS (PARTE 2)

2. A FALTA DO VERDADEIRO DESEJO DE SANTIDADE

Em realidade, este segundo obstáculo quase coincide com o anterior, ou tem com ele muitos elementos comuns. Mas, de qualquer forma, oferece alguns matizes muito importantes que convém examinar.
De pronto, tal obstáculo já pertence plenamente à ordem sobrenatural. Ninguém pode possuir um sincero e autêntico desejo de santidade ou perfeição cristã, senão sob a influência da divina graça.
Santo Tomás de Aquino, ao ser questionado por sua irmã sobre o que deveria fazer para chegar à santidade, limitou-se a responder: querer. É de se supor que o Doutor Angélico explicaria depois à irmã o verdadeiro sentido e alcance dessa lacônica resposta.
Poderia repetir aqui, apenas elevando à ordem sobrenatural, tudo quanto já dissemos sobre a energia de caráter. Somente as almas esforçadas e enérgicas, com ajuda da divina graça, conseguem escalar até o cume da montanha do amor.


a) Qualidades do desejo de santidade

Para se obter dele toda sua eficácia santificadora, o desejo da perfeição deve possuir as seguintes qualidades:
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1ª Deve ser sobrenatural, ou seja, procedente da graça divina e orientado para a maior glória de Deus, fim último e absoluto de nossa própria existência. O verdadeiro desejo da perfeição já é um grande dom de Deus, o qual devemos pedir-Lhe humilde e perseverantemente, até obtê-lo de Sua divina bondade.
2ª Profundamente humilde, quer dizer, sem jamais apoiá-lo sobre nossas próprias forças, que são pura fraqueza e miséria diante de Deus. Nem devemos aspirar à santidade vendo nela um modo de nos engrandecer, mas unicamente como o meio mais excelente para amar e glorificar a Deus com todas as nossas forças.
3ª Sumamente confiado. É o complemento da qualidade anterior. Nada podemos por nós mesmos, mas tudo podemos naquele que nos conforta (Fl 4, 13). O Senhor permite que se coloquem diante de nós verdadeiras montanhas de dificuldades precisamente para provar nossa confiança n’Ele. Quantas almas abandonam a senda da perfeição ao surgirem estas dificuldades, por esse desalento e falta de confiança, pensando que não é para elas uma coisa tão árdua e difícil! Somente os que seguem adiante apesar de tudo, pensando que das mesmas pedras pode Deus suscitar os filhos de Abraão (Mat 3,9), chegarão a coroar-se com os louros da vitória.

A este propósito escreve Santa Teresa:
4
“Ter grande confiança, porque convém muito apoucar os desejos, mas crer em Deus. Pois, se nos esforçarmos pouco a pouco, ainda que não seja logo, poderemos chegar ao que muitos santos, ao Seu favor, chegaram. Porque se eles nunca decidissem a desejá-lo e, pouco a pouco a pôr mãos à obra, não teriam subido a tão alto estado. Ama sua majestade e é amigo de almas cheias de coragem, quando vão com humildade e nenhuma confiança em si. E não vi nenhuma dessas, que fique embaixo no caminho, nem nenhuma alma covarde – com amparo de humildade – que em muitos anos ande o que essas outras em muito poucos. Espanta-me o muito que faz nesse caminho anima-se a grandes coisas”.
4ª Predominante, ou seja, mais intenso que qualquer outro. Nada tem razão de bem senão a glória de Deus, e, como meio para ela, nossa própria perfeição. Todos os demais bens devem subordinados a esse supremo. É a pérola de grande valor do Evangelho, para cuja aquisição o mercador deve vender tudo quanto possui (Mt 13, 46). Ciência, saúde, apostolado, honras..., tudo vale infinitamente menos do que a santidade. “Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e Sua justiça e todas as coisas lhes serão dadas por acréscimo” (Mat 6,33). O desejo da perfeição não pode ser um entre tantos, posto à margem de muitos outros que disputem com ela a primazia. Tem de ser o desejo fundamental dominante de toda nossa vida. Aquele que quer ser verdadeiramente santo, precisa dedicar-se a isso profissionalmente, deixando de lado tudo o mais e considerando as coisas deste mundo como inteiramente caducas, segundo diz São Paulo: “Porque estais mortos e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3.3). Por não se decidirem totalmente a isso e andar aos tropeços entre as coisas de Deus e as do mundo, fracassam tantas almas no caminho de sua santificação. Págs. 43-46.


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3 Cf. Teologia de la Perfección Cristiana, n. 623.
4 SANTA TERESA, VIDA 13,12.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: O PORQUÊ DE TANTOS FRACASSOS (PARTE 1)

TRECHOS DA OBRA; SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO; O PORQUÊ DE TANTOS FRACASSOS; PARTE 1
COMO ACABAMOS DE DIZER, a razão fundamental que explica tantos fracassos no caminho rumo à santidade daqueles que já o tentaram alguma vez, consiste em não ter empregado suficientemente os meios necessários e adequados para consegui-la. Sem utilizar convenientemente todos os meios necessários é totalmente impossível de se chegar ao fim: é algo evidente que não necessita de demonstração.
Entre os meios indispensáveis para alcançar nosso objetivo, há os de primeira categoria – são os que veremos amplamente na segunda parte deste livro – e outros que, embora também sejam necessários, são como pressupostos preparatórios de ordem natural ou sobrenatural. Examinaremos estes dois últimos no presente capítulo.
Entre esses meios que auxiliam e preparam para a ascensão à santidade, há um de ordem psicológica puramente natural, os outros dois pertencentes à ordem sobrenatural, que estão sob a influência da divina graça. São estes:

De ordem psicológica puramente natural:
A falta de energia de caráter.

De ordem sobrenatural:
A falta de verdadeiro desejo de santidade.
A falta ou deficiente direção espiritual.

Vamos examiná-los um por um.
1- Não é de surpreender que, para atingir um fim sobrenatural, deva-se empregar alguns pressupostos de ordem puramente psicológica e natural. Não porque o natural possa por si mesmo produzir algum efeito sobrenatural – heresia pelagiana condenada expressamente pela Igreja (D101SS/DH 222SS)
1 – mas porque o sobrenatural pode encontrar em seu desenvolvimento algum obstáculo natural a ser necessariamente removido para seguir adiante. Ou seja, o natural atua unicamente removendo os obstáculos que impedem e dificultam o caminho (“ut removens prohibens” como dizem os teólogos) e não porque possa produzir, por si mesmo, qualquer efeito sobrenatural. Não esqueçamos, ademais, que a graça não destrói a natureza, mas a eleva e aperfeiçoa, colocando-a a seu serviço.
O principal obstáculo de ordem natural que é necessário remover para seguir adiante é, sem sombra de dúvida, a falta de energia de caráter.
Vamos examiná-lo cuidadosamente. São legiões as almas incapazes de tomar uma resolução enérgica para resolver algum problema difícil que se lhes coloca adiante. Não se excitam nunca ou o fazem muito debilmente. Por causa de sua calma e lentidão, perdem uma multidão de boas ocasiões que, bem aproveitadas, poderiam levá-las ao êxito. Em algumas circunstâncias extremas, se sacrificam até onde for preciso; mas, no geral, lhes falta entusiasmo e espontaneidade, porque sua natureza é muito indolente e muito débil. Santa Teresa disse delas com muito acerto: “As penitências que fazem estas almas são tão reguladas quanto sua vida... Não tenhais medo que se matem, porque sua razão está muito em si”. (Santa Teresa). Onde falta vontade enérgica não há homem perfeito. Para sê-lo, não basta um indolente queria, é preciso chegar a um enérgico quero. “A vontade não é onipotente, mas pode-se vencer centenas de resfriados e muitos outros males se alguém se empenha nisto”.
2 Com uma vontade enérgica pode-se chegar à plena possessão de si mesmo, ao domínio e emancipação das paixões, à plena liberação das malsãs influências exteriores. Pouco importa se todos aqueles que lhe rodeiam se afastam do reto caminho; ele seguirá imperturbável sua marcha para o ideal, ainda que fique completamente só. Não há força humana que possa dobrar sua vontade e afastar-lhe do cumprimento do dever: nem castigos, nem ameaças, nem seduções, nem adulações. Morrerá mártir se preciso, mas não apostatará. Se lhe colocam diante de uma montanha de dificuldades, repetirá a frase de Napoleão: “Fora com os Alpes!”, e seguirá adiante apesar de tudo. Enfim, são eles que Santa Teresa descreve magistralmente, com toda precisão e clareza:
“Digo que importa muito e acima de tudo, uma grande e muito determinada determinação de não parar até chegar a ela (fonte de água viva), venha o que vier, suceda o que suceder, custe o que custar, murmure quem murmurar; quer chegue ao fim, quer morra no caminho, ou falte coragem para os sofrimentos que neles se encontram, havemos de prosseguir ainda que o mundo venha abaixo”. (Santa Teresa, Caminho de Perfección 21,2).
Aqueles que acertem em tomar para si esta muito “determinada determinação”, fecundada pela graça de Deus, levarão já em si, em germe e esperança certa, o heroísmo e a santidade. Págs. 39-43.


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1 A sigla D designa a obra de Heinrich Denzinger (1819 – 1883): Enchitidion symbolorum, definitionum et declarationum de rubus fidei et morum. Nela estão reunidas as definições dogmáticas e declarações da Igreja ao longo dos séculos nos concílios e documentos pontifícios. A partir da 32ª edição, a numeração foi alterada consideravelmente, devido à atualização e inclusão de novos documentos. [...].
2 P. Weiss, El Arte de Viver C.4 N.6.12.


sábado, 17 de novembro de 2018

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: A CARIDADE. O MARTÍRIO. OS CONSELHOS EVANGÉLICOS. A SANTIDADE NO PRÓPRIO ESTADO

SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO; LIVRO
“Deus é caridade e quem permanece na caridade, permanece em Deus e Deus nele” (1Jo 4,16). Ora, Deus difundiu a sua caridade nos nossos corações, por meio do Espírito Santo, que nos foi dado (cf. Rm 5,5). Sendo assim, o primeiro e mais necessário dom é a caridade, com que amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por amor a ele. Para que esta caridade, como boa semente, cresça e frutifique na alma, cada fiel deve ouvir de bom grado a palavra de Deus, e cumprir, com a ajuda da graça, a Sua vontade, participar frequentemente nos sacramentos, sobretudo na Eucaristia, e nas funções sagradas, dando-se continuamente à oração, à abnegação de si mesmo, ao serviço afetivo de seus irmãos e a toda a espécie de virtude; pois a caridade, vínculo da perfeição e plenitude da lei (cf. Cl 3,14; Rm 13,10), é que dirige todos os meios de santificação, os informa e leva a seu fim. É, pois, pela caridade para com Deus e o próximo que se caracteriza o verdadeiro discípulo de Cristo.
Como Jesus, Filho de Deus, manifestou o Seu amor dando a vida por nós, assim ninguém dá maior prova de amor do que aquele que oferece a própria vida por Ele e por seus irmãos (cf. 1Jo 3,16; Jo 15,13). Desde os primeiros tempos, alguns cristãos foram chamados a dar este máximo testemunho de amor diante de todos, e especialmente perante os perseguidores. Por esta razão, o martírio, pelo qual o discípulo se torna semelhante ao mestre, que livremente aceitou a morte para salvação do mundo, e a Ele se conforma no derramamento do sangue, é considerado pela Igreja com um dom insigne e prova suprema de amor. E embora seja concedido a poucos, todos, porém, devem estar dispostos a confessar a Cristo diante dos homens e a segui-lo no caminho da cruz em meio das perseguições que nunca faltarão à igreja.
A santidade da Igreja é também especialmente favorecida pelos múltiplos conselhos que o Senhor propõe no Evangelho aos seus discípulos. Entre eles sobressai o de, com o coração mais facilmente indiviso (cf. 1Cor 7, 32-34), se consagrem só a Deus, na virgindade ou no celibato, dom da graça divina que o Pai concede a alguns (cf. Mt 19,11; 1Cor 7,7). Esta continência perfeita, abraçada pelo reino dos céus, foi sempre tida em grande estima pela Igreja, como sinal e incentivo do amor e ainda como fonte privilegiada de fecundidade espiritual no mundo.
A Igreja recorda-se também da recomendação com que o Apóstolo, incitando os fiéis à caridade, os exorta a ter sentimentos semelhantes aos de Jesus Cristo, o qual “Se despojou a Si próprio, tomando a condição de escravo... feito obediente até à morte” (Fl 2, 7-8) e, “sendo rico, por nós Se fez pobre” (2Cor 8,9). Sendo necessário que sempre e em todo o tempo os discípulos imitem esta caridade e humildade de Cristo, e delas dêem testemunho. A mãe Igreja alegra-se de encontrar no seu seio muitos homens e mulheres que seguem mais de perto o abatimento do Salvador e mais claramente o manifestam, abraçando a pobreza na liberdade dos filhos de Deus e renunciando às próprias vontades: em matéria de perfeição, sujeitam-se, por amor de Deus, ao homem, para além do que é de obrigação, a fim de mais plenamente se conformarem a Cristo obediente.
Todos os cristãos são, pois chamados e obrigados a tender à santidade e perfeição do próprio estado. Procurem, por isso, ordenar retamente os próprios afetos, para não serem impedidos de avançar na perfeição da caridade pelo uso das coisas terrenas e pelo apego às riquezas, em oposição ao espírito da pobreza evangélica, segundo o conselho do Apóstolo: os que usam no mundo, façam-no como se dele não usassem, pois é transitório o cenário deste mundo. (1Cor 7,31). Págs. 31-34



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terça-feira, 4 de setembro de 2018

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: A SANTIDADE NOS DIVERSOS ESTADOS

SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO; LIVRO
Nos vários gêneros e ocupações da vida, é sempre a mesma a santidade que é cultivada por aqueles que são conduzidos Espírito de Deus e, obedientes à voz do Pai, adorando em espírito e verdade a Deus Pai, seguem a Cristo pobre, humilde, e levando a cruz, a fim de merecerem ser participantes da Sua glória. Cada um, segundo os próprios dons e funções, deve progredir sem desfalecimentos pelo caminho da fé viva, que estimula a esperança e que atua pela caridade.
Em primeiro lugar, os pastores do rebanho de Cristo, à semelhança do sumo e eterno sacerdote, pastor e bispo das nossas almas, desempenhem o próprio ministério santamente e com alegria, com humildade e fortaleza; assim cumprido, também para eles será o seu ministério um sublime meio de santificação. Escolhidos para a plenitude do sacerdócio, receberam a graça sacramental para que, orando, sacrificando e pregando, com toda a espécie de cuidados e serviços episcopais, realizem a tarefa perfeita da caridade pastoral, sem hesitarem em oferecer a vida pelas ovelhas e, feitos modelos do rebanho (cf. 1Ped.5,3), suscitem na Igreja, também com seu exemplo, uma santidade cada vez maior.
Os presbíteros, à semelhança da ordem dos Bispos, de que são a coroa espiritual, já que participam das suas funções por graça de Cristo, eterno e único mediador, cresçam no amor de Deus e do próximo com o exercício do seu dever quotidiano; guardem o vínculo da unidade sacerdotal, abundem em toda a espécie de bens espirituais e dêem a todos vivo testemunho de Deus, tornando-se êmulos daqueles sacerdotes que no decorrer dos séculos, em serviço muitas vezes humilde e escondido, nos deixaram magnífico exemplo de santidade. O seu louvor persevera na Igreja. Orando e oferecendo o sacrifício pelo próprio rebanho e por todo o Povo de Deus, conforme é seu ofício, conscientes do que fazem e imitando as realidades com que lidam, longe de serem impedidos pelos cuidados, perigos e tribulações do apostolado, devem antes por eles elevar-se a uma santidade mais alta, alimentando e fomentando a sua ação com a abundancia da contemplação, para alegria de toda a Igreja de Deus. Todos os presbíteros, e especialmente aqueles que por título particular da sua ordenação são chamados sacerdotes diocesanos, lembrem-se de quanto ajudam para a sua santificação a união fiel e a cooperação generosa com o próprio Bispo.
A missão de graça do sumo sacerdote, participam também de modo peculiar os ministros de ordem inferior, e sobretudo os diáconos; servindo nos mistérios de Cristo e da Igreja, devem conservar-se puros de todo o vício, agradar a Deus, atender a toda a espécie de boas obras diante dos homens (cf. 1Tim 3, 8-10. 12-13). Os clérigos que, chamados pelo Senhor e separados a fim de ter parte com Ele, se preparam sob a vigilância dos pastores para desempenhar os ofícios de ministros, procurem conformar o coração e o espírito com tão magnífica eleição, sendo assíduos na oração e fervorosos no amor, ocupando o pensamento com tudo o que é verdadeiro, justo e de boa reputação, fazendo tudo para glória e honra de Deus. Destes se aproximam aqueles leigos, que, escolhidos por Deus, são chamados pelos Bispos para se consagrarem totalmente às atividades apostólicas e com muito fruto trabalham no campo do Senhor.
Os esposos e pais cristãos devem, seguindo o seu caminho peculiar, amparar-se mutuamente na graça, com amor fiel, durante a vida inteira, e imbuir com a doutrina cristã e as virtudes evangélicas a prole que amorosamente receberam de Deus. Dão assim a todos exemplo de amor incansável e generoso, edificam a comunidade fraterna e são testemunhas e cooperadores da fecundidade da Igreja, nossa mãe, em sinal e participação daquele amor com que Cristo amou a Sua esposa e por ela Se entregou. Exemplo semelhante é dado, mas de outro modo, pelas pessoas viúvas ou celibatárias, que muito podem concorrer para a santidade e ação da Igreja. Aqueles que se ocupam em trabalhos muitas vezes duros, devem, através das tarefas humanas, aperfeiçoar-se a si mesmos, ajudar seus concidadãos, fazer progredir a sociedade e toda a criação; e, ainda, imitando com operosa caridade a Cristo, cujas mãos se exercitaram em trabalhos de operário e, em união com o Pai continuamente atua para a salvação de todos; alegres na esperança, levando os fardos uns dos outros, subam com o próprio trabalho quotidiano a uma santidade mais alta, também ela apostólica.
Todos quantos se vêem oprimidos pela pobreza, pela fraqueza, pela doença ou tribulações várias, e os que sofrem perseguição por amor da justiça, saibam que estão unidos, de modo especial, a Cristo nos seus sofrimentos pela salvação do mundo; o Senhor, no Evangelho, proclamou-os bem-aventurados e “o Deus... de toda a graça, que nos chamou à Sua eterna glória em Cristo Jesus, depois de sofrerem um pouco, os há de restabelecer, confirmar e consolidar” (1Pd 5,10).
Todos os fiéis se santificarão cada dia mais nas condições, tarefas e circunstâncias da própria vida e através de todas elas, se receberem tudo com fé da mão do Pai celeste e cooperarem com a divina vontade, manifestando a todos, na própria atividade temporal, a caridade com que Deus amou o mundo. Págs. 27-31.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: JESUS, MESTRE E MODELO


Jesus, mestre e modelo divino de toda a perfeição, pregou a santidade de vida, de que Ele é o autor e consumador, a todos e cada um dos discípulos, de qualquer condição: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mat 5,48). A todos enviou o Espírito Santo, que move interiormente a amarem a Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o espírito e com todas as forças (cfr. Mc. 12,30) e a amarem-se uns aos outros como Cristo os amou (cf. Jo 13,34; 15,12).
Os seguidores de Cristo, chamados por Deus e justificados no Senhor Jesus, não por merecimento próprio, mas pela vontade e graça de Deus, são feitos, pelo Batismo da fé, verdadeiramente filhos e participantes da natureza divina e, por conseguinte, realmente santos. É necessário, portanto, que, com o auxílio divino, conservem e aperfeiçoem, vivendo-a, esta santidade que receberam.
O Apóstolo admoesta-os a que vivam como convém ao santos (Ef 5,3) e que, como eleitos e amados de Deus, se revistam de entranhas de misericórdia, benignidade, humildade, mansidão e paciência” (Cl 3,12) e alcancem os frutos do Espírito para a santificação (cf. Gl 5,22; Rm 6,22). E porque todos cometemos faltas em muitas ocasiões (Tg 3,2), precisamos constantemente da misericórdia de Deus e todos os dias devemos orar: “perdoai-nos as nossas ofensas” (Mt 6,12). É, pois, claro a todos, que os cristãos de qualquer estado ou ordem, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade. Na própria sociedade terrena, esta santidade promove um modo de vida mais humano.
Para alcançar esta perfeição, empreguem os fiéis as forças recebidas segundo a medida em que as dá Cristo, a fim de que, seguindo as Suas pisadas e conformados à Sua imagem, obedecendo em tudo à vontade de Deus, se consagrem com toda a alma à glória do Senhor e ao serviço do próximo. Assim crescerá em frutos abundantes a santidade do Povo de Deus, como patentemente se manifesta na história da Igreja, com a vida de tantos santos. Págs. 26-27.



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segunda-feira, 16 de abril de 2018

CAVALO DE TROIA 1 - JERUSALÉM. [A importância da oração com fé, e do amor não fingido].

Cavalo de troia - Jerusalém 1
6 DE ABRIL, QUINTA-FEIRA. 

Passada a meia-noite, um a um, os discípulos foram-se levantando e abandonando o fogo. Enquanto procuravam refúgio nas tendas ou se enrolavam nos seus mantos, junto do muro de pedra, André tratou de designar o primeiro turno de guarda, dois homens armados com espadas. Um postou-se a sul, à entrada do jardim, e outro a norte, nas proximidades da gruta. A rendição seria de hora a hora.
Mas Jesus não se moveu. Sentado a metro e meio da fogueira e de costas para o olival - permaneceu uns minutos com o olhar fito nas ondulantes e vermelhas línguas de fogo, que soltavam fagulhas por causa de alguns troncos um pouco mais úmidos que os restantes. Não tardou que ficasse só, na frente dele e com a fogueira, como única testemunha, quase muda, do que ia ser a minha terceira e última conversa com o Mestre. Os Seus braços descansavam sobre as pernas, cruzadas uma sobre a outra. O Nazareno abrira as mãos, recolhendo o calor nas palmas. Tinha a cabeça ligeiramente inclinada para a frente e os cabelos e rosto iluminavam-se e escureciam, ao capricho do agitar das chamas. A sua expressão, acolhedora e tranquila durante toda a noite, tornara-se grave. De repente, o coração bateu-me mais depressa. Brilhante, tímida e sem pressas, uma lágrima apareceu na Sua face direita. Era a segunda vez que via chorar Aquele estranho homem... Nem sequer respirei, comovido e intrigado por aquele sereno e súbito choro do Galileu. Mas Jesus parecia totalmente ausente. E, poucos minutos depois, lançando a cabeça para trás , inspirou profundamente, pondo-se de pé. Na minha mente agitavam-se uma infinidade de hipóteses sobre o estado de alma de Galileu, mas não me atrevia a mover-me.
Vi-o afastar-se para o interior do olival e parar a trinta ou quarenta passos de onde me encontrava. E assim permaneceu - de pé e de cabeça baixa - durante uma hora. A Lua, quase cheia, solitária entre milhares de estrelas, encarregou-se de O banhar numa luz prateada, oscilando por vezes a uma brisa que entrava lentamente entre as folhas verde-brancas das oliveiras.
Sem saber exatamente por que motivo, esperei. A temperatura baixara consideravelmente, fazendo tremeluzir os astros, envoltos por halos brancos, azuis e vermelhos. Durante um espaço de tempo que não saberia precisar, fiquei com o rosto perdido naquele negro e soberbo firmamento. Vênus, em conjunção com o Sol, por aquela data, não estava visível. Por seu lado, Júpiter, com um brilho cada vez mais fraco (grandeza 1,6, aproximadamente) levantava-se com muita dificuldade a oeste, a pouca distância do esplêndido cacho estelar das Plêiades. E, no mais alto, disputando entre si a primazia, as refulgentes estrelas Régulo, Capela, Aldebarã, Betelgeuse e Arcturo, envolvidas pelas constelações de
Leão, Áuriga, Touro, Oríon e Bootes, respectivamente. Jesus surpreendeu-me, quando alimentava a fogueira com nova carga de lenha.
- Jasão - disse-me - não dormes? Sabes como vão ser duras as próximas horas. Devias descansar como todos os outros...
Sentado junto do fogo olhei-O com curiosidade, ao mesmo tempo que O convidava a responder a uma pergunta que estava em mim desde que O vira afastar-se para o olival:
- Mestre, por que razão um homem como Tu necessita da oração? Porque, se não estou enganado, foi o que disseste durante este tempo...
O Galileu hesitou. E antes de responder, voltou a sentar-se, mas desta vez junto de mim.
- Dizes bem, Jasão. O homem, enquanto padece a sua condição de mortal, procura e precisa de respostas. E em verdade te digo que essa sede de verdade só Meu Pai a pode serenar. Nem o poder, nem a fama, nem sequer a sabedoria, conduzem o homem ao verdadeiro contato com o reino do Espírito. É pela oração que o homem procura aproximar-se do infinito. O meu espírito começa a estar aflito e também eu necessito do consolo de Meu Pai.
- Será que a verdadeira sabedoria está no reino de Teu Pai?
- Não... Meu Pai é a sabedoria.
Jesus acentuou a palavra é com uma força que não admitia qualquer discussão.
- Então, se eu rezar, posso saciar a minha curiosidade e iluminar o meu espírito?
- Sempre que essa oração nasça realmente no teu espírito. Nenhuma súplica recebe resposta, se não vier do espírito. Em verdade, em verdade te digo que o homem se engana quando tenta canalizar a sua oração e os seus pedidos para o benefício material próprio ou alheio. Essa comunicação com o reino divino dos seres de Meu Pai só obtém a devida resposta quando obedece a uma ânsia de conhecimento ou consolo espiritual. O restante - as necessidades materiais, que tanto vos preocupa - não são conseqüência da oração, mas sim do amor de Meu Pai.
- Por isso insististe tanto em procurar o reino de Deus e a sua justiça... ?
- Sim, Jasão. O resto sempre vos é dado por acréscimo...
- E como devemos pedir?
- Como se já vos tivesse sido concedido. Recorda que a fé é o verdadeiro suporte dessa súplica espiritual.
- Dizer que a oração - assim formulada - sempre obtém resposta. Mas eu sei que isso nem sempre foi assim...
O Galileu sorriu com benevolência.
- Quando as orações provêm, em verdade, do espírito humano, por vezes são tão profundas que não podem receber resposta enquanto a alma não entra no reino de Meu Pai.
- Não compreendo...
- As respostas, não o esqueçais, sempre consistem em realidades espirituais. Se o homem não alcançou o grau espiritual necessário e aconselhável para assimilar esse conhecimento emanado do reino dever esperar - neste mundo ou noutros - até que essa evolução lhe permita reconhecer e compreender as respostas que, aparentemente, não recebeu no momento do pedido.
- Isso explicaria aquele angustioso silêncio que em certas alturas parece constituir a única resposta à oração?
- Sim. Mas não confundas. O silêncio não significa esquecimento. Como te disse, todas as súplicas que nascem do espírito obtêm resposta. Todas... Deixa-me que te explique com um exemplo: o filho está sempre no direito de perguntar a seus pais, porém, estes podem demorar as respostas, à espera que a criança adquira a maturidade suficiente para as entender. A grande diferença entre os pais humanos e o nosso Pai verdadeiro está em que aqueles esquecem por vezes que são obrigados a responder, ainda que seja ao cabo dos anos.
- Se é assim, quando morrermos, todos seremos sábios...
- Insisto que a única sabedoria válida no reino de Meu Pai é a que brota do amor. Depois de passar pela morte, ninguém ser sábio se antes não o tiver sido em vida...
- Devo então pensar que a demora na resposta à minha súplica é sinal do meu progressivo avanço no mundo do espírito?
Jesus olhou-me com complacência.
- Existe uma quantidade de respostas indiretas de acordo com a capacidade mental e espiritual daquele que pede. Mas, quando uma súplica fica temporariamente em branco, é freqüente presságio de uma resposta que encherá, no devido dia, um espírito enriquecido pela evolução.
- Porque é tudo tão complexo?
- Não, querido amigo. O amor não é complicado, é a vossa natural ignorância que vos precipita na escuridão e vos faz pender para uma permanente justificação dos vossos erros.
Fiquei em silêncio. Aquele homem tinha razão. Só os homens tentam desesperadamente justificar-se e justificar os seus fracassos...
Levantei os olhos para as estrelas e, apontando-lhe aquela maravilha, disse-lhe:
- Que sentes perante esta beleza?
O Galileu elevou também os olhos para o firmamento e respondeu com melancolia:
- Tristeza...
- Porquê?
- Se o homem não é capaz de receber na sua alma a grandeza desta obra, como poderá captar a beleza daquele que a criou?
- É Deus tão imenso quanto dizes?
- Mais do que acreditar na imensidão de Meu Pai, deves acreditar na imensidão da promessa divina. Transborda o espírito do homem e chega a originar vertigem nas legiões celestiais...
- Já me explicaste, mas, realmente o acesso ao reino do Teu Pai está ao alcance de todos os mortais?
- O reino de nosso Pai - corrigiu-me Jesus - está no coração de todos e em cada um dos seres humanos. Só os que despertam para a luz do evangelho o descobrem e nele penetram.
- Então, todas as religiões, credos ou crenças podem levar-nos à verdade?
- A verdade é uma e o nosso Pai reparte-a gratuitamente. É possível que o gosto e a beleza possam ser tão caros quanto a vulgaridade e a fealdade, porém não acontece o mesmo com a verdade: esta é um dom gratuito que dorme em quase todos os humanos, sejam ou não gentios, sejam ou não poderosos, sejam ou não instruídos, sejam ou não malvados...
- A quem aborreces mais?
- No coração de Meu Pai não há lugar para o ódio... Deverias sabê-lo. Defende-te só dos hipócritas, mas nunca vertas neles o veneno da vingança.
- Quem é hipócrita?
- Aquele que prega o caminho do reino celestial e, em troca, se instala no mundo. Em verdade te digo que os hipócritas enganam os simples de coração e não satisfazem mais que os medíocres.
- Quem estimais mais: um homem espiritual ou um revolucionário?
O Mestre sorriu, um tanto surpreendido com a minha pergunta. E, pousando a mão esquerda no meu ombro, respondeu com firmeza:
- Prefiro o homem que atua com amor...
- Mas quem pode conseguir amar mais?
- Pergunta melhor, quem pode conseguir compreender mais?
- Quem?
- Aquele que é capaz de amar tudo. Mas, cautela, Jasão, aquele que ama de verdade não coloca a palavra amor por cima da sua porta, procurando justificar-se perante o mundo. E o que dá, também não escreve a palavra caridade para que todos o reconheçam. Quando alguma vez vires essas palavras, desavergonhadamente exibidas no mundo, não duvides de que têm a única finalidade de enriquecer e enaltecer quantos a esgrimem e desfraldam. O reino de Meu Pai é semelhante a uma mulher que levava o cântaro cheio de farinha. Enquanto seguia por um caminho afastado partiu-se a asa e a farinha derramou-se atrás dela pelo caminho. A mulher não notou e não soube da sua infelicidade. Quando chegou a casa pousou o cântaro na terra e encontrou-o vazio.
- Aquele que é capaz de amar tudo!... - repeti, com um ligeiro movimento de cabeça. - Como isso é difícil...
- Nada existe de difícil para aquele que aprendeu a ceder.
- Mas, que me dizes das injustiças? Também devemos aprender a amar os que nos humilham ou tiranizam?
- Quando assim acontecer, pede explicações ao teu irmão, mas nunca o odeies. Só quando olhardes vossos irmãos com caridade podereis sentir-vos contentes.
- Começo agora a compreender - comentei, quase só para mim porque o meu mundo se sente infeliz...
- O maior erro do teu mundo - respondeu Jesus - é a sua falta de generosidade. O que conhece e pratica o amor não costuma ter necessidade de perdoar: está sempre disposto a compreender tudo.
- É possível que estejas certo, mas sempre pensei que o grande erro do nosso mundo era o seu enfartamento tecnológico...
O Nazareno olhou-me com uma infinita afabilidade.
- Deveis ter paciência e confiar. A humanidade, por vezes, embriaga-se e embota com as suas próprias descobertas e triunfos, esquecendo que o seu autêntico estado natural reside na serenidade do espírito. No dia em que desperte de tão pesada letargia voltará os olhos para o caminho do amor: o único que conduz à verdadeira sabedoria. O cansaço começava a apoderar-se de ambos e, de mútuo acordo, decidimos descansar as escassas horas que faltavam até à madrugada.
Enquanto me envolvia no manto, acomodando-me o melhor que pude debaixo de uma oliveira, uma estrela fugaz - uma "lírida" passou diante das estrelas Kappa Lyrae e Nu Herculis, rasgando o véu do firmamento e o da minha profunda melancolia. Sem que tivesse intenção, começara a amar aquele homem... 



Referência:
J J Benítez. Operação Cavalo de Tróia 1 - Jerusalém. Págs. 308-313.

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