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13 de novembro de 2025

Convivendo com o mal: A luta contra os demônios no monaquismo antigo (1ª Parte)

Convivendo com o mal: A luta contra os demônios no monaquismo antigo; livros, cristianismo
Cap. 1 - A natureza dos demônios

A doutrina dos antigos monges sobre os demônios é uma doutrina prática, e não teórica. É mais importante sabermos conviver retamente com os demônios do que especularmos sobre sua natureza e sua essência. Não obstante, é possível encontrarmos algumas afirmações sobre sua natureza. Os demônios inicialmente eram anjos. Mas separaram-se de Deus, e por isso tornaram-se maus. Agora eles tentam seduzir os homens para o mal. Evágrio conhece três categorias de seres racionais: os anjos, os demônios e os homens. E a cada uma destas três ele atribui uma das três forças da alma, a nous (espírito) aos anjos, o thymos aos demônios, e a epithymia (o desejo) aos homens. O thymos é a parte emocional da alma, a parte excitável, de onde surgem as emoções violentas, como a ira, o ódio e a inveja. O demônio caracteriza-se pela predominância do thymos, a parte da alma que pode se tornar excitada e confusa. A ira cega, que se enfurece e que esbraveja contra os outros, é para Evágrio uma essência do demônio. Uma vez ele chega a identificar o demônio com um homem possuído e excitado pela ira:

Vício algum faz a razão transformar-se de tal modo em demônio como a ira, porque ela faz a parte emocional da alma revoltar-se [...]. Não julgues que o demônio seja outra coisa senão o homem possuído pela ira.

Aos demônios os antigos monges também atribuíam um corpo, se bem que essencialmente mais leve do que o dos homens. Consiste sobretudo de ar. O ar é também a região onde os demônios se encontram. Eles podem mover-se mais rapidamente que os homens, eles voam. São frios como o gelo. Normalmente são invisíveis para nós, mas podem assumir determinadas aparências. Mas não podem transformar-se em um corpo, como os anjos, mas apenas imitar as formas e as cores de um corpo, e assim nos iludir. Mas também podem tornar-se perceptíveis para nós como vozes que se ouvem. O ponto de contato entre a capacidade do conhecimento humano e os demônios é a fantasia. Os demônios provocam em nós imagens da fantasia, ou fazem-nos sonhar enquanto dormimos. Como possuem um corpo, os demônios também estão ligados a objetos corpóreos, através dos quais eles agem sobre a fantasia. Provocam imagens de coisas visíveis na alma do homem, e de acordo com sua natureza de thymos eles fazem estas imagens ser acompanhadas de violentas emoções

Frequentemente utilizam-se de nossas lembranças, e então provocam emoções com as imagens da memória, através das quais podem impelir-nos na direção intencionada. Seu instrumento usual para agir sobre nós são os maus pensamentos. Com frequência os maus pensamentos são identificados com os demônios, de tal forma que nem sempre se pode saber se os maus pensamentos são eles próprios os demônios ou se são provocados pelos demônios. A luta com os demônios realiza-se sobretudo como luta com os próprios pensamentos, onde trata-se sempre de pensamentos carregados de afetos, portanto nunca pensamentos puramente intelectuais. Pois só os pensamentos de caráter emocional é que são por Evágrio atribuídos aos demônios. Ele distingue pensamentos angélicos, pensamentos demoníacos e pensamentos puramente humanos. Os pensamentos que nos são inspirados pelos anjos fazem indagações a respeito das coisas, por que elas foram criadas, para que servem, qual sua natureza e o que elas simbolizam. Os pensamentos puramente humanos, só podem reproduzir no espírito a forma de uma coisa. Os pensamentos provenientes dos demônios sempre veem as coisas com paixão e emoção. Eles consideram, por exemplo, como podemos possuir as coisas, que prazer elas nos proporcionam, ou se podem atrair para nós fama. [1].

Os demônios são espertos, traiçoeiros, eles mentem e enganam. Em comparação com os anjos são ignorantes. Eles não podem olhar para o íntimo da alma do homem, mas dependem dos comportamentos visíveis para reconhecer o estado da alma humana: da atitude corporal, da voz, da maneira de andar. Não obstante, muitas vezes eles provocam espanto nas pessoas predizendo-lhes os acontecimentos. Antão explica esta capacidade através da leveza de seu corpo. Quando irmãos se põem a caminho para fazer-nos uma visita, eles correm à frente e antecipam-nos sua chegada. [...] p. 19.

Os demônios são capazes de dominar um homem de tal forma que ele se torna possesso. Provocam doenças como esquizofrenia, epilepsia, loucura e histeria. As histórias dos monges descrevem os mais diversos sintomas das doenças psíquicas, por eles atribuídas aos demônios. Um monge come suas próprias fezes (coprofagia), ou se coça até provocar feridas. Outros são empurrados pelos demônios para um lado e para outro, alguns impelidos ao suicídio.

Se analisarmos mais de perto as afirmações dos monges a respeito dos demônios, percebemos que são tentativas de explicar os fenômenos. Não são definições, nem pretendem saber exatamente o que os demônios realmente são. Em sua linguagem mitológica os monges descrevem realidades psíquicos. Jung, como empirista, tenta abordar os mesmos fenômenos descritos pelos monges em sua demonologia. As duas tentativas de abordar a realidade devem simplesmente ser postas lado a lado, sem se emitir qualquer juízo sobre qual é a que explica melhor a realidade. [...].

Jung fala dos demônios em conexão com sua doutrina dos complexos autônomos. A projeção é “uma transferência inconsciente e não intencionada de um fato psíquico subjetivo para um objeto exterior”. Quando nós transferimos desejos ou emoções para o outro, não estamos vendo nele a realidade. Deixamo-nos enganar por nossas próprias projeções, somos dominados por elas. Esta situação era descrita pelos antigos como ser enganado por um demônio. De modo semelhante, era através do demônio que se entendia o efeito das projeções alheias sobre nós. Quando outros nos lançam suas projeções, eles com isto exercem sobre nós um poder a que fica difícil subtrair-nos. As projeções são como uma espécie de projétil que um homem mau nos atira e que nos faz adoecer. M. L. von Franz, uma discípula de C. G. Jung, escreve a respeito deste efeito negativo que as projeções alheias provocam sobre nós:

“Logo que uma pessoa projeta sobre outra um pouco de sua sombra, esta se sente estimulada a tais discursos maldosos. As palavras (acusações, indiretas) que atingem o outro como projéteis simbolizam o fluxo de energia negativa que alguém projeta sobre o outro. Quando somos alvo das projeções negativas de outra pessoa, muitas vezes nós sentimos quase que fisicamente o ódio do outro, como se fosse um projetil”.

Para Jung, a causa das projeções são os complexos. Jung define o complexo como...

“A imagem de uma determinada situação psíquica possuidora de viva carga emocional, e que além disto comprova-se como incompatível com a situação ou a atitude habitual da consciência. Esta imagem possui uma forte unidade interior, possui sua integridade própria, além de dispor de um grau de autonomia relativamente elevado”.

Na raiz de um complexo encontra-se um conteúdo com ênfase no sentimento, e cuja menção desperta em nós emoções violentas, mas que nós reprimimos de nossa consciência. Um complexo leva-nos a “um estado de falta de liberdade, a pensarmos e a agirmos compulsivamente”. p. 22

Ele possui uma certa autonomia. No sonho os complexos aparecem personificados. Por isso Jung mostra compreensão para o fato de os antigos haverem considerado os como seres autônomos. Com bastante frequência eles vêm ao nosso encontro como se fossem pessoas. Para Jung eles são partes da psique sob tensão e, sendo inconscientes, muitas vezes conseguem alcançar o domínio sobre o eu. Jung chama isto então de identidade de complexo, e acha:

“Perfeitamente moderno, na Idade Média este conceito possuía um nome diferente: chamava-se possessão. Não achamos, de certo, que esta situação seja inofensiva, mas em princípio não existe diferença entre um complexo comum e as selvagens blasfêmias de um possesso. Trata-se apenas de uma diferença de grau”.

[...].

Jung faz distinção entre dois complexos diferentes: o complexo da alma e o complexo do espírito. O complexo da alma ele o atribui ao inconsciente da pessoa. Portanto ele surge por repressão de conteúdos que por razões morais ou estéticas foram excluídos da convivência. O complexo da alma precisa ser integrado pelo homem. A “perda” de um complexo da alma é sentida como doentia. O complexo do espírito surge quando determinados conteúdos do inconsciente coletivo penetram na consciência. O complexo do espírito é percebido pelo homem como estranho, como uma coisa a um tempo ameaçadora e fascinante. Logo que tal conteúdo é retirado da consciência, a pessoa sente-se aliviada. No complexo do espírito algo de estranho vem ao nosso encontro, sobrevêm-nos pensamentos estranhos e inauditos, o mundo se modifica, a gente sente-se ameaçado, atacado.

No complexo do espírito não nos resta outra escolha senão expulsá-lo da esfera da mente. Os antigos expressavam isto dizendo que os demônios têm que ser expulsos. Franz fez a experiência de que com alguns pacientes não existia outra alternativa senão subtrair-se ao confronto com o demônio interior através da fuga.

Não se pode senão aconselhar ao paciente que na medida do possível mantenha-se longe das condições e situações que possam entrar em contato com o complexo [...]. De fato, frente a determinadas poderes sombrios no próprio íntimo não se pode fazer outra coisa senão fugir, ou de alguma maneira mantê-los afastados.

Jung vê uma íntima ligação entre o complexo e o afeto. Ele acha que “todo afeto tende a transformar-se da hierarquia da consciência e se possível arrastar atrás de si o eu”. Jung lembra-nos a experiência que fazemos quando nos deixamos arrastar por declarações imprudentes. Dizemos então que “a língua nos traiu”, com o que manifestamente estamos expressando que o discurso transformou-se em uma entidade autônoma, que nos arrastou e nos levou consigo. Por isso não é senão muito natural que os antigos vissem aí a atividade de um espírito, de um demônio. O demônio seria a imagem de um afeto autônomo – um afeto personificado.

Retomando das explanações de Jung para a demonologia dos monges da Antiguidade, precisamos primeiramente fazer algumas distinções. Jung se ocupa sobretudo com o fenômeno da possessão, por conseguinte da doença. Também os antigos monges relacionam a possessão com os demônios. Mas para eles não é a possessão que constitui o fenômeno mais importante. Jung é médico, e como médico ele está interessando em curar doentes. Mas para os monges a cura dos possessos é apenas uma consequência do reto convívio com os demônios. Para os monges o que importa na luta com os demônios é o ocupar-nos todos os dias com o mal, a maneira de nos comportarmos quando somos desafiados e tentados. [...]. p. 24. 

Neste sentido o ocupar-se com os demônios é uma maneira proveitosa de lidar com o inconsciente, sobretudo com os afetos e emoções. Projetando certas realidades íntimas sore os demônios, as coisas e as pessoas se libertam de ficar presas às projeções. Na demonologia os monges ficam conhecendo o mecanismo de projetarmos sobre os outros nossos próprios desejos e emoções. Não é o próximo que é culpado por ficarmos com raiva, mas sim um demônio, que através de uma pessoa ou de um comportamento que os perturba que provocar raiva em nós, para nos acorrentar ao afeto negativo. p. 25.

Quando falam dos demônios, os monges estão levando em conta a seriedade e multiplicidade das ameaças que mal significa para nós. Não é apenas com um pouquinho boa vontade que se vence o mal. Pelo contrário, o mal nos enfrenta como um demônio refinado e com técnicas bem boladas. Quando o homem se abre à sua própria realidade, ele sente-se atacado e em perigo por causa do abismo impenetrável do mal. É esta experiência que é expressa pelos monges quando atribuem as ameaças do mal ao demônio. O que importa não é conceito, mas sim o fenômeno que o conceito ou imagem do demônio deseja interpretar. O que importa para a demonologia, é dar-nos uma orientação para lidarmos corretamente com o mal em nós. Mais importante, portanto, do que conhecer a essência dos demônios é conhecer as suas técnicas. GRÜM. Anselm. p. 25.


29 de outubro de 2025

TRECHO DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (FINAL)

Livro; Edwiges - A santa libertária; Toninho Vaz; Evangelhos
As chagas reproduziram as dores do calvário que ela cultivava como um jardim de flores. Muito antes do primeiro sinal, Edwiges surpreenderia a todos pedindo que lhe trouxessem frei Mateus, nessa época seu confessor. Ela queria receber a extrema-unção [7]. Irmã Adelaide reagiu prontamente:

Como, minha senhora, pode ferir nossos corações pedindo a extrema-unção se a senhora está bem de saúde? Esse sacramento é para aqueles que estão próximos da morte.

Edwiges respondeu com serenidade:


Caríssima Adelaide, convém considerar que com o Sacramento da Unção os espíritos cristãos armam-se com armaduras espirituais contra as forças do mal. Por isso ele deve ser recebido com suma devoção pelos fiéis. Temo que, agravando-se a doença, eu não esteja mais em condições de receber o Sacramento com a devoção que ele merece. Quero estar bem preparada para ir ao encontro do Senhor Jesus.

 A historiadora Geneviève D’Haucourt explica o ritual:

Quando a morte se aproxima, o doente prepara-se para ela como para um ato religioso, o mais importante de sua vida, visto que ele vai fixar seu destino eterno. Nessa hora fatal, o cristão na Idade Média rememora sua vida e purifica-se de todos os seus erros através de uma confissão geral. O doente chama então o notário ou o cura e faz seu testamento: “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.”

No caso de Edwiges, que já havia doado seus bens materiais ao mosteiro, havia apenas uma formalidade a cumprir de ordem espiritual: a extrema-unção. Com esta providência tomada, estaria encerrada sua missão na terra. [...]. p. 77

[...].

Quem estava no quarto participava das preces seguindo a orientação de um monge responsável pela alegoria – que deve ser entendida, neste contexto, como o método de pensar medieval. Assim, podemos relacionar como alegoria o temor ou o respeito ao crucifixo (ícone), a fé incomensurável na justiça divina e o significado das trevas como cenário do inferno. O que significa dizer que a representação do mundo para eles era toda simbólica, tudo sempre agregava um valor a mais do que apenas sua significação material e literal. Edwiges, sempre sensível, permaneceu serena durante toda a cerimônia, vestindo seu hábito branco da Ordem Cisterciense. E mais: na intimidade dos seus aposentos, como segredo exclusivo para Adelaide e a filha Gertrudes, dizia ter recebido uma visão celeste, uma revelação de que seus dias estavam contados. Ela trazia dentro de si, oculta e anestesiada pela blindagem espiritual, uma doença grave e fatal que vinha lhe consumindo as energias. Seu tratamento, prescrito e acompanhado pelos médicos, previa o uso de ervas, bálsamo, sementes e raízes aplicados em forma de infusão, óleo ou pomada. [8].

[...].

Um aspecto curioso do calvário de Edwiges, em Trebnitz, se deve à discussão prévia, encabeçada pela filha Gertrudes, sobre o local onde a mãe deveria ser sepultada. É possível mesmo que o assunto tenha sido apresentado pela própria Edwiges, que publicamente mantinha uma forte convicção: “Eu quero ser sepultada num cemitério comum.”

Talvez, para qualquer outra pessoa, este desejo explícito não pudesse ser levado a sério, mas, tratando-se de Edwiges, tal anúncio soava como uma sentença perturbadora. Afinal, todos sabiam que suas palavras nunca foram despropositados. Sempre revelavam uma intenção segunda, mais profunda, longe das falsas aparências ou da humildade cabotina. Edwiges era, por assim dizer, uma entidade em missão radical na vida. Apesar disso, haveria forte resistência da filha:

“Minha mãe, queremos lhe oferecer um lugar ao lado do sepulcro de nosso pai, Henrique. Aqui nesta igreja em casa.”

Ela recusou:

“Se for absolutamente necessário que eu seja sepultada na igreja, não coloquem meu corpo no túmulo de seu pai. Ficamos tanto tempo separados de leito que não quero estar legada a alguém de quem, por amor à castidade, resolvi ficar separada em vida.”

A filha retrucou:

“Então, mãe, mandarei sepultá-la com seu filho Henrique.”

Edwiges ponderou, messiânica:

“Não quero ninguém como companheiro de túmulo. Se for para sepultar-me na igreja, que seja diante do altar de São João Evangelista.”

Ela havia escolhido um altar da igreja de São Bartolomeu Apóstolo, onde existiam diversas sepulturas de crianças, seus netos e sobrinhos, que lhe invocavam pureza e inocência. Por fim, a filha Gertrudes sugeriu a ela, uma sepultura diante do altar de São Pedro, [...]. Por fim, exaurida, Edwiges, que tinha consciência da sua importância como líder espiritual, preferiu apenas profetizar:

“Se fizerem isso, mais tarde irão se arrepender pelo incômodo que minha sepultura vai causar.”


Em Nome do Pai

Informações colhidas posteriormente junto às freiras de Trebnitz e ao monge Jacinto indicam que Edwiges percorreu um longo calvário antes de morrer. Talvez mais de um ano, tempo suficiente para consolidar a fama do mosteiro como um lugar de peregrinação e romaria. Falava-se com entusiasmo dos milagres realizados pela santa em nome de Deus: cegos que voltavam a enxergar, mortos que ressuscitavam, aleijados que recebiam a cura e presos que ganhavam liberdade. Todos queriam vê-la, tocá-la...

Em 8 de setembro, dia da Natividade de Nossa Senhora, todas as freiras do mosteiro estavam fora para participar da solenidade. Apenas a devota Catarina ficou junto a Edwiges, quando houve o que se chamou de “aparecimento dos santos”, um convite para o “eterno banquete celestial na pátria bem-aventurada do Céu”. Catarina disse ter ouvido, dos lábios de Edwiges, as seguintes palavras:

“Bem-vindas minhas Santa Maria Madalena, Santa Catarina, Santa Tecla, Santa Úrsula...”

Foi uma conversa quase inaudível, quando Edwiges pronunciou outros nomes de santas e mártires que não foram registrados. Era como se ela estivesse recebendo uma comissão de frente celestial, encarregada de lhe dar as boas-vindas. Subitamente, da mesma forma que as luzes apareceram, elas se apagaram, e a visão terminou. Assim foi registrado.

Um fenômeno idêntico aconteceria durante uma segunda visita das irmãs Pinosa e Benedita, no dia de São Mateus, 21 de setembro. Edwiges, a certa altura conversa, pediu para elas se ajoelharam e rezarem; “ou vocês não estão vendo Santa Maria Madalena e Santa Catarina?”. p. 81.

[...].


O dia da criação

Na manhã de 15 de outubro de 1243 (no calendário bizantino, 1244), Edwiges recebeu a comunhão e pediu que lhe cobrissem a cabeça com o véu de sua sobrinha Isabel (Santa Isabel), anunciando aos presentes:

“Hoje eu vou para a casa do meu Pai”.

[...].

Perto do meio-dia, Ana seria anunciada e entraria no quarto chorando e abraçando a sogra, que tão bem compreendia e admirava. Ana era sincera nos seus sentimentos quando fez um apelo desesperado:

“A senhora não pode morrer agora. O que vaio ser da Silésia sem a sua presença? Estamos precisando da sua orientação.”

Edwiges respondeu com calma:

“De agora em diante caberá a você ser a mãe da nossa pátria.”

Nesse momento, Edwiges pareceu querer erguer-se na cama, tentando se apoiar sobre os cotovelos. Em seguida, deixou-se cair suavemente, sem muita agitação. Estava acabado. A santa havia morrido, aos 69 anos. Sua filha Gertrudes fechou-lhes os olhos. Os sinos da abadia começaram a repicar e um forte cheiro de incenso e mirra invadiu o ambiente. p. 84.

O biógrafo latino de Edwiges, autor das legendas, escreveu:

A beata Edwiges se foi deste mundo no Ano da Graça de 1243, por volta da hora das vésperas – conhecida também por hora canônica, o cair da tarde, quando Vênus (Vesper, em latim) costuma aparecer. E se transferiu assim para as delícias do Céu e para celebrar com todos o interminável repouso do sábado. 

[...]

Nas palavras do padre Montanhese, biógrafo brasileiro:

A notícia da morte da santa correu célere por todo o país. O luto era geral. Eles tinham perdido não um governante, mas sim uma mãe. Todos tinham certeza que Edwiges já estava junto a Deus, no Céu, atuando como a grande intercessora que sempre foi. O que aconteceria depois pode ser comparado a uma chuva de milagres. De todas as partes ouvia-se falar de curas miraculosas envolvendo as doenças mais perversas. Os endividados eram perdoados e salvos do perigo de morte. Houve até mesmo caos de mortos que retornaram à vida. p. 86.

O enterro aconteceria – malgrado os desejos de Edwiges – na igreja do mosteiro de Trebnitz, no mesmo salão onde estavam os restos mortais do marido Henrique e do filho Conrado. O túmulo dela ficaria à direita do altar e o de Henrique em frente. Porém, como ela havia previsto, as monjas iriam se arrepender dessa decisão. As multidões que visitavam o túmulo – e nos primeiros anos as romarias aconteceriam de forma tumultuada – acabaram com o silêncio do retiro. Em pouco tempo, Trebnitz se tornou um ponto de intensa peregrinação. [9]. Não haveria mais tranquilidade nem mesmo para a simplicidade das orações.


_______________________

7. Um dos sete sacramentos da Igreja Católica. Sacramento: sinal sagrado instituído por Jesus Cristo pra distribuição da salvação divina àqueles que, recebendo-o, fazem uma profissão de fé. Espécie de bênção aos doentes com um óleo próprio, o óleo dos enfermos. Além da extrema-unção, os outros sacramentos são: batismo, crisma (ou confirmação), eucaristia, penitência (ou confissão), ordem e matrimônio.

8. Outras ervas e sementes usadas como remédios nessas receitas: menta, louro, gengibre, limão, calêndula, camomila, Artemísia e pimentas. No caso de Edwiges, sabe-se que os médicos aplicavam nas feridas uma pomada à base de ervas, pimentas e bálsamo, sendo que as resinas eram utilizadas como amálgama para atingir a textura ideal. No caso dos expectorantes e descongestionantes, quase sempre feitos com menta, eucalipto e hortelã, o amálgama era parafina, que ajudava a moldar a massa aromática como uma bola.

9. O mosteiro de Trebnitz, depois de sobreviver a diversos incêndios e depredações ao longo dos anos – inclusive durante a Guerra dos Trina Anos, em 1648 –, foi desativado em 1810, com a morte de Dominica von Giller, sua abadessa. Parte do edifício seria vendida para dar lugar a uma fábrica de roupas. Atualmente, uma ala abriga a Casa das Irmãs de São Carlos, que administra o hospital conhecido por Trebnitz. A igreja ainda existe os túmulos de Henrique e Edwiges também.  

 

 

31 de agosto de 2025

TRECHOS DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (4ª PARTE)

O valor da liberdade

[...].

Algumas das histórias, envolvendo milagres de Edwiges, aconteceram quando Henrique I ainda estava vivo e exercendo seu pleno poder de duque:

Havia na região do mosteiro de Trebnitz um pobre que furtara um pernil de um vizinho. Preso, foi levado à presença do duque Henrique, marido de Edwiges, que o condenou à morte, exigindo a execução rápida e sumária do salafrário. Os parentes do condenado, sabendo da fama de Edwiges, foram procura-la pedindo clemência para o preso. Como sempre acontecia, ela acabaria atendendo às súplicas dos visitantes, argumentando com o marido que tinha sido um “erro pequeno para uma pena tão grande”. Henrique respondeu, um pouco constrangido, que era tarde demais, pois o condenado já devia estar enforcado. E concluiu que, acaso o homem ainda estivesse vivo, ele o perdoaria. Edwiges chamou um soldado de nome de Henrique Cato e mandou-o correr ao local da execução. Quando o soldado chegou, encontrou o corpo já balançando na corda, inerte. Tirando a espada da bainha, o soldado cortou a corda e o enforcado estatelou no chão. Em seguida, levantou-se são e salvo e correu para onde estava a duquesa Edwiges, agradecendo pelo verdadeiro milagre: ele estava livre.  

Este episódio foi apresentado oficialmente ao Tribunal de Roma diante dos procuradores Nicolau e Wirbina – um parente de Edwiges que estava ao lado quando o “milagre” aconteceu. p. 68.

Outro caso semelhante de enforcamento envolvia um facínora que fora julgado e condenado por ser inimigo do duque. Henrique ainda tentou evitar que Edwiges soubesse da condenação, orientando seus oficiais que a execução acontecesse nas primeiras horas do dia seguinte. A crônica dos Acta registra o episódio:

Quando Edwiges, segundo seu costume, estava se dirigindo à igreja para as orações diárias, encontrou Henrique no meio do caminho. Ela, que tinha conhecimento dos fatos, acusou-o de crueldade anticristã, exigindo a absolvição do homem que fora condenado pelo simples motivo de ser inimigo político dele. Henrique respondeu: “Eu o libertaria, mas ele já está morto”. Edwiges conseguiu reunir alguns delegados que a acompanharam até o local da execução, onde alguns corpos permaneciam pendurados. E, com relação àquele que julgavam morto, foi encontrado vivo. E, assim, sem nenhum ferimento, foi conduzido à presença de sua protetora, a incrível duquesa Edwiges. 

Muitos relatos falam da interferência de Edwiges também em casos de doenças e premonição. Não era de estranhar que, envolvida com extrema dedicação no tratamento de um exército de enfermos, doentes contagiosos e terminais, houvesse ela colhido um jardim de milagres com suas rezas e afetos. Existem pelo menos três histórias versando sobre uma determinada doença nos olhos, assim descrita na versão dos Acta: 

Uma freira do mosteiro de Trebnitz de nome Gaudência fora vítima de um problema realmente incômodo, que se traduz numa espécie de película esbranquiçada a cobrir os olhos, impedindo a visão. Uma cortina. Ela procurou Edwiges alegando que o problema a estava prejudicando em tudo na vida, inclusive nos ofícios religiosos. No outro olho havia uma pequena parte da pupila que era insuficiente para reconhecer as pessoas. De nada adiantavam os esforços de irmã Juliana, outra freira do mosteiro, que desde o início cuidava da amiga. Quando Edwiges chegou aos aposentos da enferma, esta ajoelhou-se aos seus pés, implorando sua atenção para os olhos infectados e a cegueira. Edwiges reagiu com humildade, negando qualquer santidade:

Deus te perdoe, pois sou apenas um ser humano frágil como um vaso de barro. O que tu estás pedindo é coisa que só o Poder supremo pode fazer. É melhor rezar para Ele e não esperar o meu benefício”. 

A freira Gaudência insistiu, pedindo um gesto apenas. Edwiges, movida pela piedade e considerando as circunstâncias, traçou o sinal-da-cruz sobre os olhos da enferma, dizendo:

 – “Irmã caríssima, que o Senhor te abençoe!”

No mesmo momento a mancha desapareceu – e a visão completa seria recuperada em algumas semanas. Tudo indica que estejamos falando de duas doenças comuns e semelhantes na aparência: catarata e/ou pterígio, frequentemente confundidas pelos leigos. Como revelam os compêndios médicos, ambas as doenças costumam aparecer em pessoas que trabalham ou vivem em lugares com muito vento ou poeira, provocando ardor e queimação. Outras premonições e visões seriam preditas pela santa Edwiges, mas para não ficar muito redundante, resumidamente serão descritas. A primeira visão aconteceu numa noite de natal, sobre a ocorrência de uma grande mortandade que aconteceria, e foi o que aconteceu. Uma grande carestia assolou o ducado e muitos pobres morreram de fome e frio. A outra visão era a respeito de Isabel, a filha de sua irmã Gertrudes, sua sobrinha. Um mensageiro chegou ao mosteiro anunciando seu falecimento. Edwiges reagiu com rapidez: “A notícia que acaba de dar não é de tristeza, mas de júbilo. Ela foi para o Céu”. Tempos depois, Isabel seria declarada santa pela igreja. 


A ação de graças

Sabe-se que essas histórias e a mística de Edwiges assombravam as monjas e criadas que moravam no mosteiro. Todos se apegavam com fé ao seu carisma espiritual, procurando um bálsamo para suas dores do corpo e da alma. A beata negava qualquer milagre, mas, a cada tentativa de evitar a divulgação dessas histórias, mais o mito se consolidava. Uma mulher chamada Catarina, considerada criada especial do mosteiro, conhecida como hóspede [6], depois de penar com uma doença grave, agora estava convencida de que seu retorno à vida, após três dias de coma profundo, era mais um milagre de Edwiges. Catarina chegou a ser considerada morta, pois quando alguém havia aproximado uma vela acesa do seu dedo indicador, não houve reação alguma. Considerando que Edwiges tinha dito, após uma sessão de ladainha, que Catarina iria renascer a qualquer momento, quando a mulher recuperou a consciência e voltou a falar, todos creditavam os méritos à beata: “Milagre”, exclamavam. 

[...].

Certa vez, Catarina testemunhou um episódio envolvendo a cegueira de uma senhora de origem alemã, que recuperou a visão logo após Edwiges benzê-la com o sinal-da-cruz sobre os olhos. A mulher chorava por ter recebido de volta a luz, jurando venerar eternamente Edwiges, que reagia contrariada: “Não fui eu, mas o Senhor que te iluminou e te fez enxergar. Dedique a Ele teus agradecimentos”. 

Testemunhas que conviveram com Edwiges dizem que ela mantinha sempre o rosto imperturbável, mesmo diante de grandes calamidades. Sua enorme paciência vencia todas as vicissitudes do cotidiano. Seu comportamento tolerante desconcertava as pessoas. Era serena e afável, virtudes que caracterizam a essência de uma “santa pessoa”. Eis um trecho dos Acta: 

Nas cerimônias solenes da abadia, como acontecia na Quinta-feira Santa, Edwiges lavava os pés das monjas e dos doentes. Certa vez, sendo uma Quinta-feira Santa, a filha Gertrudes surpreendeu a mãe ao insistir em lavar seus pés. Foi quando a irmã Juliana, uma irmã residente, percebeu manchas de sangue na água e feridas nos pés de Edwiges. Eram chagas vivas de onde vertia o sangue da mártir. Ela procurava imitar a Paixão de Cristo martirizando o próprio corpo. 

Ao chegar a Sexta-feira da Paixão, Edwiges guardava um rigoroso jejum, fazendo o exercício de abstinência mais radical do ano. A falta de água e a sede tornavam sua boca e língua secas como uma lixa. Eram uma prática de martírio obedecida também por Francisco de Assis que, referindo-se às cinco chagas, tornava concreto o símbolo da stigmata – a perfuração miraculosa das mãos, dos pés e do flanco de Francisco, como se fosse produzida por pregos, repetindo as feridas de Jesus crucificado. [...].

[...].

Para efeito estatístico, existem dezenas (mais de trinta) relatos biográficos dos milagres de Edwiges nos Acta Sanctorum, agrupados nos capítulos “Milagres de Santa Edwiges durante a sua vida” e “Milagres de santa Edwiges após a sua morte”. Esse trabalho, de autor desconhecido (como referido nas considerações preliminares), apresenta uma seleta de histórias e prodígios conhecidos como Legendas de Santa Edwiges. 


O Martírio

O ano de 1243 foi de luto e ressaca na Silésia. Depois de dois anos de guerra, os exércitos mongóis finalmente tinham deixado o território polonês, seguindo em direção à Hungria, onde iriam promover outras ruidosas conquistas. O momento era de trégua, apesar do cenário caótico e desolador. [...]. 

Nesses dias, Edwiges, magra e doente, conheceria um monge chamado Jacinto (Hyacinth, em polonês), nascido de uma família nobre da Alta Silésia. Como Edwiges, ele também era dedicado aos pobres e necessitados. depois de peregrinar durante anos pela Áustria, Boêmia, mar Negro, Suécia e China, Jacinto está de volta à Cracóvia, sua terra natal. Ele reencontraria um lugar profundamente afetado pelos efeitos da guerra. As cidades tinham sido praticamente abandonadas por seus habitantes, que levaram as riquezas e deixaram os doentes e os feridos. O trabalho de Jacinto – cuidando das vítimas – no mosteiro dos Dominicanos (ele foi um dos primeiros apóstolos da Ordem) chamaria a atenção da Igreja e de Edwiges. Ele era 11 anos novo e viveria o suficiente para deixar um rastro de bondade e dedicação em seu caminho. É certo que Edwiges, gozando de grande reputação em vida, exerceria forte influência em Jacinto, que seria canonizado em 1594 pelo papa Clemente VIII com o nome de São Jacinto.

Jacinto e as monjas de Trebnitz, guardando as respectivas distâncias, seriam testemunhas da impressionante via crucis de Edwiges, agora flagelando-se até sangrar. Assim ressalta padre Ivo Montanhese, seu biógrafo brasileiro:

Podia-se dizer que Edwiges trazia a Paixão de Cristo em seu próprio corpo. Ela bem poderia exclamar: Estou pregada na cruz com Cristo”. 

[...]

_______________________

6. O termo hóspede aparece com maior frequência a partir do século XII e designa, como o nome indica, um forasteiro. Em sua versão masculina, é uma espécie de colono, um imigrante em busca de terras novas para cultivar. Com o crescimento da miséria no campo, os hóspedes cresciam na mesma proporção. Na abadia de Dunes, na França, em 1150, eles somavam 36 trabalhadores. Cem anos depois este contingente era de 248 pessoas. Quase sempre vinham de países sem liberdade e/ou oportunidades, e eram facilmente catalogadas como pessoas à margem do sistema produtivo. 



26 de março de 2025

TRECHOS DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (3ª PARTE)

Livro; Edwiges - A santa libertária; Toninho Vaz; Evangelhos
Uma Tragédia Familiar

Disputas violentas entre parentes – incluindo pais e filhos – beiravam a banalidade na Idade Média e eram decorrência de uma desesperada luta pela posse da terra, única forma possível de poder para um senhor feudal. Atos de crueldade promovidos por príncipes poloneses resultaram em inquérito instaurado pelo papa Gregório IX, que acusava Henrique de injúria e danos morais ao bispo de Gnensen e outras autoridades eclesiásticas. Essas questões ficaram conhecidas na história como Querela das Investiduras, a maior disputa entre a Igreja e o Estado, que regulava o papel e a importância do príncipe e do bispo no comando das ações. A questão começara no século XI e atravessaria o século XIII, quando os Estados se consolidavam pelas forças militares e ousadia dos príncipes.

No caso de Henrique, ele não apenas desdenhou as admoestações do papado como desautorizou seus procuradores a abrirem qualquer processo de defesa – levando as autoridades de Roma a pedirem sua excomunhão, que seria finalmente consumada pela retumbante decisão papal. Sabe-se que Edwiges sofreu muito nesse período, pois considerava uma tragédia a exclusão de Henrique do Reino dos Céus.

Parece não haver dúvidas de que Henrique era um homem valente e determinado, que não fugia à luta quando necessário. Em 1227, durante os conflitos deflagrados pela disputa familiar entre Otto, da Alemanha, e seu filho Wladislau, o nobre Henrique – que tinha uma aliança militar com o imperador – acabou gravemente ferido, sendo salvo das lanças por um soldado de nome Peregrino de Weszemberg, que acabou morrendo pela espada inimiga. Otto foi derrotado e expulso de suas terras pelo próprio filho. Mesmo ferido, Henrique conseguiu escapar e dias depois estava curado.

Durante uma disputa entre príncipes regionais – poloneses versus pomeranos –, Henrique I acabou prisioneiro do filho Conrado. Isso acontecia porque os herdeiros, ao adquirir terras e autonomia, ganhavam também uma dose extra de responsabilidade, ambição e ousadia, fazendo com que muitas vezes os laços familiares fossem superados por interesses políticos. Assim acontecia com Conrado, que num passado recente tinha sido o favorito do pai e, agora, tornara-se seu algoz.

Determinado em aumentar seu poderio na região. Conrado decide invadir uma missa e fazer de seu pai Henrique prisioneiro. Seu destino estava marcado: o filho decide mandar o pai para a região da Mazóvia. Foi Edwiges quem corajosamente viajou horas numa carruagem para apresentar-se diante do filho em defesa do marido. Dizem os relatos que Conrado, que já tinha recebido pedidos idênticos de outras autoridades influentes, capitulou diante da própria mãe. Como um anjo, ela o ameaça com a justiça divina – o que teria feito Conrado libertar o pai imediatamente. Seu poder de argumentação recebia em certos momentos o reforço de um enérgico tom messiânico, quase divino. Nos Acta Sanctorum, esse momento ficou assim registrado:

Quando Edwiges apresentou-se diante do filho, que inspirava ferocidade, este se transformou completamente, assumindo um aspecto lamentável, de alguém pilhado em flagrante, cabisbaixo, apavorado mesmo, ouvindo a mãe e prometendo humildemente fazer tudo o que ela mandasse. p. 52

O desfecho deste episódio revela que, com sua atitude determinada, Edwiges conseguiu não apenas a libertação imediata do marido, mas a reconciliação dos príncipes. Os registros dos Acta revelam que:

Henrique, o Pai, acabou deixando para Conrado a monarquia da Polônia e a tutela dos filhos do irmão Boleslau. Todos esses tratados foram firmados por juramento solene. Edwiges conseguia restabelecer a paz entre os príncipes.

[...].


A purificação

[...].

A fama da austeridade de Edwiges ultrapassava as paredes do mosteiro, criando um uma verdadeira onda (comentários) sobre seu retiro e modo de vida, onde o jejum era uma forma importante de mortificar e purificar o corpo e o espírito, como registram os Acta:

Observava o jejum todos os dias do ano, com exceção dos domingos e principais dias festivos, quando chegava a tomar duas refeições. Durante quarenta anos se absteve do consumo de carne e gorduras. Uma vez, seu irmão dom Egberto, bispo de Brambemberg, com quem ela mantinha boas relações, censurou-a por causa da severidade do regime. Dizia que ela não podia sacrificar sua vida a tal ponto. Ela, entretanto, se recusou a atender às ponderações do irmão dizendo que, com a ajuda de Deus, pretendia levar a cabo aquelas práticas de purificação que adotara exatamente por amor a Ele.

Certa vez, quando estava doente e fraca, Edwiges foi censurada pelo marido por só beber água morna nas refeições, recusando o vinho, que já nessa época era considerado saudável por suas propriedades medicinais. Contam os Acta:

Henrique ficou indignado, primeiro porque julgava aquele radicalismo realmente exagerado; e, segundo, porque a mentalidade da época atribuía à falta de vinho o frequente mal-estar que acometia a maioria das mulheres. Dizem os relatos que certo dia Henrique I chegou de surpresa à mesa onde Edwiges estava tomando a refeição, pegou a bilha que estava à frente dela (com água) e levou-a à boca. Afirmam as testemunhas que Henrique provou o esplêndido sabor de um vinho fino, reagindo com severidade ao delator, um servo do mosteiro de nome Chevalislau, que jurava ter colocado água na bilha, como fazia todos os dias. Era mais um milagre de Edwiges, agora transformando água em vinho. No final, ela ainda consolou o delator, que ajoelhado a seus pés pedia perdão e jurava inocência: “Minha Santa Edwiges, eu tinha a melhor das intenções, pois temia pela sua saúde...” Este episódio revela o prodígio de Edwiges, que assim fortalecia sua devoção.

Do ponto de vista da solidariedade, a devoção de Edwiges, aliada à sua riqueza pessoal, permitiram que durante duas décadas ela pudesse construir uma grandiosa obra social, erguendo e colocando para funcionar vários hospitais e mosteiros. Este capítulo vai tratar apenas das obras inteiramente executadas pelo casal, deixando de lado a recuperação e a restauração de hospitais e igrejas menores – que somam mais de uma dezena. As ações assistenciais de Edwiges visavam ao conforto do corpo e da alma dos necessitados. p. 55

[...], o primeiro mosteiro construído por Henrique e Edwiges, depois de Trebnitz, seria a Casa Saganense (na aldeia de Sagano), em 1207, onde antes existia a abadia de Santa Maria de Arena. [...]. Em seguida, veio o mosteiro de Camencz (ou Kamenza), cujas obras começaram em 1207 e terminaram em 1216. [...]. No decorrer dos anos, muitos monges de diferentes ordens passaram por ali: os Cônegos Regulares saíram de Camencz em 1222 e foram substituídos pelos Cistercienses, que ali permanecem até os dias de hoje.

A quarta obra de importância construída na Silésia pelo casal Henrique e Edwiges seria o hospital e Albergue dos Estrangeiros, em Vlatislávia (como os poloneses chamavam Breslau). Eles atendiam a um pedido de ajuda de dom Witoslau, abade do mosteiro dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho. Foi o próprio Henrique, o Barbado, quem lançou a pedra fundamental e financiou a construção do hospital, que tinha capacidade para atender sessenta pessoas. Toda a administração humana, digamos, do hospital era de responsabilidade de Edwiges, que orientava enfermeiros e serventes, tratando pessoalmente dos doentes como na casa de Lázaro, ela dizia. [...]. Em seguida, fazendo uma conexão com o que acontecia em Assis, na Itália, Edwiges planejou e executou a construção do mosteiro de Goldberg (monte áureo), que a seu convite seria administrado pelos frades menores ou franciscanos. O mosteiro nascia apoiado financeiramente pela Fundação do Monte Áureo, que seria inaugurado entre 1219 e 1220. [...]:

A divina Edwiges consagrou esse lugar aos estudos da doutrina e da religião antes dos anos 300. Com grandes gastos, mandou buscar frades franciscanos em Assis, uma cidade na região da Úmbria, na Itália, onde um homem religioso chamado Francisco reunira um pequeno grupo de pobres. Estes frades, também conhecidos como mendicantes, foram instalados primeiro na aldeia de Monte Áureo, onde foi criada uma escola para propagar o Evangelho na língua local.

[...]

Outras iniciativas de Edwiges, incluídas na categoria “obras assistenciais”, se seguiram com a construção do convento Henricoviense, que ficou pronto em 1227, e seria administrado pelos monges Cistercienses. Essa obra vinha anexada ao Instituto Eclesiástico Henricoviense, uma forma jurídica criada para captar recursos oficiais. [...]. (p. 58). A sétima e última obra de Edwiges, a construção do mosteiro de Boleslávia (antiga Bunzlau), em 1234, administrado pelos Monges Pregadores, consolidava uma das maiores iniciativas sociais da Idade Média. Pouco depois, esse mosteiro seria atacado, destruído e os monges mortos, inaugurando um período de fúria e violência que devastaria grande parte do território europeu. Eram os mongóis arrombando os portões dos castelos e abadias.

 

Uma vida exemplar

Ano de 1238. Apesar de longo tempo passado em frentes de batalha, Henrique I, o Barbado, iria morrer de doença e não de valentia, como era de se supor. Um pouco antes, Edwiges havia conseguido (com a ajuda dos filhos religiosos) uma absolvição papal para o marido, alegando que sua obra de caridade deveria neutralizar os motivos da excomunhão. Era, como se dizia no direito canônico, uma “questão rescindível”, que permitiria a Henrique recorrer da decisão. E assim foi feito. Agora, quando estava na região da Crosna, Henrique fora acometido de um mal súbito – uma doença não identificada, talvez infecção seguida de febre – e faleceu, longe de casa. Quando Edwiges chegou, Henrique já estava morto, cercado de servos de uma enfermaria que se lamuriavam diante do cadáver do patrono [3]. “Senhora, até o último instante seu esposo continuou chamando pelo seu nome”.

Por iniciativa de Edwiges, o marido seria também sepultado no mosteiro de Trebnitz, ao lado do filho Conrado. Trebnitz era, sem dúvida, o mais rico e bonito entre todos os mosteiros que havia na Silésia – e não eram poucos. Em seu túmulo está esculpido o epitáfio:

Tento chorar aqui, oh, duque Henrique, honra da Silésia. Aqui jaz ele, como um alicerce deste imenso fundamento (o mosteiro), pleno de virtudes: asilo dos necessitados, escola de costumes, castigo dos culpados. Reza, sejas tu quem fores, tu que daqui a pouco tiveres a felicidade de encontrar este lugar bom para o descanso, reza!

A morte do marido foi determinante pra Edwiges radicalizar uma postura de devoção ao espírito, elevando suas virtudes aos patamares clássicos da santidade. O filho Henrique II, o favorito de Edwiges, seria agora o herdeiro político do pai. As exéquias pela morte de Henrique I (uma mistura de homem religioso e senhor feudal) motivaram testemunhos eloquentes das freiras de Trebnitz, segundo Acta:

Enquanto todas choravam inconsoladas pela perda do excepcional protetor e patrono [4], como era visto o fundador de Trebnitz, Edwiges, sem derramar uma lágrima, se apresentou ante as irmãs censurando-as pela fraqueza de coração. Dirigia-lhes palavras de conforto para amenizar a tristeza. Não que ela nada sentisse pela morte do marido – que em vida tanto amara –, mas porque sempre se curvava diante da vontade divina. Ela também avaliava que, próxima de outras monjas, deveria ser um exemplo de constância e paciência. p. 60

Apesar disso, ela nunca aceitou oficialmente o título de religiosa ou monja – com reconhecimento pelo bispo –, preferindo trabalhar na condição de leiga. Argumentava que o voto de pobreza iria impedi-la de manter o patrimônio e, consequentemente, de continuar ajudando os pobres e necessitados. Ela nada queria para si, mas sabia muito bem como administrar seu patrimônio.  


A vida no Mosteiro

Houve um momento na vida de Edwiges em que toda a sua atenção estava voltada aos pobres e necessitados. Sua fama como beata milagrosa atraia a curiosidade de peregrinos que passavam pela Silésia – quase sempre a caminho de santuários franceses e espanhóis. Santiago de Compostela, na região da Galícia, era considerado um lugar místico para os católicos romanos, desde que no século IX anunciou-se a descoberta dos ossos do apóstolo São Tiago – James em inglês e Santiago em espanhol – naquelas plagas. A romaria de fiéis seguindo a estrela-guia passou a ser contínua e sistemática, até tornar-se atração turística [5]. Ao longo do sinuoso trajeto pelo território europeu, infestado de tribos nômades e selvagens, os peregrinos podiam contar, eventualmente, com a proteção dos Cavaleiros Templários.

O papa, entre 1227 e 1241, era Gregório IX, criador do Tribunal Eclesiástico da Inquisição, instituição que prendia, julgava e condenava os hereges. Foi Gregório quem proclamou santos Francisco de Assis, Domingos de Gusmão (Ordem dos Dominicanos), todos contemporâneos de Edwiges e mendicantes. [...]. O papa Gregório também se notabilizou pela luta travada durante anos contra a arrogância do imperador Frederico II e seus explícitos interesses pecuniários. p. 66. [...]. Fora Gregório também quem, alguns anos antes, acusara Henrique I, o Barbado, de violar as imunidades eclesiásticas em seu ducado, perseguindo e taxando as terras da Igreja. [...].

___________________

3. Patrono era o provedor do mosteiro ou abadia. Era o chefe – caput mansi –, como se refere um auto dos arquivos clunisianos.

4. O historiador Steven Runciman, em A História das Cruzadas, registra: “Depois de conquistar Kiev, na Ucrânia, parte do exército mongol seguiu para a Polônia, ao norte, pilhando Sandomir e Cracóvia. Houve uma batalha em Wahlsdadt, quando as tropas do duque Henrique seriam desbaratadas. Após devastar a Silésia, os mongóis foram para o sul, atravessando a Morávia até a Hungria”.

5. A passagem bíblica do Evangelho Segundo Marcos destaca aquela que seria a primeira peregrinação no mundo cristão: a dos três Reis Magos seguindo a estrela cadente até o recém-nascido menino Jesus. Assim que Baltasar, Melquior e Gaspar chegaram à manjedoura, em Jerusalém, no dia 6 de janeiro do primeiro ano da era cristã, ofereceram ao recém-nascido ouro, incenso e mirra.  


31 de dezembro de 2024

ELE TEVE QUE DESTRUIR SUA PRÓPRIA CASA PARA NÃO MORRER DE FRIO


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22 de novembro de 2024

TRECHOS DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (2ª PARTE)

 

livros; Santa Edwiges; Evangelho; parte 2
As virtudes de Edwiges

No primeiro dia de sol, ajudado pela irmã Adelaide, Henrique levou a mulher para conhecer os povoados vizinhos de Glogan e Loewenberg, onde ela encontraria, entre as ostentações dos nobres, uma quantidade assustadora de miseráveis perambulando pelas proximidades dos castelos. Todos famintos e debilitados.

Assim que aprendeu a se comunicar em polonês – começando pelas traduções das orações do Padre-nosso e da Ave-maria –, Edwiges costumava sair do castelo de Breslau com uma pequena comitiva (a cunhada Adelaide, que tinha a mesma idade, estava sempre junto) para visitar as choupanas vizinhas e avaliar as condições de vida de seus moradores. Edwiges estava engendrando, com o apoio luxuoso das finanças do marido e da própria economia, uma forma objetiva de assistência social, levando alimentos, agasalhos e esperança aos necessitados.

Sabe-se que o tom de formalidade predominava como norma nas relações conjugais da Idade Média. Marido e mulher eram duas entidades separadas, algumas vezes unidas pelos mesmos interesses e crenças. A relação sexual, por exemplo, era entendida como uma concessão de Deus visando à procriação. Era, portanto, algo formal. A castidade, nesse contexto, seria um apreço especial ao amor divino, transformado em renúncia aos prazeres da carne. Diante dessa conjugação de valores, Edwiges e Henrique decidiram, em comum acordo, criar algumas regras de conduta íntima. Por “comum acordo” entenda-se uma imposição dela que Henrique, por força de circunstâncias até mesmo políticas, acabou aceitando. O “acordo” tinha como primeira regra a abstinência sexual durante a gravidez e nos quarenta dias após o parto. O mesmo comportamento deveria ser observado durante a Quaresma, nas vigílias das grandes solenidades cristãs e aos domingos, por ser o dia do Senhor. Págs. 34-35.

Apesar dessas medidas restritivas, que falam muito da falta de afeto e do excesso de formalidade entre os cônjuges. Edwiges seria mãe aos 13 anos. Foi uma experiência frustrada, na verdade, pois o bebê – que seria batizado como o nome dela – viveu apenas três meses, de fevereiro a abril. Um ano depois chegava Ignês (ou Sofia, como aparece em alguns documentos), também morta prematuramente. Nessa época, a maioria dos recém-nascidos não passava dos primeiros meses e poucos dos sobreviventes chegavam à adolescência. As crianças sucumbiam às febres, gripes, diarreia e outras infecções, que em pouco tempo se tornavam graves e fatais. Não havia antissépticos e apenas algumas plantas serviam como remédio.

Henrique, que tanto esperava pelo primeiro filho, não se conformava com a falta de sorte e, revoltado, mantinha um comportamento agressivo com a mulher. Edwiges rezava na esperança de poder dar um herdeiro ao marido. Vestia-se com extrema simplicidade e fazia caridade em hospitais e asilos. Tentava livrar das grades os miseráveis, muitas vezes resgatando suas dívidas com os agiotas. Ela estava apenas começando a construir, com gestos simples e objetivos, aquela que seria considerada – no futuro – uma grande obra social. Foi nesse contexto que surgiu uma nova gravidez, a terceira, ainda incapaz de trazer esperança ou otimismo ao desalentado Henrique.

Dessa vez, porém, Edwiges resolveria passar a gravidez longe do clima conturbado da casa, refugiando-se no castelo de Laenhaus, onde certo dia assistiu a uma cena chocante: alguns servos arrastavam um homem pelo pátio, amarrado a uma corda. Era um devedor de impostos em estado de inadimplência com o burgomestre – como era chamado o funcionário encarregado de arrecadar os dízimos. O pobre homem, todo esfolado, implorava clemência e prometia resolver o problema em questão de horas, caso fosse libertado. O episódio chegou ao fim com a interferência de Edwiges, que pagou 2 marcos de prata pela liberdade do camponês. Apesar de nobre, ela sabia que a vida desses camponeses não era nada fácil. Além do trabalho pesado, estavam sujeitos a diversos impostos e taxas que pagavam ao senhor do feudo. Moravam em pequenas e desconfortáveis casas, muitas vezes de um cômodo e chão de terra batida. Mas havia um alento, no momento em que eles começaram a ser protegidos por Edwiges.

Semanas depois, numa noite de outono de 1191, os sinos repicaram na catedral de Breslau: Edwiges, aos 17 anos, dava à luz um menino forte e sadio, que seria batizado como o nome do pai, Henrique II. O nascimento do primeiro filho começava a dar contornos de família ao núcleo do casal. A maternidade deixava Edwiges mais bela e madura. Uma maturidade que seria acentuada com a morte do pai, Bertholdo, em 1204. Logo depois, viria um outro filho, Conrado, para reconstituir de maneira trágica, num futuro próximo, a história bíblica de Esaú e Jacob, sobre a desavença entre dois irmãos. Neste sentido, os Acta Sanctorum dedicam um capítulo inteiro a analisar as origens desse dissídio. Existem fortes evidências de que, apesar de o primogênito ser considerado o herdeiro natural da fortuna do pai, acontecia de Conrado – conhecido como Crespo, o favorito de Henrique – ficar com as honras de sucedê-lo. A despeito das regras tradicionalmente estabelecidas, ele foi o eleito. Em contrapartida, Henrique II receberia a cumplicidade e o apoio da mãe. p. 36-37.



A primeira obra

A ideia de construir um mosteiro em Trebnitz, tornando concreto um antigo sonho de Edwiges, surgiria após uma caçada nos pântanos da Silésia, quando Henrique (agora conhecido com o Barbado, influenciado pelo estilo dos monges) correu risco de vida ao embrenhar-se de maneira imprudente na floresta. Ele e o cavalo ficaram presos num atoleiro, e a cada movimento feito ne tentativa de escapar, afundavam-se mais. Durante a noite fria, reconhecendo-se em risco de morte e muito longe de casa, Henrique fez a promessa pensando em Edwiges: “Se eu sobreviver a isso, vou realizar o sonho dela”. Diante da gravidade da situação, a fé de Henrique ganhou contornos de oração. Foi quando algo estranho aconteceu – ele diria depois que um “vulto” teria saltado sobre o lodaçal, tomando as rédeas da situação, afastando o cavalo para um terreno seco. De qualquer maneira, tudo foi muito rápido. Quando Henrique voltou-se para agradecer, não encontrou ninguém, apenas a escuridão. Qualquer que seja a interpretação desse episódio, pelo lado místico ou casual, o fato é que, na volta a Breslau, com o dia amanhecendo, seu estado era lamentável. Apesar disso, Henrique procurou Edwiges para dizer:

- De hoje em diante vou prestar mais atenção em você. Tudo que eu puder fazer para realizar suas obras, eu farei.

Esse episódio, em última análise, revela o prestígio de Edwiges como força espiritual. Mais tarde, Henrique diria: “Naquela noite eu pedi por um milagre. E ele aconteceu”. A construção do mosteiro em Trebnitz, que consumiu seis anos entre planejamento e trabalhos forçados, finalmente chegou ao fim em 1203.

Era uma obra monumental e cara, pois tinha as paredes e parte do teto revestidas de chumbo. O edifício havia sido construído no mesmo lugar onde Henrique sofrera o acidente no pântano. Era o primeiro monastério exclusivamente para mulheres de se chamaria mosteiro de Trebnitz [1]. A restrição ao sexo feminino foi um pedido expresso de Henrique. Numa carta datada de 1208, ele explica: “Existem na minha terra três claustros, de três ordens diferentes, todas com representantes do sexo masculino, que podem se recolher para cuidar da salvação de suas almas. Mas, para as mulheres, não existe um claustro. As representantes do sexo feminino também têm o direito de se recolher para expiar seus pecados”.

[...].

Dizem os relatos dos Acta Sanctorum que durante o período de construção de Trebnitz, nenhum condenado à morte pelas barras dos tribunais foi executado. Por sugestão de Edwiges, todos os castigados pela pena máxima receberam indultos e foram deslocados para trabalhar na obra. Ela conseguiu tirar do cadafalso, às vésperas da morte, pessoas condenadas por dívidas ou pequenos furtos. Suas visitas aos presídios eram regulares. Ela levava comida, agasalhos e providenciava a limpeza das roupas sujas. Como as prisões eram escuras, deixava velas e tochas para que os lugares fossem iluminados. Pobres, enfermos e encarcerados estavam descobrindo o caminho do mosteiro de Trebnitz onde, a partir de agora, poderiam contar com o plantão permanente de Edwiges.

Os núcleos das abadias medievais se parecem com pequenas cidades. Em torno delas eram construídas igrejas, bibliotecas e oficinas para a produção e conservação de ferramentas e carroças, estrabarias e cocheiras. O edifício principal estava quase sempre localizado no centro de uma grande propriedade, onde se cultivava trigo, cevada, centeio e cuidava-se de videiras. Em espaços separados da casa, eram criados porcos, galinhas, patos, vacas e cavalos. Além do trabalho pesado, que acontecia até o pôr-do-sol, boa parte do tempo era dedicada à oração e ao canto sacro.

A enfermaria de um mosteiro era um lugar especial e a doença – contagiosa em particular -, uma marca do pecado. As pessoas atingidas pelo estigma da lepra (mal de Hansen), por exemplo, deveriam ser afastadas até a purgação. Ficavam isoladas nas florestas e eram frequentemente molestadas quando apareciam em local público. Quando muito, eram recolhidas por uma embarcação conhecida como Stultifera Navi e levadas para uma ilha deserta. Acreditava-se, então, que as doenças se espalhavam pelo mau hálito que, por sua vez, expressava o resultado dos “pecados da alma”. Na visão de Edwiges, essa situação de isolamento era infamante e representava uma excrescência do ser humano. p. 39.

[...]

O amor sublime

No palácio, Henrique e Conrado já eram meninos crescidos quando outros filhos vieram: Boleslau, Ignês, Sofia e Gertrudes, que foram batizados com os nomes de avós e tias. Os Acta Sanctorum registraram uma controvérsia sobre a ordem correta de nascimento dessas crianças. Em alguns documentos, Gertrudes aparece como a primogênita, seguida por Henrique II. É certo, porém, que após o parto do sexto filho, em 1208, o casal decidira formalizar, ajoelhados diante do bispo Lourenço, os solenes votos de castidade, jurando manter-se em estado de abstinência sexual até o fim da vida. era o que se chamava de “uma vida de continência”. Henrique tinha 42 anos e Edwiges 36. A cerimônia formal, oficiada no domingo da Paixão de 1209, seria acompanhada por um coral de meninos cantando Magnificat, [2], enchendo a catedral de Breslau com sons e acordes majestosos. Sobre essa situação, os Acta Sanctorum registraram o grau de cerimônia entre eles, a partir desse momento:

Por estas razões, Edwiges procurava evitar companhia e as conversas com o marido, para não ficar próxima a ele. Só o procurava quando tinha algum assunto importante a tratar, assunto que dizia respeito às obras de piedade, negócios religiosos ou auxílio aos miseráveis. E mesmo assim, em público ou na igreja, na presença de todos. Era claro que para ela o relacionamento não se oferecia à libidinagem. Quando seu marido estava doente, ela não o visitava sozinha, mas com sua nora Ana (mulher de Henrique) ou outras mulheres.

É fácil perceber que ao educar os filhos na fé cristã, incutindo-lhes um forte sentimento de piedade e apontando-lhes o caminho das virtudes. Edwiges transformava sua casa numa verdadeira igreja. Esse registro dos Acta nos permite conhecer melhor essa devoção:

Durante toda a vida, Edwiges tratou de guardar a maior honestidade em suas palavras e ações, quer nas conversas com Deus ou perante os homens. Ela sempre tratou de conservar a família sob cuidados diretos, principalmente as mulheres. Dos camareiros e outros empregados exigia disciplina e correção. Não queria intimidade com delatores, aqueles que sempre têm duas palavras, como se fossem duas almas que interferem entre si, a alma que vê e a alma que ouve, como o veneno e a mordida de uma serpente. E considerava este tipo de gente instrumento do demônio. p. 42.


___________________

1.Trebnitz – gíria que significa “nada” ou “não preciso de nada”. Uma referência aos votos de abstinência e pobreza. Assim, sempre que perguntavam às freiras do mosteiro se elas precisavam de alguma coisa, elas respondiam apenas: Trebnitz.

2. Canto religioso em forma de hino falando do encontro da Virgem Maria, mãe de Cristo, com sua prima Isabel. Faz parte da obra o Evangelho Segundo Lucas, terceiro livro do Novo Testamento.


Continuação da leitura: TRECHOS DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (3ª PARTE)

17 de outubro de 2024

TRECHOS DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (1ª PARTE)


Livro; Edwiges - A santa libertária; Autor; Toninho Vaz; hagiografia

Capítulo 1

Os milagres da fé

[...].

Quando Edwiges nasceu, em 1174, em Andesh, na região hoje conhecida como Bavária, o mundo estava em ebulição. Para alguns historiadores, a evolução ocorrida nessa época, quando tem início a formação dos Estados europeus (decomposição feudal) e a expansão do comércio e do cristianismo, só pode ser comparada ao processo desencadeado, séculos depois, pela Revolução Industrial e tecnológica. A antiga organização econômica, com pequenas cidades, industrias dispersas e mercados locais, começa a dar lugar a um sistema com outros industriais densamente povoados, produção em grande escala e comércio de âmbito mundial. A Europa se preparava, então, para viver o que alguns historiadores modernos chamam de “a Renascença do século XIII”. p.14

Enquanto a igreja alertava para “o pecado da usura e do lucro excessivo”, a Europa estava condenada a conhecer, em pouco tempo, a figura do mercador ou “intermediário” nas transações comerciais. Em temos históricos, era o surgimento da burguesia como extrato social ativo producente.

No aspecto religioso, o mundo cristão na Idade Média era uma chama viva ameaçando a soberania muçulmana no Oriente, consequência das Sete Cruzadas que tinham como objetivo primário resgatar a cidade de Jerusalém (desde 1174 nas mãos de Saladino, líder muçulmano) e restabelecer a ordem depois do Império Romano. Mesmo em nome de Jesus, e apesar do aspecto contraditório dessa iniciativa, foi grande o derramamento de sangue durante quase duzentos anos.

Ao contrário dos mártires surgidos nos primeiros anos do cristianismo, produtos do período conhecido como de “caça aos cristãos”, Edwiges não se debatia contra o estigma da discriminação religiosa. Sua dor tinha origem no próprio sofrimento pela perda do marido e dos filhos – e na solidariedade aos pobres e desvalidos. Era o que os não-cristãos chamavam de carma (ou Karman, em sânscrito) – sistema cósmico de justiça e definidor das forças que geram o destino. Mulher rica, Edwiges dedicava sua vida a construir hospitais, conventos e manicômios, edificando uma grande obra social, sempre em harmonia com os propósitos do esposo, Henrique I, duque da Silésia, uma mistura equilibrada de cristão e tirano. p.15.

As invasões mongólicas e as batalhas entre os príncipes (na disputa de poder e terras) aconteceram quando Edwiges era adulta e podem ser apontadas como a causa imediata do seu martírio. Enquanto assistia com amargura à morte do marido e dos filhos nos campos de batalha, a beata amenizaria sua dor abraçando a causa dos miseráveis. Para melhor conduzir sua fé, isolou-se no mosteiro de Trebnitz, da Ordem Cistercienses, que durante muito tempo seria administrado por sua filha caçula Gertrudes.

[...].


Capítulo 2

A menina de ouro

[...].

É certo que Edwiges nasceu em berço nobre. Seu pai, Bertholdo III, um católico fervoroso, ostentava vários títulos nobiliárquicos: era duque de Merânia, conde o Tirol e príncipe da Coríntia, além de bisneto de Frederico I, o Barba-roxa, que por sua vez era neto do imperador Otto, o patriarca. O poderoso Barba-roxa foi, durante quarenta anos, a mais importante peça do xadrez imperial germânico, com poderes semelhantes na Itália, onde o acumulou as funções – entre 1155-1190 – com o Sagrado Império Romano.

A mãe de Edwiges, Ignês Rochlethz, de família oriental, também católica, era filha de Dedon V, conde de Rochlethz e marquês de Luzyce (ou Landesberch), também de grandes riquezas e poderes. O nome Andesh, que designa a família de Bertholdo e o castelo na Baviera, aparece pela primeira vez em documentos por volta de 1080.

Quando Edwiges nasceu, em dia e mês desconhecidos de 1174, já encontrou no mundo sete irmãos – quatro homens e três mulheres. Sua chegada foi o desfecho de uma longa semana de expectativa no Castelo de Andesh. Agora, finalmente, a princesa Ignês entrava em trabalho de parto. Havia um clima de excitação no ar. As criadas providenciavam tudo que médicos e parteiras solicitavam, deslizando rápidas pelos corredores. O marido Bertholdo, apesar de experiente, demostrava nervosismo. Os Acta Sanctorum registraram assim esta passagem:

Foram horas de espera. Quando finalmente a porta dos aposentos da princesa se abriu, a parteira-chefe apareceu com o rosto iluminado pela alegria. Houve uma agitação geral. Ela perfilou-se e anunciou, solene:

- A princesa Ignês acaba de ter uma criança, que passa bem.

A mãe também está bem. É uma menina!

Quando a criança foi depositada nos braços da mãe, ganhou um sinal-da-cruz na testa e um beijo na face rosada. p. 19.

Dias depois da cerimônia de batismo, a alegria da família de Bertholdo era compartilhada com a sociedade de Andesh e das regiões vizinhas, numa festa que contou com a presença destacada do arcebispo, uma das maiores autoridades da região. O ponto algo foi o banquete, quando se consumiu muita carne de caça e vinho. As damas de honra e senhoras da nobreza comentavam:

- A criança vai se chamar Edwiges.

[...].


Um retrato de época

A essa altura do século XII, os ensinos católicos representavam a própria vanguarda da elite europeia. A criação da universidade de Paris, em 1150, pelos abades de Saint-Germain-des-Prés, subordinada diretamente ao papa, representava o triunfo da Igreja como centro irradiador de cultura. A iniciativa teve como consequência a fundação da universidade de Oxford, 15 anos depois, por estudantes e professores ingleses que haviam passado pela universidade de Paris. A Igreja se havia transformado em suporte e garantia de uma sociedade da qual ela própria era primeira beneficiária: tudo era cristandade.

Do ponto de vista da educação, era a febre do saber, o privilégio das elites, o poder da informação. Uma febre que atingiria até mesmo a pequena Edwiges, ainda em fase de alfabetização, que passou a considerar a possibilidade de permanecer para sempre no convento de Kitzingen, estudando e consagrando sua vida a Deus. A madre Petrussa, sua principal monitora, quando ouviu a confidência prontamente sugeriu uma reflexão mais profunda, ponderando: “Entregar-se ao serviço de Jesus é uma bela causa, porém, somente Deus sabe qual o melhor lugar para você servi-lo”. É certo, porém, que a partir desses dias – e por toda a adolescência – Edwiges acalentaria o sonho de viver para sempre num mosteiro. p.17.

A rotina no convento e os estudos das obras sagradas, que se intensificaram após a primeira comunhão, fizeram de Edwiges uma menina encantadora, que a todos cativava com sua vivacidade e inteligência. Certa vez, como recebesse regularmente a visita da família, ela comunicou ao pai Bertholdo, laconicamente, em tom de descoberta:

- Papai, aqui me ensinaram que os pobres verdadeiros são os preferidos de Deus.


E assim, na hesitação e na incerteza próprias da idade, ecoou em seus ouvidos o anúncio das Escrituras que diz que Deus está presente nos campos, nas florestas e que seu discurso é voltado para os simples. Desde cedo, levando tudo ao pé da letra, Edwiges começou a procurar do lado de fora do palácio os campos que Deus prestigia com sua presença. E, nisso, ela era obstinada.

Todos comentavam que Edwiges, mesmo sendo uma menina, pensava como uma adulta. Suas virtudes cristãs, manifestadas precocemente como resultado dos exercícios de purificação da alma (auto de piedade), podem e devem ser interpretadas como uma imitação de Deus, algo exemplar enquanto manifestação divina. Ou, como registram os Acta Sanctorum, “ela sempre procurava a pureza da vida inocente, evitando a leviandade e a insolência próprias da idade”.

 Foi na abadia de Kitzingen que Edwiges teria recebido uma revelação divina, por intermédio da irmã Romundes, já velha, cega e doente, que lhe confidenciou:

- O Senhor me revelou que, ao contrário do que você imagina, não será com as grinaldas celestiais das esposas de Cristo que você será coroada, mas com coroa terrena, adornada de ouro e pedras preciosas. E muito pesada, por causa de sua responsabilidade. Lembre-se que Deus estará ao seu lado para aliviar o peso, mas você será uma princesa de verdade.


Edwiges deixou os aposentos da irmã Romundes bastante intrigada, chocada mesmo, acreditando ter ouvido uma sentença capaz de lhe determinar o rumo do próprio futuro. Tudo ficaria mais claro, semanas depois, quando a irmã Berta lhe comunicou que seu pai estava vindo para buscá-la, era hora de voltar para casa. Chegara ao fim um longo e rico período de recolhimento e estudos. Do lado de fora, além dos muros da abadia, o que aguardava Edwiges era um mundo mergulhado em guerras e fanatismo. p. 29. [...].


Capítulo 3

Sinal dos tempos

 O casamento, como era visto e praticado na Idade Média, pode ser simbolizado por um jogo de cartas marcadas. Ou seja, enquanto instituição, o casamento estava a serviço de diversos interesses, inclusive da procriação e do amor. Mas, não foram estes certamente os sentimentos que aproximaram a pequena Edwiges do jovem polonês Henrique I, nessa época apenas duque da Silésia (mais tarde ele seria príncipe da Polônia, sucedendo seu pai, Boleslau). Havia interesses estratégicos nessa união, que simbolizou uma aliança de pacificação na fronteira entre os dois países – as culturas teutônicas e eslava viviam em choque e os casamentos funcionavam como uma espécie conciliação, trégua entre os nobres que defendiam seus patrimônios. Foi Bertholdo quem comunicou à filha, com alguma solenidade, que seu noivo, um jovem de família polonesa recém-cristianizada, estava a caminho de Andesh para conhece-la – e que não seria difícil para ela “simpatizar” como um rapaz com tantas virtudes: valente, forte e rico.

Henrique chegou acompanhado de alguns cavaleiros da sua guarda e foi recebido com festa no palácio. Sua alegria foi maior quando percebeu que Edwiges – além de rica – era bela e formosa. Entre os dotes da moça havia um quesito particularmente importante para o jovem duque, que investia em sua nova prática religiosa: ela era católica fervorosa. E, como havia uma certa urgência nas decisões a serem tomadas, o noivado foi formalizado e concluído em questão de dias, pois tudo havia sido decidido previamente. págs. 31-32.

quando o casamento foi celebrado, em 1186, por Godofredo de Heifenstein, bispo de Wesburgo, Henrique tinha 18 anos e Edwiges, 12. Eles estavam particularmente formosos nesse dia – Henrique com seu traje de nobre, espada reluzente na cintura, e Edwiges no melhor vestido, confeccionado durante dias pelas melhores costureiras. Na cabeça, uma grinalda ornamentada com pedras preciosas em forma de coroa (porém, não era uma coroa), de formato baixo, mais parecida com uma grinalda.

Os convidados para a cerimônia em Andesh foram escolhidos a dedo e representavam a fina flor das aristocracias alemã e polonesa. [...]. Esses mesmos convidados, todos da nobreza, eram testemunhas do empenho das duas famílias em estabelecer uma “união de forças” contra a invasão dos bárbaros, que perseguiam os proprietários de terras e saqueavam suas mansões. O fato de estarem combatendo, na condição de aliados, um inimigo comum ajudava a dissipar antigas mazelas e desavenças entre os príncipes. Em tempo de guerra, era necessário adotar e reconsiderar as estratégias – e o casamento era uma delas.

Para Edwiges, a possibilidade de se afastar da família, depois da experiência de seis anos no mosteiro de Kitzingen, não seria mais um grande sofrimento. Ela estava experiente e podia encarar com alguma naturalidade o fato de, logo após o casamento, ter que se mudar para a Silésia, na Polônia, onde seu jovem marido era o senhor. Dias depois, quando as condições do tempo permitiram, uma pequena comitiva uma pequena comitiva deixava o castelo de Andesh, em carruagens, seguindo em direção ao leste. Uma violenta tempestade de neve, porém, iria intercepta-los no meio do caminho. Eles ficaram abrigados num castelo pertencente ao pai de Henrique, o nobre Boleslau.

O imprevisto iria retardar em alguns dias a chegada do casal ao castelo de Breslau, onde seriam recebidos pelo repicar de sinos e as boas vindas do bispo Siroslau. Depois da bênção na catedral, todos rezaram pedindo que o nobre Henrique I, agora adulto e no poder, tivesse serenidade para dirigir os destinos da pátria, ou seja, da Silésia. p. 33.

[...].

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