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segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

TRECHOS SELECIONADOS DE ALGUNS CAPÍTULOS: Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl (última parte)

Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl; livros; Evangelhos; Logoterapia; Jesus
Realizando valores atitudinais
 
O enfermo de Betesda (cf. Jo 5,2-15)

Em Jerusalém, perto da porta das Ovelhas, existe uma piscina rodeada por cinco corredores cobertos. Em hebraico a piscina chamava-se Betesda. Muitos doentes ficavam aí deitados: eram cegos, coxos e paralíticos, esperando que a água se movesse (porque um anjo descia de vez em quando e movimentava a água da piscina. O primeiro doente que entrasse na piscina, depois que a água fosse movida, ficava curado de qualquer doença que tivesse).
Aí ficava um homem que estava doente havia trinta e oito anos. Jesus viu o homem deitado e ficou sabendo que estava doente havia muito tempo. Então lhe perguntou: "Você quer ficar curado?"
O doente respondeu: "Senhor, não tenho ninguém que me leve à piscina quando a água está se movendo. Quando vou chegando, outro já entrou na minha frente."
Jesus disse: "Levante-se, pegue sua cama e ande". No mesmo instante, o homem ficou curado, pegou sua cama e começou a andar. Era um dia de sábado. Por isso, as autoridades dos judeus disseram ao homem que tinha sido curado: "Hoje é dia de sábado. A lei não permite que você carregue a cama."
Ele respondeu: "Aquele homem que me curou disse: 'Pegue sua cama e ande'."
Então os dirigentes dos judeus lhe perguntaram: "Quem foi que disse a você para pegar a cama e andar?" O homem que tinha sido curado não sabia quem era, porque Jesus tinha desaparecido no meio das pessoas que estavam reunidas nesse lugar.
Mais tarde, Jesus encontrou aquele homem no Templo e lhe disse: "Você ficou curado. Não peque de novo, para que não lhe aconteça alguma coisa pior."
Então o homem saiu e disse às autoridades dos judeus que tinha sido Jesus quem o havia curado.


A cura do enfermo de Betesda é uma história com inúmeras facetas, mas sua mensagem fundamental remeta a uma nova visão da doença. Enquanto em nossa cultura a tendência é ater-nos aos sintomas, Jesus destacou principalmente a atitude a assumir ante a doença. Na sua visão, a essência da saúde está menos na ausência de sintomas (como nossa cultura tende a defini-la) do que num estado interior de plenitude do qual a saúde física é simples consequência. Esse estado de espírito é independente das condições orgânicas e também independe da ausência de sofrimento. Na verdade, o próprio sofrimento pode contribuir para uma sensação interior de completude e paz. A nossa cultura procura evitar o sofrimento a todo custo, mas a fé do Novo Testamento, desenvolvendo-se a partir da crucificação e da ressurreição, afirma sistematicamente que o sofrimento pode dar origem a um processo incessante de redenção.

Tanto o sofrimento quanto o prazer fazem parte da vida. Corretamente compreendido, o sofrimento contribui muito mais com a vida do que o prazer. Em um dos poemas, Walt Whitman reflete a contribuição das forças de resistência presentes na vida:

Aprendeste lições apenas dos que te admiram, dos que te tratam bem e te abriram caminho? Não aprendeste grandes lições dos que te enfrentaram e disputavam a passagem contigo?

Deste modo semelhante, Robert Browning escreve:

Então, aceita toda rejeição
Que torna áspera a suavidade da terra,
Todo aguilhão que obriga não a deter-se e sentar,
Mas a prosseguir!

Também Frankl reserva um bom espaço ao sofrimento. Também para ele, como para Jung, a tentativa de evitar o sofrimento é uma espécie de padrão neurótico. Frankl escreve:

O sofrimento e as dificuldades fazem parte da vida do mesmo modo que o destino e a morte. Nenhum deles pode ser subtraído à vida sem suprimir-lhe o sentido. Remover as dificuldades, a morte, o destino e o sofrimento significaria despojar a vida de sua forma e estrutura. A vida só adquire forma e estrutura sob os golpes do destino, no paroxismo do sofrimento.

[...]. O cristianismo sempre se empenhou em afastar o sofrimento humano, como comprovam os milhares de hospitais construídos sob auspícios cristãos em todo mundo, mas a saúde física é apenas parte desse esforço. A preocupação maior é com as atitudes, não com os sintomas. De modo semelhante, a abordagem de Frankl dá mais atenção à atitude do que às condições, princípio que se aplica de modo especial aos sintomas físicos. [...]. p. 117. Enquanto a ênfase mais comum no mundo terapêutico hoje parece estar na investigação da relação entre fatores causais e expressão sintomática, a logoterapia questiona a necessidade de sempre encontrar a causa no passado e destaca a importância de trabalhar com as atitudes no presente; a logoterapia acredita que muitos sintomas desaparecem quando há mudança de atitude. [...]. p. 118.

[...].

É importante observar que quando a atenção se volta para as atitudes, não existe situação que não possa ser resolvida de uma forma ou de outra. Frankl gosta de citar as palavras de Goethe: “Não existe situação difícil que não possamos superar, seja agindo ou suportando”. Frankl está convencido de que sempre pode dar alguma ajuda a quem o procura. “Todos podem ser ajudados, se não diretamente, por técnicas psicanalíticas, indiretamente, recebendo orientação para mudar de atitude”. Certamente, deve ter sido com esse espírito que Jesus abordou o enfermo de Betesda. Embora o homem estivesse doente trinta e oito longos anos, não havia motivo para acreditar que sua situação, ou sua atitude, não pudesse mudar.

É evidente que, sozinho, esse homem teria sido incapaz de efetuar qualquer mudança em sua vida. Como a maioria das pessoas, ele se fixava nas condições limitadoras que o envolviam, não nas possibilidades criativas. Para ele, saúde significava apenas reversão dos sintomas físicos da doença. No entanto, ele devia ter alguma coisa que o distinguia dos demais que lá estavam. A história sugere que ele ainda estava tentando. É perfeitamente concebível que Jesus o tenha escolhido porque ele não havia desistido; aparentemente, ele não se resignara completamente como os benefícios secundários da doença. Jesus levantou a questão toda do sentido da sua doença para ele.

A doença não deixa de ter suas compensações. Na verdade, alguns não querem curar-se. É muito possível que o enfermo de Betesda tivesse assumido uma profissão bastante interessante e talvez até mesmo vantajosa, a profissão da doença cujo exercício lhe atraía considerável simpatia e atenção. Lembro-me de um homem que estava totalmente empolgado fazendo pesquisas numa biblioteca pública. Ele mesmo se atribuíra essa tarefa porque o medo de cruzar as ruas praticamente o impossibilitava de assumir um emprego rentável. Ele se ressentia de qualquer esforço para resolver o problema (e, naturalmente, que o obrigasse a trabalhar). Sua resposta à pergunta de Jesus, pelo menos inconscientemente, era: “Não, eu não quero ser curado”. O fato é que ele perdera a coragem de governar sua vida e por isso se recolhera na doença. Fora derrotado pela vida. O que ele realmente necessitava era de ajuda para mobilizar o poder desafiador do espírito humano; ele precisava de ajuda para ousar acreditar que podia encontrar sentido enfrentando a vida, em vez de afastar-se do envolvimento ativo e recolher-se na passividade da vida. p. 120.

[...].

Às vezes, se faz necessária a intervenção direta de uma personalidade forte para mobilizar valores atitudinais. Com o enfermo de Betesda, o estímulo de Jesus consistiu num desafio direto: “Levanta-te, toma o teu leito e anda”, pouco depois seguido pela recomendação “Não peques mais, para que não te suceda algo ainda pior!” (isto é, não foge mais da vida). Quem quer que tenha conhecido em vida o impacto de uma pessoa forte e amorosa que fala com autoridade pode avaliar a resposta imediata do enfermo a Jesus. E se a experiência pessoal do leitor não supre essa demonstração, testemunho suficiente é a história da transformação de uma mulher como Elizabeth Barrett: por intervenção do jovem Robert Browning, ela não só se recuperou de uma doença totalmente incapacitante, mas também passou a desfrutar de vigorosa saúde.


Recuperando a dignidade humana
O endemoninhado geraseno (cf. Mc 5,1-20)

Chegaram à outra margem do mar, à região dos gerasenos. Logo que Jesus desceu do barco, veio ao seu encontro, saído dos túmulos, um homem possesso de um espírito maligno. Tinha nos túmulos a sua morada, e ninguém conseguia prendê-lo, nem mesmo com uma corrente, pois já fora preso muitas vezes com grilhões e correntes, e despedaçara os grilhões e quebrara as correntes; ninguém era capaz de o dominar. Andava sempre, dia e noite, entre os túmulos e pelos montes, a gritar e a ferir-se com pedras. Avistando Jesus ao longe, correu, prostrou-se diante dele e disse em alta voz: “Que tens a ver comigo, ó Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te, por Deus, que não me atormentes!” Efetivamente, Jesus dizia: “Sai desse homem, espírito maligno”.
Em seguida, perguntou-lhe: “Qual é o teu nome?” Respondeu: “O meu nome é Legião, porque somos muitos”. E suplicava-lhe insistentemente que não o expulsasse daquela região.
Ora, ali próximo do monte, andava a pastar uma grande vara de porcos. E os espíritos malignos suplicaram a Jesus: “Manda-nos para os porcos, para entrarmos neles”. Jesus consentiu. Então, os espíritos malignos saíram do homem e entraram nos porcos, e a vara, cerca de uns dois mil, precipitou-se do alto no mar e ali se afogou.
Os guardas dos porcos fugiram e levaram a notícia à cidade e aos campos. As pessoas foram ver o que se passara. Ao chegarem junto de Jesus, viram o possesso sentado, vestido e em perfeito juízo, ele que estivera possuído de uma legião; e ficaram cheias de temor. As testemunhas do acontecimento narraram-lhes o que tinha sucedido ao possesso e o que se passara com os porcos. Então, pediram a Jesus que se retirasse do seu território.
Jesus voltou para o barco e o homem que fora possesso suplicou-lhe que o deixasse andar com Ele. Não lho permitiu. Disse-lhe antes: “Vai para tua casa, para junto dos teus, e conta-lhes tudo o que o Senhor fez por ti e como teve misericórdia de ti”. Ele retirou-se, começou a apregoar na Decápole o que Jesus fizera por ele, e todos se maravilhavam.


O propósito que Jesus tinha em sua mente no caso do endemoninhado era recuperar o senso de dignidade humana. A redescoberta da dignidade do homem é uma das principais conquistas dos nossos tempos. A pensadores existencialistas como Frankl deve-se o mérito de sustentar que, sem desmerecer as contribuições da corrente psicológica segundo o qual o homem é um animal regido pelo instinto, a verdadeira essência do homem está exatamente nas características que o distinguem do animal. Como diz Frankl, concordando com Max Scheler, um animal tem um ambiente, mas o homem tem um mundo. O homem abordado na forma mais adequada de psicoterapia é o homem que possui uma consciência, o homem que toma decisões livres, o homem que aceita responsabilidade pessoal. em suma, é o homem da imagem bíblica, feito “pouco menos do que os anjos, coroado de glória e beleza” (Sl 8,5).

No momento em que é despojado de sua dignidade, o homem adoece. É entre os aposentados que encontramos uma das evidências mais clara dessa verdade. Vivendo numa cultura que tende a identificar importância pessoal com capacidade produtiva, as pessoas aposentadas se sentem inúteis e, consequentemente, esbulhadas de sua dignidade. Com um mínimo de reconhecimento que restitua a dignidade, é surpreendente ver como o organismo físico reage com nova vitalidade que faz o acamado levantar ou que libera o ocupante prematuro da cadeira de rodas. Ou pense no delinquente que teve seu sentido de dignidade espezinhado por uma sociedade indiferente que procura reconhecimento em atitudes antissociais, dirigindo sua raiva contra seus semelhantes. Ou considere a doença que não é orgânica nem social, mas psíquica, a doença da psicose. Aqui, de novo, a dignidade de um ser humano foi ofendida, seu senso de adequação pessoal foi solapado, sua liberdade de ser único foi reprimida. Agora sua raiva não se volta para fora, para o mundo externo, mas contra ele mesmo. Indignado consigo mesmo, em guerra consigo mesmo, ele sente apenas o embate das forças não resolvidas digladiando-se em seu ser, e perde de vista a unidade essencial inerente à dignidade. O único nome que lhe parece fazer sentido é “Legião, porque somos muitos” (Mc 5,9).

[...]. Observei muitas vezes em pacientes mentais a transformação do que parecia agressão raivosa em receptividade ansiosa quando se compreendeu a raiva como medo e se a tratou como tal. Ao se demonstrar claramente que não havia necessidade de ter medo, pedidos de ajuda substituíam o acesso de raiva. [...]. É isso que deve ter acontecido com o endemoninhado geraseno, que teve seus desvarios enfurecidos totalmente abrandados pela abordagem paciente e compreensiva (e por isso corajosa) de Jesus. p. 130.

A mudança que pode ocorrer numa pessoa psicótica na presença de um terapeuta verdadeiro é muito bem ilustrada por Carroll Wise ao observar o psiquiatra Harry Stack Sullivan atuando. Sullivan visitava o Worcester State Hospital, no momento em que um paciente esquizofrênico era apresentado ao corpo clínico. O médico que fazia a apresentação não conseguia estimular o paciente a comunicar-se. Com um dar de ombros resignado, ele se virou para Sullivan, sugerindo que ele fizesse alguma coisa. Wise descreve o que aconteceu:

O primeiro gesto de Sullivan foi aproximar sua cadeira da cadeira do paciente e inclinar-se para a frente, de modo a olhar diretamente para o paciente de forma amigável e calorosa. Para surpresa de todos, o paciente respondia a cada pregunta e comentário feitos pelo Dr. Sullivan. Durante meia hora ou mais eles ficaram conversando, aparentemente alheios à presença de outras pessoas.

É possível que o segredo do sucesso de Sullivan esteja registrado no início do comentário de Wise, o ato de aproximar a cadeira e inclinar-se para a frente. Assim agindo, Sullivan estava dizendo: “Você está diante de uma pessoa com quem vale a pena conversar”. Lembro-me claramente de uma jovem de dezoito anos que, paciente num hospital psiquiátrico, era a personificação da infelicidade. Abordando-a certo dia, como capelão do hospital, procurei iniciar a conversa, mas ela me repeliu irritada.: “Vai embora! Não quero falar contigo!” E para não haver dúvidas, virou a cadeira de frente para a parede. Meu primeiro impulso foi sair, mais então, lembrando que ela estava doente, também virei minha cadeira, fiquei ao lado dela olhando para a parede vazia e comecei a falar. Meia hora depois, quando me levantei para sair, ela pegou o meu braço, me segurou pela manga do casaco e disse: “Não vá embora. Não me deixe sozinha”. A explosão de raiva inicial foi deflagrada pelo medo de não ser aceita, pelo medo de que ninguém quisesse falar com ela.

A história do endemoninhado geraseno parece ser autêntica. Ao perguntar “Qual é o teu nome?”, Jesus estava realmente fazendo o tipo de pergunta que um terapeuta moderno faria. Leslie Weatherhead traduz a pergunta assim: “ ‘Qual é o teu nome?’ equivale à pergunta que um terapeuta moderno faria: ‘Como tudo isso começou? Que poder é esse que te domina?’”. Pode ser muito bem ser que Jesus, procurando isolar-se nas regiões inóspitas dos gerasenos, tenha passado a maior parte da noite analisando com esse homem digno de piedade a história de sua vida segundo os padrões da psicoterapia contemporânea. Weatherhead, por exemplo, acredita que o endemoninhado pode ter sido ajudado a trazer à tona emoções reprimidas havia muito tempo, talvez relacionadas com atrocidades cometidas pelos legionários romanos. Como muitos militares que, em nossa época, sofrem de traumas de guerra, uma catarse emocional violenta às vezes resulta em cura total. p. 132.

Quer os fatores causais da doença tenham sido realmente expostos ou não, a cena final que mostra o “endemoninhado” recuperado para um estado de normalidade, sentado falando com Jesus, sugere a retomada para os relacionamentos interpessoais. Aqui, em Jesus, estava um homem com quem ele podia falar livremente sobre seus sentimentos mais íntimos; aqui estava uma aceitação dele mesmo nas profundezas do seu ser, profundezas que ele não conseguia contemplar sozinho.

Para o endemoninhado, foi importante Jesus mostrar que não o temia. As pessoas tinham medo dele, tanto quando ele estava doente como mais tarde, quando havia recuperado a sanidade. Em seu medo, elas o haviam banido da cidade; e quando ele melhorou, elas ainda tinham dúvida e hesitavam em aceitá-lo. Temeroso dos impulsos que se agitavam descontrolados em seu interior, ele não podia ser ajudado por aqueles que também o temiam, mas somente por alguém imune ao medo, alguém que podia compreendê-lo sem deixar-se levar por ele. E isso Jesus podia fazer, pois ele conhecia as profundezas do homem, o potencial para o bem e para o mal, a intensidade de amores e ódios, a mistura de brandura e hostilidade, a luta entre o egoísmo e altruísmo. [...].

Foi como se Jesus lhe dissesse: “Você não é responsável por seus sentimentos, eles fazem parte da doença que não consegue controlar. Mas você é responsável por sua atitude com relação a eles”. Essa é a abordagem adotada por Frankl. Ele acredita que mesmo o esquizofrênico conserva um resíduo de liberdade para enfrentar a doença.

As próprias manifestações da psicose escondem uma pessoa espiritual real, imune à doença mental. A doença só inibe a possibilidade de comunicar-se com o mundo externo e de auto expressar-se; o núcleo do homem se mantém indestrutível. O esquizofrênico, do mesmo modo que o maníaco-depressivo, conserva um remanescente de liberdade com que pode enfrentar a doença e realizar-se, não só apesar dela, mas por causa dela.

É por isso que Frankl pôde dizer a um jovem artista esquizofrênico:

Não se fixe em perguntas em torno de que eventos patológicos podem estar presentes e de que espécie. Você é uma mente que luta espiritualmente, que cria artisticamente. Além desse ponto está a doença. Deixa-a conosco para que o curemos dela. Não se preocupe com sentimentos estranhos e com a questão do que possam significar. Ignore-os até que o livremos deles. Dedique-se às coisas grandes e maravilhosas que você deve criar.

Com efeito, ao dizer que a atitude diante da vida é a área a se trabalhar, mesmo como o psicótico, Frankl salienta um ponto de vista que Anton Boisen esteve sustentando por décadas. Boise vê os transtornos mentais agudos, inclusive o seu próprio, como sinais de uma luta interior para entender o sentido da vida de modo pessoal. assim, episódios psicóticos agudos, mais do que ser meramente indicadores de transtornos doentios da personalidade, podem ser evidências de uma luta orientada para um renascimento, um esforço para assimilar aspectos da personalidade até então não assimilados num todo unificado e significativo. É como se o reconhecimento de tendências irreconciliáveis exigisse uma interrupção total nos padrões de vida normais até que alguma solução satisfatória seja encontrada.

Se a vida não faz sentido, se parece não haver sentido numa existência pessoal, então a doença emocional preenche o vazio. Frankl tratou um jovem judeu de dezessete anos, estudante do Talmude, que fora vítima das perseguições nazistas, seguidas de dois anos e meio de internação num hospital psiquiátrico. Depois de receber alta, o jovem não conseguia reintegrar-se em nenhum padrão norma de vida, culpando a Deus por fazê-lo diferente. Frankl ajudou-o a ver sua situação sob nova luz.

Quem sabe se não foi bom para você, pois você precisava aproximar-se de si mesmo e finalmente encontrar-se. Você não era antes mais desleixado no seu modo de viver? Agora você se tornou uma personalidade mais séria e ponderada. É inconcebível que, ao longo de dois anos e meio de confinamento, Deus quisesse impor-lhe uma tarefa; talvez o confinamento fosse sua atribuição para aquele período da sua vida.... O estudo do Talmude será mais fácil de agora em diante, mas, apesar dessa facilidade, você penetrará mais profundamente em seu sentido... Pois agora você foi purificado como o ouro e a prata... Através das lágrimas derramadas, a escória foi removida do seu velho eu.

A explicação de Frankl para o tratamento desse jovem estudante foi motivada por um comentário de um psiquiatra visitante. Esse observou que, ao sair do consultório, o garoto estava diferente; ele definitivamente mudara durante a entrevista. O médico observou ainda que Frankl havia tocado o ponto nevrálgico e ajudara o jovem a encontrar um propósito e a ver sua situação em termos de propósito. Em resposta, Dr. Frankl disse:

Eu elevei sua autoestima, não abordando sua triste situação, mas oferecendo um vislumbre do possível sentido que esse jovem precisava realizar a despeito de sua doença mental e dos seus resíduos. Eu não analisei tanto os muros que o separavam da vida e do mundo externo. Também não me preocupei com a origem desses muros, isto é, a psicose, a psicogênese e a psicodinâmica; antes, tentei provocar o paciente a romper esses muros, ajudando-o a transcende-los, e finalmente a satisfazer as exigências de uma vida própria significativa. p. 135.

[...]. Citando outro paciente, um homem cujo ciúme alcançava dimensões paranoicas tamanhas que os amigos temiam que ele pudesse matar a esposa, Frankl observa que quando mulher adoeceu o ciumento marido de repente passou a dedicar-se a ela, cuidando dela com todo carinho. Frankl então comenta:

O que uma pessoa faz com uma psicose, quer ela se submeta e ceda ao que as ilusões psicóticas e as alucinações sussurram ao seu ouvido, por assim dizer, ou que passos ela dá e em que direção sob a influência de uma psicose – tudo isso depende básica e unicamente do núcleo espiritual da personalidade envolvida.

Não é segredo que situações conflitantes são resolvidas quando se faz referência à dimensão espiritual (noética). Mesmo na psicose, uma orientação ao mundo de valores pode exercer uma influência controladora sobre o comportamento. Frankl fala de um homem esquizofrênico de sessenta anos que ouvira vozes durante décadas e que era considerado idiota por todos os que o cercavam. Foi observado, porém, que embora estivesse em geral muito agitado, ele reassumia o controle quando cantava com a irmã num coral. Quando o Dr. Frankl lhe perguntou por que ele se controlava, esperando ouvir que era por causa da irmã a que ele muito amava, o paciente respondeu: “Por amor a Deus!”. Mesmo na doença, ele preservava a consciência da influência de Deus sobre sua vida.

Não foi por acaso que Jesus advertiu o jovem que fora considerado endemoninhado a ver sua vida sob a luz da misericórdia de Deus para com ele. Vemos continuamente no relato do Evangelho como os problemas do homem são considerados resolvidos quando vistos de uma perspectiva sobrenatural. A abordagem logoterapêutica tem por objetivo mais do que uma mudança dos padrões de comportamento: ela é uma reorientação total a uma vida de um espectro mais amplo. Ela consiste em introduzir o conceito de relacionamento num mundo mais amplo do que o mundo em que o homem científico normalmente vive. É ver o homem da perspectiva mais ampla possível. p. 137.

[...].


quarta-feira, 4 de outubro de 2023

TRECHOS SELECIONADOS DE ALGUNS CAPÍTULOS: Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl (3ª Parte)

Livro; Jesus e a Logoterapia
Realizando valores criativos
Pedro (cf. Mt 16,13-19; Lc 22,31-34; 54-62)

Ao chegar à região de Cesárea de Filipe, Jesus fez a seguinte pergunta aos seus discípulos: “Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?”
Eles responderam: “Uns dizem que é João Baptista; outros, que é Elias; e outros, que é Jeremias ou algum dos profetas.”
Perguntou-lhes de novo: “E vós, quem dizeis que Eu sou?”
Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”. Jesus disse-lhe em resposta: “És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou, mas o meu Pai que está no Céu. Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu”. (Mt 16,13-19).
E o Senhor disse: “Simão, Simão, olha que Satanás pediu para vos joeirar como trigo. Mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desapareça. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos”.
Ele respondeu-lhe: “Senhor, estou pronto a ir contigo até para a prisão e para a morte”. Jesus disse-lhe: “Eu te digo, Pedro: o galo não cantará hoje sem que, por três vezes, tenhas negado conhecer-me”. (Lc 22,31-34).


Apoderando-se, então, de Jesus, levaram-no e introduziram-no em casa do Sumo Sacerdote. Pedro seguia de longe. Tendo acendido uma fogueira no meio do pátio, sentaram-se e Pedro sentou-se no meio deles. Ora, uma criada, ao vê-lo sentado ao lume, fitando-o, disse: “Este também estava com Ele”. Mas Pedro negou-o, dizendo: “Não o conheço, mulher”. Pouco depois, disse outro, ao vê-lo: “Tu também és dos tais”. Mas Pedro disse: “Homem, não sou”. Cerca de uma hora mais tarde, um outro afirmou com insistência: “Com certeza este estava com Ele; além disso, é galileu”. Pedro respondeu: “Homem, não sei o que dizes”. E, no mesmo instante, estando ele ainda a falar, cantou um galo. Voltando-se, o Senhor fixou os olhos em Pedro; e Pedro recordou-se da palavra do Senhor, quando lhe disse: “Hoje, antes de o galo cantar, irás negar-me três vezes”. E, vindo para fora, chorou amargamente. (Lc 22,54-62).

A história de Simão Pedro é a história de uma transformação radical, o testemunho inequívoco do impacto exercido por Jesus sobre um homem. De forma ainda mais específica, porém, ela demonstra a mudança que pode ocorrer quando uma causa importante absorve a vida de um homem. Desde o início do relato, Pedro aparece como uma pessoa bem-intencionada, mas desajeitada; suas intenções são sempre boas, mas suas declarações impulsivas raramente se transformam em ação concreta. Qualquer que seja a impressão que tenhamos a respeito das tentativas de Pedro de caminhar sobre as águas (cf. Mt 14,25-33) ou de defender Jesus no Jardim do Getsêmani (cf. Jo 18,10-11), ele é representado como um homem de emoções intempestivas cujo coração está no lugar certo, mas cujas ações são frequentemente inoportunas. Rápido em afirmar sua lealdade, sua tríplice negação de que nem sequer conhecia Jesus, não obstante ter sido prevenido, foi típica de sua instabilidade quando posto sob pressão. No entanto, Pedro se tornou o porta-voz dos discípulos, era o líder do círculo interior dos mais próximos de Jesus e exerceu a liderança depois da morte e ressureição de Jesus (cf. At 1-5).

Podemos compreender a transformação na vida de Pedro principalmente em termos de missão que ele se comprometeu a cumprir. A tríplice investidura “Apascenta as minhas ovelhas”, registrada em Jo 21,4-19, destaca a consciência do propósito que o motivou de da morte de Jesus. Suas deficiências passadas diluíam-se diante das tarefas futuras que o aguardavam. É como se a ordem de Jesus no primeiro encontro com Pedro se tornasse o objetivo da sua vida: “Faze-te ao largo; lançai vossas redes para a pesca” (Lc 5,4). [...]. Uma das teses fundamentadas de Frankl é que, diante de uma missão digna de ser realizada, a vida passa por uma transformação radical. Ele também sustenta que cada pessoa tem uma missão, uma tarefa de vida à sua espera. [...]. p. 95.

Essa atitude advogada por Frankl não pergunta o que o homem pode esperar da vida, mas sim o que a vida espera do homem. Falando de suas experiências nos campos de concentração, ele escreve:

Precisamos parar de perguntar sobre o sentido da vida, precisávamos pensar em nós mesmos como alguém que estava sendo questionado pela vida – a cada dia, a cada hora. Nossa resposta devia consistir em ação concreta, não em conversas e reflexões. No fim das contas, viver significa assumir responsabilidade de encontrar as respostas corretas para os problemas que a vida apresenta a realizar as tarefas que ela incessantemente atribui a cada um.

[...].

Já mencionamos que, para Frankl, a missão mais importante do homem consiste em encontrar um sentido para a vida. Uma das grandes contribuições que ele nos dá é a de explicitar como podemos encontrar esse sentido pessoal. Ele especifica três modos principais como podemos encontrar esse sentido pessoal: a realização de valores criativos, de valores experienciais e de valores atitudinais. No momento, concentramo-nos na primeira modalidade: valores criativos. O sentido na vida de uma pessoa realiza-se de modo mais imediato através do ato criativo, do envolvimento ativa na vida com a finalidade de contribuir por meio das realizações pessoais.

Quem já não sentiu a satisfação de um trabalho bem executado ou do alívio proporcionado pelo cumprimento de uma incumbência? E quem já não experimentou a depressão que se instala quando não há trabalho a ser feito, obrigação a ser cumprida, tarefa que requeira um potencial pouco usado? Frankl revela como o desejo de publicar a formulação básica da logoterapia ajudou a dar sentido à sua vida nos anos vividos nos campos de concentração. Pouco antes de entrar em Auschwitz, ele perdeu o manuscrito já concluído, mas no período em que ficou preso conseguiu reescrever os temas principais, em parte usando taquigrafia. Quando confinado ao seu beliche com febre tifoide elevada, ele escreveu no verso de formulários mimeografados, com o toco de um lápis, materiais furtados para ele por um dos colegas. Segundo ele, apesar da febre ardente, os pensamentos eram muito claros, e a versão final publicada sofreu poucas alterações com relação ao que ele escrevera. págs. 96-97.

[...].

É claro que aceitar a responsabilidade de executar tarefas de vida, de realizar valores criativos, requer uma etapa intermediária: alguém precisa apresentar o desafio! É evidente que Jesus via seu ministério nesses termos. Ele sempre oferecia um desafio às pessoas que encontrava. Às vezes, esse desafio estava implícito na maneira descrita pelo dramaturgo em “The Passing of the ‘Third Floor Back’”, a peça em que um pensionista desconhecido, ocupando o quarto dos fundos no terceiro andar de uma pensão decadente, afeta de tal forma a vida dos demais pensionistas, a ponto de evocar o melhor do ser de cada um deles e produzir uma mudança radical em suas vidas. Com mais frequência, pelo menos na narrativa evangélica, Jesus apresentava o desafio de modo incisivo: “Vai! Vende! Dá! Vem! Segue!”. Para Simão Pedro, o desafio foi, a um só tempo, uma afirmação e uma esperança: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas;... tu és Pedro [isto é, pedra, do grego petros]” (Mt 16,17-18).

[...].

O senso de indignidade inicial de Pedro está muito bem descrito no relato. Veja, por exemplo, o que ele disse no primeiro contato com Jesus: “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador!” (Lc 5,8). E pense na cena vivida no pátio da casa do sumo sacerdote onde Pedro negou conhecer Jesus três vezes, cada vez com mais veemência, à medida que a consciência lhe ia pesando mais; depois, cruzando o olhar de Jesus, e ouvindo o galo cantar, ele compreendeu o que havia feito, e então “saiu e chorou amargamente”. Mas Pedro descobriu que o fracasso não era o fim de tudo. Mesmo que não pudesse voltar atrás, ele podia redimir seu passado mudando a si mesmo. Ele jamais poderia apagar o fato de fracassar no momento de crise, mas podia expiar o fracasso tornando-se outro homem, mudando de vida. Nas palavras de Frankl, ele podia desvincular-se do seu ato, distanciando-se dele moralmente. Demonstra-se arrependimento verdadeiro mudando de vida. A mudança de Pedro transparece claramente na história subsequente da Igreja Cristã primitiva. Transparece igualmente que ele fora ajudado a superar seu fracasso. págs. 99-100.

[...].

Muitos em nossos dias ficam confusos com as exigências do sucesso. Ensinados por nossa cultura que “tudo que vale a pena fazer, vale a pena fazer bem”, muitos caem facilmente na armadilha de concluir que o único resultado permitido é o do sucesso. Embora essa exigência de sucesso raramente tenha qualquer validade objetiva, apesar de raramente ser imposta por alguém, ela não obstante opera, em muitas vidas, com uma eficácia fatal. [...]. Uma característica de Jesus era que o apoio emocional que ele oferecia tão livremente era sempre honesto em sua avaliação e sincero em sua franqueza. Ele não se sentia coagido a abrandar os fatos em favor do apoio a uma autoestima abalada. Conhecendo o temperamento de Pedro, ele mostrou como era fácil externar protestos de lealdade quando cumpri-los seria algo bem diferente. [...].

É uma verdade universalmente aceita que relacionamentos pessoais verdadeiros devem ser abertos e honestos. Era importante Jesus falar abertamente a Pedro a respeito de profissões de lealdade demasiado espontâneos, mas não só importante; era também desejável que a relação deles fosse suficientemente livre para possibilitar a expressão de aspectos menos agradáveis. Quando Jesus criticou o sonolento Pedro, que não conseguiu manter-se acordado durante a crise pessoal de Jesus no Horto das Oliveiras, ele podia falar sobre o fato livremente. Esse tipo de liberdade demonstrada por Jesus em tantos dos seus relacionamentos está recebendo destaque em muitos escritos atuais como um aspecto fundamental na terapia. Paul Tournier escreve sobre a importância de uma liberdade nas relações humanas que permita uma expressão aberta de sentimentos genuínos.

Percebi que, adotando um tom mais pessoal, eu ajudava outros a se tornarem mais pessoais, não apenas no consultório, mas em conversas comuns na rua, no serviço militar e numa conferência médica. Compreendi como os homens anseiam por esse contato verdadeiro do qual brota nova vida para soprar como brisa livre entre nós e dentro de nós.

[...]. Frankl comenta um caso semelhante em seu livro:

A agressividade do terapeuta indica sua disposição de encontrar o paciente num nível de homem para homem, colocando-se no mesmo nível do paciente... Demonstrou ao paciente que ele era considerado com seriedade, como uma pessoa responsável por sua ação – em outras palavras, como uma pessoa que devia estar pronta para assumir responsabilidade.

Seguramente, o relacionamento de Jesus com Pedro (e, na verdade, com todos aqueles com quem ele convivia mais intimamente) era mais do que um relacionamento aberto sincero. O aspecto realmente sustentador dessa relação era a aceitação, seja como for que Pedro agisse. Seria difícil descrever o olhar trocado entre os dois no pátio do sumo sacerdote, mas certamente deve ter sido um olhar de aceitação compreensiva, não um olhar de rejeição. [...]. Nem é preciso dizer que a mudança básica que se processou na vida de Pedro consistiu na transformação de uma confiança em recursos pessoais numa confiança em poderes maiores do que os seus próprios. Diante da magnitude da sua missão, suas deficiências humanas perderam importância. [...]. p. 103.


Realizando valores experienciais
Marta e Maria (cf. Lc 10,38-42)

Continuando o seu caminho, Jesus entrou numa aldeia. E uma mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa. Tinha ela uma irmã, chamada Maria, a qual, sentada aos pés do Senhor, escutava a sua palavra. Marta, porém, andava atarefada com muitos serviços; e, aproximando-se, disse: “Senhor, não te preocupa que a minha irmã me deixe sozinha a servir? Diz-lhe, pois, que me venha ajudar”.
O Senhor respondeu-lhe: “Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”.


As diferentes formas de hospitalidade oferecidas por Marta e Maria não só demonstram duas atitudes diante da vida, mas também expõem realisticamente o dilema da mulher contemporânea. O incidente, além disso, mesmo breve, dá uma ideia muito boa a respeito da eficácia do ministério de Jesus. Paul Tillich nos ajuda a entender esses poucos versículos quando escreve: “As palavras de Jesus a Marta são algumas das mais memoráveis de toda a Bíblia”. Parte do apelo dessa cena deriva da simpatia que em geral sentimos Marta. Quaisquer que fossem as necessidades do momento, alguns afazeres corriqueiros precisavam ser executados. Alguém tinha de preparar a refeição. [...]. Do seu ponto de vista, sua reclamação era perfeitamente oportuna e ela deve ter esperado com toda confiança que Jesus a apoiaria integralmente. págs. 105-106.

Mas Jesus não fez isso. Pelo contrário, aproveitou a oportunidade para ajudar Marta a compreender-se melhor. [...]. Na verdade, a única crítica que enunciou consistiu nem comentário sobre o que a própria Marta estava fazendo. “Tu te inquietas e te agitas por muitas coisas”. É como se dissesse: “Em vez de criticar a conduta de Maria, presta mais atenção a ti mesma”. Como Jesus bem compreendia, o trabalho pode se transformar numa atividade agitada para encobrir uma vida sem sentido. Em vez de ser uma expressão de amor, ele pode indicar uma necessidade de amor. Carol Wise lembra que “em alguns relacionamentos, o eu se sente tão ameaçado a ponto de acreditar que deve preservar todas as relações por meio da atividade. [...]. Não basta apenas trabalhar; o motivo que impele ao trabalho também é importante. Certamente, faz sentido a passagem de Marta e Maria vir na sequência da parábola do bom samaritano, como a dizer que o serviço em não conta toda a história da vida.

O objetivo de Jesus não foi reduzir a importância da área da realização criativa. O que ele quis dizer foi que essa não é a única área da vida onde podemos encontrar sentido e, na verdade, quis sugerir que Maria estava encontrando sentido num nível ainda mais significativo. Em termos da mulher de hoje, poder-se-ia dizer que Maria se recusava a assumir o papel cultural geralmente aceito da dona de casa. Ela afirmava categoricamente sua condição de pessoa, não apenas de mulher; ela se negava a amoldar-se ao estereótipo caracterizado como “mística feminina”. A expressão “mística feminina” foi criada pela escritora Betty Friedan, que a adotou para título de um livro instigante e provocador. Com detalhes meticulosos, ela documenta as forças que afastaram a mulher contemporânea da participação plena no mundo das ideias criativas e da ação influente e a reconduziram ao cenário doméstico centrado em torno do círculo familiar. [...]. págs. 106-107.

Era esse padrão de atividade frenética limitante que Maria rejeitava, e o que Jesus apoiou foi a escolha por ela feita de um comportamento mais favorável a uma verdadeira realização de si mesma. Uma contribuição importante da logoterapia é o princípio segundo o qual o sentido na vida do indivíduo não pode limitar-se a uma área restrita. Assim, por exemplo, a mulher que não tem a experiência da maternidade é irrealista se, por causa disso, acredita que sua vida deixa de ter valor. E o homem que não encontra satisfação na sua atividade profissional é igualmente irrealista se espera extrair sentido apenas no seu trabalho. Diante da negação de valores óbvios, é preciso procurar sentido em outra coisa, em outros níveis. [...].

Os valores experienciais se realizaram quando vivemos uma determinada realidade ou quando encontramos uma determinada pessoa. Assim, realizamos esses valores “entregando-nos à glória de uma experiência” como, por exemplo, quando “sentados num bonde..., temos a oportunidade de contemplar um pôr do sol maravilho ou de inspirar o aroma fragrante de acácias em flor”. Frankl analisa uma entrevista terapêutica com um pintor ornamental de sessenta e um anos cuja doença neurológica progressiva o impedia de continuar a fazer o que ele tanto amava. “Voltei espontaneamente a atenção para os valores experienciais, pois não havia mais acesso a valores criativos... Procurei evocar seus sentimentos de gratidão por suas realizações profissionais passadas, por suas experiências artísticas valiosas do presente e por sua excelente vida conjugal”. [...] págs. 108-109.

Mais importante do que viver a experiência de alguma coisa, porém, é encontrar alguém. A “melhor parte” escolhida por Maria era a “pouca coisa necessária” – um encontro pessoal. Podemos pressentir como a atitude de Maria de sentar-se aos pés de Jesus e de ficar ouvindo seus ensinamentos deve ter sido importante para ele. O incidente acontece pouco depois da menção de que “ele tomou resolutamente o caminho de Jerusalém” (Lc 9,51), enfrentando a crise inevitável que o levaria à morte. Por mais que Jesus precisasse de alimento para sustentar o homem físico, sua necessidade mais profunda era certamente de um ouvinte sensível a quem pudesse confiar as aflições mais íntimas do seu coração.

Aprendemos com Carl Rogers e com a “terapia centrada no cliente” o quanto é importante saber escutar. Rogers acredita que a comunicação fica prejudicada porque as pessoas não escutam realmente, e, por isso, não ouvem de fato o que é dito. [...]. Naturalmente, Maria fez mais do que escutar. Ela fez suas as preocupações de Jesus, entrou no mundo dele com ele. Ela encontrou sentido para a própria vida ao envolver-se com as preocupações do outro. É nesse contexto que Frankl relata o caso de um homem esmagado pela sensação de cansaço da vida até encontrar uma jovem em situação semelhante: “Ao encontrar uma jovem quase na mesma situação que ele e intuir ser missão sua confortá-la nessa fadiga existencial, sua própria experiência reassumiu imediatamente um novo sentido”.

Na vida pessoal de Frankl, valores criativos e experienciais tendem a agregar-se quando ele cria empatia com os interesses e necessidades de seus pacientes e encontra sentido renovado para sua vida. No campo de concentração, pouco antes de ser libertado, ele teve oportunidade de fugir, e até fizera planos para isso, até que um dos seus pacientes lhe perguntou com voz exaurida: “Você também vai fugir?”. Frankl descreve a sensação de mal-estar que o invadiu e sua súbita decisão:

De repente decidi tomar o destino em minhas mãos. Sai correndo da barraca e disse ao meu amigo que não podia acompanhá-lo na fuga. Assim que... tomei a decisão de ficar com meus pacientes, a sensação de mal-estar se dissipou. Eu não sabia o que aconteceria nos dias seguintes, mas instalou-se em mim uma sensação de paz interior que eu jamais sentira antes. Volte para a barraca, sentei no chão junto ao meu companheiro e procurei consolá-lo.

Já dissemos que não há uma maneira única de realizar valores e que diferentes circunstâncias exigem diferentes abordagens. É evidente, porém, que algumas formas são mais importantes que outros. Só conseguimos compreender a conhecida passagem sobre o “amor” de 1Cor 13 em todo seu vigor quando lemos com ela o último versículo do capítulo 12: “Aspirai aos dons mais altos. Aliás, passo a indicar-vos um caminho que ultrapassa a todos. Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse amor, seria como um bronze que soa ou como um címbalo que tine”. Sim, certamente há valor nos dons espirituais que se expressam em línguas exóticas, mas há uma forma ainda mais excelente de fazer isso, a forma do relacionamento com as pessoas, tão compreensiva, acolhedora e tolerante que se torna transformadora. [...]. Jesus admoestou Marta não porque ela está errada ao realizar os afazeres domésticos, mas porque está menos certa que Maria. Maria deu prioridade ao que é mais importante: os relacionamentos pessoais. Para ela, encontros são mais importantes do que realizações; pessoas valem mais do que coisas. Diferentemente do jovem rico que construíra sua vida sobre coisas de tal modo que não conseguiu desvencilhar-se delas, Maria estabelecera uma prioridade básica a que não renunciaria mesmo que esta criasse alguma tensão com a irmã. págs. 111-113. [...].

Link para a continuação do post: TRECHOS SELECIONADOS DE ALGUNS CAPÍTULOS: Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl (última parte)

segunda-feira, 3 de abril de 2023

TRECHOS SELECIONADOS DE ALGUNS CAPÍTULOS: Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl (2ª Parte)

 

Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl; livro; Jesus
3. Preenchendo o vazio existencial

A MULHER SAMARITANA (cf. Jo 4,4-27)

Tinha de atravessar a Samaria.
Chegou, pois, a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto do terreno que Jacó tinha dado ao seu filho José. Ficava ali o poço de Jacó. Então Jesus, cansado da caminhada, sentou-se, sem mais, na borda do poço. Era por volta do meio-dia. Entretanto, chegou certa mulher samaritana para tirar água. Disse-lhe Jesus: “Dá-me de beber”. Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos. Disse-lhe então a samaritana: “Como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber a mim que sou samaritana? “É que os judeus não se dão bem com os samaritanos. Respondeu-lhe Jesus: “Se conhecesses o dom que Deus tem para dar e quem é que te diz: 'dá-me de beber', tu é que lhe pedirias, e Ele havia de dar-te água viva!” Disse-lhe a mulher: “Senhor, não tens sequer um balde e o poço é fundo... Onde consegues, então, a água viva? Porventura és mais do que o nosso patriarca Jacob, que nos deu este poço donde beberam ele, os seus filhos e os seus rebanhos?” Replicou-lhe Jesus: “Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede; Mas, quem beber da água que Eu lhe der, nunca mais terá sede: a água que Eu lhe der há de tornar-se nele em fonte de água que dá a vida eterna”. Disse-lhe a mulher: “Senhor, dá-me dessa água, para eu não ter sede, nem ter de vir cá tirá-la”. Respondeu-lhe Jesus: “Vai, chama o teu marido e volta cá”.
A mulher retorquiu-lhe: “Eu não tenho marido”. Declarou-lhe Jesus: “Disseste bem: 'não tenho marido',
Pois tiveste cinco e o que tens agora não é teu marido. Nisto falaste verdade”. Disse-lhe a mulher: “Senhor, vejo que és um profeta! Os nossos antepassados adoraram a Deus neste monte, e vós dizeis que o lugar onde se deve adorar está em Jerusalém”. Jesus declarou-lhe: “Mulher, acredita em mim: chegou a hora em que, nem neste monte, nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. Mas chega a hora, e é já em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são assim os adoradores que o Pai pretende. Deus é espírito; por isso, os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade”. Disse-lhe a mulher: “Eu sei que o Messias, que é chamado Cristo, está para vir. Quando vier, há de fazer-nos saber todas as coisas”. Jesus respondeu-lhe: “Sou Eu, que estou a falar contigo”. Nisto chegaram os seus discípulos e ficaram admirados de Ele estar a falar com uma mulher. Mas nenhum perguntou: 'Que procuras?', ou: 'De que estás a falar com ela?'


A história da mulher samaritana junto ao poço é a história de toda pessoa cuja vida se caracteriza por um vazio interior, por um vácuo espiritual. Para Frankl, a necessidade humana primordial é preencher esse vazio, encontrar um sentido pessoal para a vida. Todas as demais necessidades, seja a de satisfazer a fome ou de saciar o apetite sexual, seja a de alcançar status ou poder são secundárias com relação à busca fundamental de sentido.

A partir do momento em que o homem encontra e se agarra ao sentido da vida, sua capacidade de suportar tribulações se torna praticamente infinita. Durante os anos que passou nos campos de concentração, Frankl observou que aqueles que não conseguiam sobreviver aos rigores da vida confinada eram, em geral, os que haviam perdido toda consciência de um sentido da vida. “O prisioneiro que perdia sua fé no futuro – o seu futuro – estava condenado”. A afirmação de Nietzsche corrobora a convicção de Frankl: “Quem tem um porquê viver pode suportar quase qualquer como”. p. 58.

[...].

Muitos casos de longevidade podem ser atribuídos a uma forte consciência do sentido da vida. O grande poeta alemão Goethe viveu apenas dois meses após completar a segunda metade da sua obra-prima, Fausto, morrendo aos oitenta e três anos. Escrevendo sobre ele, Frankl diz: “Eu diria que, biologicamente, ele viveu os últimos sete anos de sua vida além dos seus recursos. Seus dias já estavam contados, mas ele viveu até concluir sua obra e realizar o seu sentido de vida”. Praticamente todos nós conhecemos o definhamento físico que pode afetar um homem aparentemente saudável depois da aposentadoria. Sem trabalho, sem o sentido que uma missão a cumprir proporciona, praticamente não há motivo para continuar vivendo. p. 59.

 

Sem dúvida, objetivos secundários se tornam às vezes objetivos principais. A fome, por exemplo, pode transformar-se numa necessidade absoluta. Mas Frankl esclarece que um objetivo secundário só se torna principal nos casos em que a busca de sentido deixa de ser o ponto de referência ou é abandonada. Refutando o argumento freudiano de que, sob condições de miséria, o instinto não satisfeito assume a precedência sobre todos os demais, Frankl diz: “Nos campos de concentração, testemunhamos o contrário; vimos que, diante de uma situação idêntica, um homem degenerava enquanto outro alcançava praticamente um estado de santidade”. Objetivos secundários se tornam objetivos principais quando a busca de sentido foi abandonada, deixando um vazio em seu lugar. Na tentativa de preencher o vazio, objetivos inapropriados para o homem assumem a prioridade. Essa era a situação da mulher samaritana junto ao poço de Jacó. Págs. 59 – 60.

A samaritana apresenta um quadro vívido do que Frankl chama de vazio existencial. A rotina monótona e sem sentido da sua vida está expressa graficamente no apelo espontâneo que ela dirigiu a Jesus quando ele rompeu suas defesas externas: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem tenha de vir mais aqui para tirá-la”. O sentido mias exato do texto grego poderia ser expresso assim: “Dá-me dessa água para que eu não precise mais vir, dia após dia, e fazer esse trabalho penoso e maçante de tirar água na rotina sem sentido da existência cotidiana”. O ritual dos afazeres diários só lhe trazia aborrecimentos e enfado porque ela perdera toda consciência de sentido em sua vida.

Todo terapeuta contemporâneo pode atestar que a experiência do vazio existencial é bem comum. Num comentário de grande perspicácia, a psicóloga Edith Weiss-Kopf-Joelson diz que a psicanálise atual não tem uma classificação clara para o “vazio existencial”. Ela observa que, na época de Freud, os padrões neuróticos classificavam-se em categorias bem distintas: histeria (transformar problemas emocionais em sintomas físicos), obsessões e compulsões (tornar-se obsessivo com uma ideia ou sentir-se compelido a praticar um determinado ato) e fobias (medos descabidos ou infundados). Atualmente, porém, os sintomas mais comuns não se enquadram em nenhuma dessas síndromes, mas se caracterizam por uma sensação de vazio, por uma sensação de falta de sentido, pela monotonia da vida cotidiana e pela instabilidade dos valores. Págs. 60 – 61.  

A exemplo de Frankl, devemos observar que essa sensação de estar perdido no universo não é uma doença em sentido patológico (isto é, anormal). O vazio existencial não descreve tanto uma doença, mas uma condição que muitas vezes está presente onde não existe nenhuma patologia. Evidentemente, o vazio existencial pode também estar onde há doença, e, nesses casos, deve ser detectado e tratado simultaneamente a outros sintomas de caráter mais anormal. Mas de modo geral, a sensação de falta de finalidade na vida é uma característica de quem está física e mentalmente bem, mas espiritualmente doente. Recusar-se a admitir o vazio existencial pelo que ele realmente é, uma perda da consciência de sentido, e querer tratá-lo sem referência ao mundo dos valores é cair na falácia comum do psicologismo que considera questões de valor apenas como mecanismos de defesa secundários e não como preocupações conscientes absolutamente legítimas. Uma das pacientes de Frankl comentou, certa vez, como seu interesse pela vida espiritual fora ridicularizado por terapeutas ao longo dos anos:

Por que tenho vergonha de tudo o que diz respeito à religião? Por que tudo me parece constrangedor e motivo de zombaria? Bem, eu sei exatamente por que me envergonho das minhas necessidades religiosas. O princípio básico do tratamento psicológico a que me submeti durante 27 anos, adotado por outros médicos e clínicas, sempre foi que esses anseios espirituais são especulações absurdas, próprias de solteironas; só o que se vê e ouve é importante, todo o resto é bobagem, criado por traumas, ou é apenas uma fuga para a doença (para escapar da vida). Assim, quando eu falava da minha necessidade de Deus, sempre temia que voltassem a me prender com a camisa de força. Todos os tratamentos até agora fracassaram. p. 62.

[...].

A abordagem direta de Jesus à mulher samaritana e sua imoralidade nos lembra que alguns problemas humanos simplesmente resultam de ações irresponsáveis e não devem ser explicados por interpretações psicodinâmicas. p. 63. [...]. Mostrar a essa mulher a inutilidade que representa procurar a felicidade através da satisfação do prazer sexual foi um aspecto importante do ministério de Jesus voltado a ela. Sabendo que ela tentara preencher o vazio existencial com a busca de prazer, Jesus não hesitou em levantar o problema. Como no caso do filho pródigo, se Jesus podia ajudá-la a tomar consciência, ela poderia tomar consciência de que a realização pessoal através da busca do prazer é invariavelmente um beco sem saída. O prazer não resulta da sua busca, mas da satisfação de preencher o lugar responsável que cabe a cada um na vida. p. 64.

[...].

[...]. Diferentemente da resposta a que ela estava habituada, Jesus não reagiu defensivamente. Ele aceitou a mulher e sua atitude defensiva sem revidar na mesma moeda. Ele se recusou a rejeitá-la como ela o rejeitou; mas também não permitiu que ela ditasse os termos da relação entre eles. Recusando-se a afastar-se dela e da sua situação difícil, ele no entanto, acolheu o tema da conversa que lhe foi oferecido, redirecionou-o para uma área de relevância pessoal para ela e relacionou a necessidade dela à dimensão mais ampla que incluía Deus. A implicação era muito clara; o único caminho para uma vida com sentido verdadeiro para ela (“água viva”) era esclarecer o problema moral que impossibilitava um relacionamento verdadeiro tanto com seus semelhantes como com Deus. Págs. 65 – 66.

[...].

[...]. A aceitação de um comportamento destrutivo é apenas “pseudopermissividade” e, na realidade, opõe-se aos seus melhores interesses do aconselhado. A reação da samaritana soa verdadeira. Em vez de rejeitar o confronto posto por Jesus, ela aplaude sua profunda compreensão da situação de vida dela, inclusive esquecendo-se de terminar a tarefa que a levava até o poço, retirar água, em consequência de sua aflição perante o novo e severo que foi obrigada a dirigir a si mesma. A melhor prova possível da eficácia do ministério de Jesus para ela é o convite que ela faz aos habitantes do lugar a irem ao encontro de Jesus. Ela queria ajuda para chegar a outros aspectos da sua vida que não tinham sentido. Ela precisava de ajuda para aprender que a vida, orientada a diferentes objetivos, podia adquirir sentido. Págs. 66 – 67.

 

4. Realizando o “eu” no compromisso responsável

O FARISEU SIMÃO (cf. Lc 7, 36-50)

Um fariseu convidou-o para comer consigo. Entrou em casa do fariseu, e pôs-se à mesa.
Ora certa mulher, conhecida naquela cidade como pecadora, ao saber que Ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume.
Colocando-se por detrás dele e chorando, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas; enxugava-os com os cabelos e beijava-os, ungindo-os com perfume.
Vendo isto, o fariseu que o convidara disse para consigo: “Se este homem fosse profeta, saberia quem é e de que espécie é a mulher que lhe está a tocar, porque é uma pecadora!” Então, Jesus disse-lhe: “Simão, tenho uma coisa para te dizer”. “Fala, Mestre” - respondeu ele.
“Um credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos denários e o outro cinquenta. Não tendo eles com que pagar, perdoou aos dois. Qual deles o amará mais?”
Simão respondeu: “Aquele a quem perdoou mais, creio eu”. Jesus disse-lhe: “Julgaste bem”. E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: “Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; ela, porém, banhou-me os pés com as suas lágrimas e enxugou-os com os seus cabelos. Não me deste um ósculo; mas ela, desde que entrou, não deixou de beijar-me os pés.
Não me ungiste a cabeça com óleo, e ela ungiu-me os pés com perfume. Por isso, digo-te que lhe são perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas àquele a quem pouco se perdoa pouco ama”. Depois, disse à mulher: “Os teus pecados estão perdoados”. Começaram, então, os convivas a dizer entre si: “Quem é este que até perdoa os pecados?” E Jesus disse à mulher: “A tua fé te salvou. Vai em paz”.

O fariseu Simão é um bom exemplo de um homem que nunca chegou a um entendimento, de fato, consigo mesmo. Complacente em sua moralidade, não via a necessidade do perdão em sua própria vida, e, por isso, como destaca a parábola nesse incidente, pouco conhecia a respeito do amor. Jesus expôs a questão de forma bem suscinta: “Aquele a quem pouco foi perdoado mostra pouco amor”. Empenhado em realizar-se através da obediência literal à lei religiosa, Simão estava demasiadamente envolvido na busca do seu próprio modo de viver correto, para abrir espaço em sua vida a outras pessoas. Nem Jesus nem a mulher que fora pecadora receberam mais do que uma atenção superficial, pois ele estava inteiramente voltado à realização de si mesmo através da lei.

Há, sem dúvida, uma escola de pensamento para a qual a realização do eu é o objetivo supremo da existência humana, o que em certo sento é verdade. As pessoas mais felizes são aquelas que realizaram suas potencialidades. Já vimos como uma vida não vivida, como capacidade não desenvolvidas podem tornar-se destrutivas. Admitimos a validade da posição que enfatiza a necessidade de tirar proveito máximo das capacidades de que fomos dotados, e concordamos com a visão segundo a qual o desenvolvimento de personalidade multifacetada é uma das formas mais apropriadas de extrair o máximo da vida. [...]. p. 82.

Dá-se muito ênfase, no mundo terapêutico, ao processo que consiste em desembaraçar os fios emaranhados que resultam em conflitos internos, impedindo assim a realização do eu. Muito se pode dizer a favor do princípio da homeostase, que consiste em atender aos apelos conflitantes do id, do ego, e do superego, de modo que a personalidade não se fragmente em consequência de distúrbios internos, mas consiga funcionar sem conflitos indevidos. Quando Sullivan fala da euforia como objetivo da vida, está se referindo a esse estado livre de tensões em que o ego, supostamente, está livre para seguir qualquer direção escolhida sem ser detido por problemas pessoais não resolvidos ou por necessidades neuróticos não satisfeitas. O conceito de paz de espírito tem o mesmo objetivo de eliminar as ansiedades quem mantêm a personalidade desestruturada e incapaz de mover-se em qualquer sentido. Págs. 82 – 83.

[...]. Com efeito, o sentido mias completo de paz de espírito só é, em geral, vivido após o cumprimento bem-sucedido de uma missão, uma missão que orientou o seu executor para longe dele mesmo e em direção a alguma outra coisa maior do que ele mesmo. A verdadeira paz de espírito provém não de uma situação distensa, mas da finalização de uma tarefa geradora de tensões. Contrariamente ao modo de pensar popular predominante, o estado distenso de tranquilidade e prazer leva com mais frequência à frustração de um vazio existencial do que a uma paz de espírito verdadeira. De modo similar, a autorrealização, como objetivo em si mesma, raramente é alcançada. Frankl observa que “a tensão neurótica depois da ‘felicidade’ no amor leva, precisamente por causa da tensão envolvida, à ‘infelicidade’”. Desse modo, é raro alcançar-se a autorrealização quando procurada diretamente; como a felicidade, ela surge como subproduto. [...].

Simão, como os fariseus que ele representava, era um bom homem, no sentido geralmente aceito do termo. De fato, em sua observância estrita da lei, era tão bom a ponto de não simpatizar com outros que eram menos rígidos em suas práticas religiosas. Sua preocupação com sua própria moralidade, transformada em fim em si mesma, cegava-o para o objetivo que poderia tê-lo ajudado de fato a realizar suas potencialidades. Preocupado em tentar evitar o pecado, ele não simpatizava com os que não eram fortes como ele. Sua condenação tácita, mas evidente, da mulher pecadora denunciou um descontentamento básico em sua vida, uma insatisfação que nascia da falta de relacionamentos com as pessoas. A situação desagradável em que se viu envolvido foi semelhante à vivida mais tarde por Saulo de Tarso, que só conseguiu desembaraçar-se dela efetuando uma mudança radical em seu modo de viver. Págs. 84 – 85.

O problema com que Simão se deparou é o que qualquer pessoa enfrenta quando se deixa absorver pelo pensamento sobre si mesma. A preocupação com o próprio progresso, a sensibilidade exacerbada com relação ao próprio avanço impede a pessoa de efetuar o progresso desejado. Veja, por exemplo, como a atenção voltada ao desejo de dormir dificulta pegar-se no sono, ou como a determinação de manter-se desperto estimula o sono. Ou observe como o artista demasiado consciente da produção artística que está criando descobre que essa autoconsciência dificulta seu melhor desempenho.

[...].

[...]. Frankl diz muito claramente: “O interesse primordial do homem não está na realização do seu eu, mas na realização de valores e na realização das potencialidades de sentido, que devem ser encontradas no mundo e não dentro de si mesmo ou dentro da própria psique como um sistema fechado”. A sensação da verdadeira realização procede não dos esforços mais vigorosos por autorrealização, mas do contato mais significativo como o mundo objetivo, externo. Entende-se melhor esse contato com o mundo exterior em termos de responsabilidade pessoal. p. 86. [...]. Frankl aplica frequentemente o princípio da ampliação de interesses. Ao escrever para uma enfermeira que se desesperava porque sua doença a impedia de realizar o trabalho que tanto a satisfazia, ele relata:


Procurei ajudá-la a compreender que trabalhar oito, dez ou sabe Deus quantas horas por dia não é lá grande coisa. Muitas pessoas fazem isso. Mas ser tão ansioso por trabalhar como ela era e ser incapaz de trabalhar, e mesmo assim não desesperar seria um feito que poucos conseguiriam realizar. E então perguntou-lhe: “Na realidade, você não está sendo injusta com todos os milhares de pessoas doentes a quem você dedicou sua vida como enfermeira? Você não está sendo injusta agindo, agora, como se a vida de uma pessoa doente ou incurável – isto é, de alguém incapaz de trabalhar – não tivesse sentido?”. Eu disse: “Se você se desespera nessa situação, você se comporta como se o sentido da nossa vida consistisse em ter condições de trabalhar nisso ou naquilo muitas horas por dia, mas agindo desse modo você tira de todas as pessoas doentes e incuráveis o direito de viver e a justificativa da existência delas”. Págs. 89 – 90.


Ao trabalhar com um grupo de pessoas com mais de 65 anos, é corriqueiro descobrir que todos os tipos de doenças preenchem rapidamente o vácuo de horas vazias depois da aposentadoria, a não ser que novos interesses sejam descobertos ou que antigos sejam retomados. Na fé cristã, o conceito de compromisso sempre foi primordial. A pessoa encontra sua vida não se apegando a ela, não a guardando com ciúme, mas dando-a livremente, perdendo-a no interesse de outros. E o paradoxo exposto por Jesus se revela inevitavelmente verdadeiro: “Aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” (Mt 16,25).

[...].

É esse interesse por valores mais fundamentais que caracteriza a logoterapia de Frankl. O aspecto mais distintivo da logoterapia está em sua insistência numa responsabilidade pessoal que significa muito mais do que o desenvolvimento do potencial pessoal; é um senso de responsabilidade que reconhece diferentes valores e escolhe uma relação com os valores mais elevados. Nessa ênfase, Frankl sublinha a abordagem característica de Jesus.

Não há passagem melhor do que esta, do encontro de Simão com Jesus, para identificar o método peculiar com que Jesus interpelava os fariseus. Registros em outras passagens mostram com clareza que Jesus denunciava abertamente o modo de vida farisaico: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que limpais o exterior do copo e do prato, mas por dentro estais cheios de rapina e de intemperança!” (Mt 23,25). Não obstante, esse encontro com Simão é mais coerente com o teor geral do ministério de Jesus. Ele usou a circunstância imediata, do momento, para expor o problema na vida de Simão, apresentando a Simão, com delicadeza, mas também com firmeza, os fatos do seu comportamento. Primeiro, Jesus deixou que Simão julgasse a si mesmo, em seguida, Jesus apresentou sua visão. E para a mulher pecadora tanto na casa de Simão como na praça do templo, suas palavras foram as mesmas: “O teu arrependimento purifica o teu passado. Encara o futuro com novas forças, não mais movida pela compulsão a pecar, mas livre para viver uma vida de responsabilidade e de compromisso”. Págs. 91 – 92.


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quarta-feira, 15 de março de 2023

TRECHOS SELECIONADOS DE ALGUNS CAPÍTULOS: Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl (1ª Parte)

 

Jesus e a Logoterapia: O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl; livro; Jesus; Evangelho; Logoterapia

1. PRESCRUTANDO A PSICOLOGIA DAS ALTURAS 


A TENTAÇÃO DE JESUS (cf. Lc 4, 1-13)

Cheio do Espírito Santo, Jesus retirou-se do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, onde esteve durante quarenta dias, e era tentado pelo diabo. Não comeu nada durante esses dias e, quando eles terminaram, sentiu fome. Disse-lhe o diabo: “Se és Filho de Deus, diz a esta pedra que se transforme em pão”. Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: Nem só de pão vive o homem”. Levando-o a um lugar alto, o diabo mostrou-lhe, num instante, todos os reinos do universo e disse-lhe: “Dar-te-ei todo este poderio e a sua glória, porque me foi entregue e dou-o a quem me aprouver. Se te prostrares diante de mim, tudo será teu”. Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto”. Em seguida, conduziu-o a Jerusalém, colocou-o sobre o pináculo do templo e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo, pois está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu respeito, a fim de que eles te guardem; E também: Hão de levar-te nas suas mãos, com receio de que firas o teu pé nalguma pedra”. Disse-lhe Jesus: “Não tentarás ao Senhor, teu Deus”. Tendo esgotado toda a espécie de tentação, o diabo retirou-se de junto dele, até um certo tempo.

 

O relato das tentações de Jesus nos oferece uma descrição clássica da luta interna que se trava na alma de cada homem. A experiência da tentação não só ilustra os princípios que Jesus escolheu para reger sua vida; ela também revela as escolhas básicas com que cada homem se depara à medida que deixa o abrigo da família e entra na arena da vida. Estabelecidas algumas diretrizes fundamentais nas principais áreas de escolha, as decisões cotidianas passam a depender de princípios, não de caprichos pessoais. Definidos previamente os princípios básicos segundo os quais viverá sua vida, o indivíduo não precisa mais se angustiar com cada decisão nem deixar sua conduta à mercê do puro acaso. Com efeito, característica distintiva da maturidade é a recusa a agir puramente ao sabor da ocasião; a decisão atinente a cada ato é tomada em referência a um princípio.

Uma insistência básica da fé cristã é que o homem é livre para tomar suas decisões conscientemente. Sem desconsiderar a influência de fatores inconscientes em operação na vida da pessoa, o cristianismo afirma, contudo, de modo inequívoco, que o resultado final da aventura do homem na vida depende de sua resposta pessoal. Sejam quais forem as experiências nefastas que o acometam, o fator decisivo não está nas condições, mas na resposta pessoal a essas condições. O psiquiatra Viktor E. Frankl descreve o homem religioso como aquele que diz “sim” à vida, como o homem que, apesar de tudo o que a vida lhe impõe, ainda encara sua existência com a convicção básica de que vale a pena viver. Págs. 17 - 18.

 

[...].

 

Seguramente, a visão de vida centrada em Deus foi agudamente contestada pelo reducionismo de uma visão científica que reduz tudo às suas origens primordiais e às suas formas mais primitivas. Mas a tarefa mesma da religião é mergulhar abaixo do nível dos fatos e explorar as dimensões mais profundas da vida. Um dos principais méritos de se estudar o registro bíblico é que nele, de modos simbólicos, as experiências mais profundas do homem, incluindo seus esforços para abrir canais entre ele próprio e o mundo sobrenatural, são apresentadas em forma gráfica. A imagem bíblica persistente do homem respondendo ao apelo de Deus é o modo dramático de dizer que a consciência é mais do que uma advertência introjetada dos pais; é também o homem se prontificar a realizar o potencial pleno para o qual foi criado. Como diz Frankl, “A consciência é a voz da transcendência; o homem ouve a voz, mas não a origina”. Págs. 19 - 20.

 

[...].

 

[...]. As tentações de Jesus ilustram vividamente que o princípio unificador das muitas facetas da sua personalidade foi o fato de ele relacionar todas as questões da vida à dimensão que incluía Deus. Quando procuramos compreender a origem do seu poder, descobrimos que ele estava em sua intimidade com Deus. Quando procuramos compreender a paciência do seu ministério, descobrimos que ela estava em sua constante busca de Deus. Quando procuramos compreender a coragem da sua fraqueza, descobrimos que ela estava em sua consciência da presença do Espírito de Deus em sua vida. Ainda mais do que isso, porém, a experiência das tentações deixa claro para nós o caminho pelo qual ele chegou ao senso inabalável de direção que caracterizou todo o seu ministério. p. 21.

 

A primeira tentação que assediou Jesus, e que importuna a todos nós, foi a de deixar prevalecer o princípio do prazer, a tentação de satisfazer os desejos sensuais imediatos sem levar em consideração objetivos de longo prazo. Para ver como essa tentação é comum, basta apenas lembrar como a fome extrema tende a anular todos os outros interesses, como uma dor aguda tende a dissipar todas as outras preocupações, como extremos inesperados de temperatura tendem a reduzir a eficiência humana. A tendência comum é satisfazer as solicitações urgentes do corpo para livrar-se da fome (física ou sexual), da dor ou do frio. No entanto, provas as mais diversas demonstram, de forma cristalina, que a lei da autopreservação não é a única que vigora entre os homens. Onde há compromisso com uma missão de vida, onde existe lealdade a um valor supremo, ali se revela falsa a perspectiva que insiste em sustentar que todos os valores superiores dependem da satisfação prévia dos impulsos mais primitivos.

 [...].

Quando Frankl afirma que nos campos havia “muitos exemplos – frequentemente heroicos – que provavam que mesmo nos campos os homens... não precisavam se submeter às leis internas aparentemente onipotentes da deformação psíquica”, ele está salientando o que Dorothy Thompson escreveu depois de visitar Dachau e de estudar os históricos de vida dos internos: “Os que continuavam sendo homens, em condições da mais desumana brutalidade, serviam a uma imagem e a um ideal muito superiores às realizações mais elevadas do homem”. Frankl descreve como a falta de vínculos como valores espirituais resultava na manifestação de características bestiais:


O responsável último pelo estado do eu interior do prisioneiro não eram tanto as causas psicofísicas enumeradas, e sim o resultado de uma decisão livre. Observações psicológicas dos prisioneiros mostram que apenas os que permitiam que sua lealdade interior ao seu eu moral e espiritual diminuísse acabavam caindo vítimas das influências aviltantes do campo. Conquanto a hipótese freudiana da onipresença do princípio do prazer apresente evidências óbvias que lhe dão sustentação em alguns casos, ela é apenas uma hipótese, e ainda uma hipótese baseada em evidências seletivas. O homem simplesmente não vive de pão apenas; nem sua necessidade de pão precisa ser satisfeita antes que ele atenda às necessidades de outros. Na verdade o preceito “Primeiro sobreviver, depois filosofar” perdeu sua validade nos campos. Frankl é muito claro ao dizer que “o que valia no campo era exatamente o contrário;... filosofar antes, morrer depois”. Quando o modo de viver do homem inclui invariavelmente a Deus, a expectativa futura assume maior importância do que o desejo imediato. Pág. 23.


[...].

Assim, a primeira decisão que Jesus tomou foi a de renunciar à gratificação imediata em proveito de objetivos futuros mais valiosos. Ele definiria sua linha de ação não de acordo como o que parecia impor-se como o melhor para ele no momento, mas segundo o que os objetivos de longo prazo exigiam, conforme vistos à luz da vontade de Deus para ele. Nem sempre lhe era fácil ver a vontade de Deus, fato que fica muito claro na oração angustiante no Jardim do Getsêmani, cujas palavras finais são, “Contudo, não a minha vontade, mas a tua seja feita!” (Lc 22,42).

A segunda tentação enfrentada por Jesus e com a qual todos nos defrontamos é a de deixar que o princípio do poder predomine; colocar a ambição pessoal por posição e prestígio acima de tudo. Essa tendência chega a ser tão imperiosa que Alfred Adler viu nela a motivação básica da vida. Ao enfatizar a importância da autoestima, vários analistas da cultura (Sullivan, Horney, Fromm) demonstram como é comum as pessoas lutarem por posições elevadas movidas pela ânsia de poder. Ninguém está totalmente livre da tentação de aproveitar-se de outros para fortalecer sua posição. 

Não há como negar a necessidade de uma autoestima saudável. Como a psicanálise nos ajudou a compreender, é óbvio que antes de amar o próximo precisamos amar a nós mesmos “apropriadamente”. Uma relação positiva como o próximo brota de um sentimento positivo a respeito do próprio eu. Estamos começando a entender que, em vez de condenar uma pessoa por uma atitude sua repreensível, precisamos compreender que o que ela precisa realmente é descobrir um valor maior em si mesma. É lamentável constatar que, em nossa sociedade impessoal, muitas pessoas com baixa autoestima só encontram aceitação de fato numa relação formal com um terapeuta, da qual extraem uma avaliação mais positiva de si mesmas.

 [...]. Por fim, alcança-se a posição, não correndo atrás dela, mas merecendo-a. Quando buscamos o poder diretamente, seja curvando-nos diante do diabo ou dando o lugar de honra aos objetivos demoníacos da riqueza, da posição ou da fama, o resultado é evidente. A ânsia de poder leva à subserviência ao demônio. Em termos de lealdades divididas, é alto demais o custo da submissão dos padrões superiores aos inferiores, da repressão dos relacionamentos pessoais para proveito do sucesso organizacional. Em última análise, como salienta Frankl repetidamente, a ânsia de poder nunca é satisfeita diretamente, e só encontra sua realização como subproduto. A autoestima nasce de “avaliações refletidas” positivas dos que foram ajudados. Essa é a resposta que Jesus dá ao diabo e que é mais especificada no decorrer do seu ministério: a posição de honra cabe a quem serve. (ver especificamente Jo 13, 3-16). [...].

A terceira tentação, sofrida por Jesus e também por nós, é a de eximir-se da responsabilidade pessoal. Mas insidiosa do que as duas anteriores, essa tentação assumiu proporções alarmantes, especialmente na cultura estadunidense, que é tão absolutamente dominada pelo determinismo psicológico e sociológico. Sem dúvida, a forma específica que a tentação assume para nós tem pouco a ver com lançar-se do pináculo do templo, mas o princípio é igualmente válido. Para nós, a tendência específica é justificar o nosso comportamento presente considerando-o consequência de um trauma lamentável sofrido na infância, de um relacionamento conturbado com os pais ou da pouca atenção recebida. p. 26

 A psicologia profunda nos ajudou a perceber que só podemos compreender o presente em termos do passado. O que agora precisamos, no entanto, é dar-nos conta de que o futuro não depende do passado, mas é moldado por nossa decisão consciente no “agora”. [...]. O homem é responsável por suas escolhas. De fato, o traço mais característico do ser humano é a responsabilidade. Além de todas as influências condicionantes, a vida do homem desenrola-se à medida que ele exerce sua liberdade de tomar decisões conscientes. Jesus não transferia para Deus, para seus pais ou para terceiros a responsabilidade que, por direito, lhe cabia. Ele exerceu se direito humano de aceitar a responsabilidade pelas consequências de suas ações, e ao fazê-lo ele também definiu o padrão para a nossa vida. Págs. 26 - 27.

[...]. No geral, o mundo terapêutico mantém-se indiferente com relação ao modo como o paciente vê sua vida. A insistência de Frankl em se assumir responsabilidade pelo que se é e pelo que se pode vir a ser, então, é uma mudança oportuna com relação a grande parte do determinismo que o mundo da terapia ensinou, [...]. É necessário, então, que uma psicologia das profundezas seja suplementada com uma psicologia das alturas que não desconsidere as dimensões abismais escuras do ser do homem, mas que também reconheça as altitudes que ele pode alcançar. Sem por um momento sequer reduzir a importância do esforço de Freud de trazer à tona as forças demoníacas que se ocultam no inconsciente, eu gostaria de dizer, ecoando Frankl, que existe também um inconsciente espiritual e que o homem só encontra sua orientação básica para a vida à medida que se entende com essas duas dimensões. [...]. Com muita propriedade, Frankl assim se expressa: em vez de dizer que “o homem é um animal sublimado, podemos demonstrar que ele esconde dentro de si um anjo reprimido”.

É na atmosfera de uma psicologia das alturas que termina a experiência das tentações. De que forma melhor o resultado poderia ser registrado do que dizendo que “os anjos de Deus se aproximaram e puseram-se a servi-lo” (Mt 4,11)? Quando foram tomadas decisões fundamentais sobre uma orientação de vida, quando foi escolhida uma direção que mantém a vida da pessoa aberta a Deus e, por consequência, aos valores supremos da vida, uma sensação de contentamento sereno preenche o coração, uma sensação tão diferente da angústia da luta espiritual quanto são os anjos diferentes do diabo. p. 29.

 

 2. ACIONANDO O PODER DESAFIADOR DO ESPÍRITO HUMANO 


ZAQUEU (cf. Lc 19, 1-10)

Tendo entrado em Jericó, Jesus atravessava a cidade.

Vivia ali um homem rico, chamado Zaqueu, que era chefe de cobradores de impostos. Procurava ver Jesus e não podia, por causa da multidão, pois era de pequena estatura. Correndo à frente, subiu a um sicómoro para o ver, porque Ele devia passar por ali.

Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe: Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casaEle desceu imediatamente e acolheu Jesus, cheio de alegria. Ao verem aquilo, murmuravam todos entre si, dizendo que tinha ido hospedar-se em casa de um pecador.

Zaqueu, de pé, disse ao Senhor: Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais.

Jesus disse-lhe: Hoje veio a salvação a esta casa, porque ele também é um filho de Abraão; pois, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido.


De todos os relatos sobre os encontros de Jesus com seus contemporâneos, nenhum é mais límpido e minucioso do que o episódio envolvendo Zaqueu. Deparamo-nos com a história atemporal de uma luta por posição que resultou em alienação pessoal e em afastamento da comunidade. E nos deparamos com uma amostra de como a pessoa alienada pode reintegrar-se à comunidade. De muitas formas, Zaqueu tipifica o homem contemporâneo de maneira muito mais decisiva do que talvez queiramos admitir. A sensação de alienação ou isolamento é normalmente percebida como marca característica da vida urbana contemporânea; basta consultar as estatísticas relativas ao número de pessoas que moram sozinhas em um ou dois cômodos para perceber como isso é verdade. [...]. Págs. 31 - 32.

[...].

Vendo Zaqueu sob essa luz, como um homem excluído dos relacionamentos, impelido à posição do inimigo por sempre deparar-se com a rejeição em suas tentativas de alcançar uma posição adequada na comunidade, começamos a entender o verdadeiro significado do episódio do Evangelho.  Sim, Zaqueu é descrito como uma pessoa de estatura baixa, fato que ele procura compensar subindo na árvore. Num sentido mais profundo, porém, ele estava no “alto de uma árvore”, ou seja, não conseguia encontrar as pessoas no nível do chão, numa relação face a face. [...]. p. 35.

Uma contribuição importante da psicologia profunda consiste em revelar a relação existente entre causa e efeito. Todo comportamento pressupõe um motivo, e esse motivo muitas vezes oculto no início, pode ser descoberto. A explicação da sequência causa-efeito tanto no nível consciente como inconsciente contribuiu imensamente para uma efetiva compreensão do homem. Por exemplo, aceitar, como aceita Harry Stack Sullivan, que cada indivíduo desenvolve sua “operação de segurança” específica, suas próprias formas de defesa do seu senso de autoestima e de seus sentimentos de significado pessoal, é começar a entender que a ação, apesar de inexplicável, está imbuída de um propósito. No caso de Zaqueu, o motivo pra assumir a odiada posição de coletor de impostos, para se tornar um lacaio do inimigo estrangeiro, passa a fazer sentido à luz do conceito de “operação de segurança”. Não conseguindo atuar de modo significativo no seio da própria comunidade, sendo levada a se sentir alienada e isolada da comunidade, a pessoa encontrará uma posição de prestígio em formas opostas à comunidade que a rejeitou inicialmente. Págs. 35 - 36.

 [...]. A pessoa se torna seletivamente desatenta às oportunidades de tentar alguma outra alternativa. Daí que a operação de segurança tende a se tornar cada vez mais o método habitual de reação. Como o padrão habitual de comportamento foi originalmente uma manobra de defesa e proteção, arriscar uma mudança é expor o eu, tornar-se vulnerável à angústia pessoal. Daí que a mudança de comportamento originalmente escolhida como mecanismo de defesa se torna cada vez mais difícil. Assim Zaqueu, tentando proteger uma autoestima vacilante, abandona seu próprio povo e resolveu arriscar-se com os odiados conquistadores. Mas ele não era feliz. Preso em sua própria operação de segurança, ainda alimentava a esperança de poder mudar sua situação de algum modo. Incapaz de ir ao encontro de Jesus, que despertara sua curiosidade, ele só podia tentar vê-lo a distância. [...]. p. 36.

[...].

O próprio Zaqueu podia mudar. Criticado como “colaboracionista”, traidor da própria comunidade, envolvido em transações desonestas e ardilosas, embaraçado em emaranhados físicos, psicológicos e sociológicos, não obstante ele podia mudar. [...]. É a partir do mundo da psiquiatria que redescobrimos a chave para a mudança tão vividamente demonstrada nesse encontro de Jesus com Zaqueu. Mais importante do que qualquer teoria, mais básica do qualquer técnica, mais significativa do que qualquer ensinamento é a relação de pessoa a pessoa existente entre dois indivíduos. Quer seja interpretada em termos de transferência e contratransferência ou de aumento da autoestima através de avaliações refletidas positivas ou de percepção mais realista do eu conforme refletida e definida por um terapeuta empático, a chave para a mudança está claramente na qualidade do relacionamento com outra pessoa. Além da aceitação compreensiva implícita em todo aconselhamento responsável, com fator que torna a relação eficaz está claramente demonstrado no incidente de Zaqueu: Jesus se arrisca de modo tão sincero e verdadeiro que Zaqueu encontra coragem para assumir o risco de mudar a si mesmo. Págs. 40 - 41. 

[...]

[...]. Para “enfrentar” a crítica da multidão, Jesus se põe na relação íntima de um convidado à casa de Zaqueu. Nesse simples ato, ele põe de lado toda prerrogativa de autoridade e se torna aquele em quem Zaqueu confia para cuidar de sua necessidade humana de renovação e de sua necessidade espiritual de companhia. Ignorando totalmente a multidão, ele demonstra, nesse modo ativo e específico, sua aceitação do forasteiro. A transformação que se segue é apenas o resultado esperado da aceitação demonstrada nessa grande profundidade. O convite de Jesus supunha que essa mudança podia ocorrer. Não era uma aceitação que se baseava na mudança, mas que antecipava a mudança. [...]. A máxima de Goethe, seguidamente citada por Frankl, diz muito claramente: “Considerando as pessoas como elas são, nós a pioramos. Tratando-as como se fossem o que deveriam ser, as ajudamos a se tornar o que são capazes de ser”. Era assim, invariavelmente, que Jesus agia com as pessoas. Págs. 42 - 43. 

[...].

[...] a promessa de reparação pelos males praticados deixa claro que o primeiro passo para uma mudança já foi dado, a aceitação da responsabilidade pessoal para moldar padrões de relações futuras. Que a mudança se completou está implícito nas palavras finais de Jesus. Salvação significa uma nova espécie de relação que inclui o humano e o sobrenatural. A salvação (ou “Saúde” na tradução de Tyndale) só pode ser completa quando as relações são positivas tanto na dimensão humana, de homem para homem, quanto na dimensão sobre-humana, de homem para Deus. Uma mudança só é verdadeira quando chega a todos os níveis, conciliando o homem não só com seus semelhantes, mas também com Deus. p. 43. [...].


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