segunda-feira, 6 de abril de 2020

O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto para hoje (Parte 2)

A respeito da Ascese: “Os monges falam com frequência da luta que a vida com Deus exige. A vida no deserto faz com que os monges lutem com amiúde contra os demônios, gerando assim, um trabalho constante para os mesmos”. “Disse mãe Sinclética: No início existe toda sorte de fadigas e lutas para aqueles que se aproximam de Deus. Mais tarde, porém, alcançam uma alegria inexprimível. Assim como aqueles que querem acender o fogo são primeiramente incomodados pela fumaça e chegam a lacrimejar, chegando em seguida a alcançar o que desejam – uma vez que está escrito: ‘Nosso Deus é um fogo ardente’ (Hb 12,29) –, assim também nós devemos atiçar em nós o fogo divino por meio de lágrimas e esforço” (Apot 892).
“Um irmão suplicou a pai Arsênio que lhe dissesse uma palavra. E o patriarca lhe disse: ‘Luta com todas as tuas forças para que tua ação interior seja semelhante ao modo de ser de Deus e serás capaz de vencer tuas paixões exteriores’” (MILLER. SabPad 44). Num outro apotegma, é Cristo mesmo quem fala a um monge: “Eu, porém, vos digo: É necessário muito trabalho, pois sem trabalho ninguém pode possuir a Deus. Pois ele mesmo foi crucificado por nós”. (MILLER. SabPad 103).

[...]. 


A ascese é, num sentido ético, “um exercício para um comportamento virtuoso, conformado ao ideal” (LEX 749).

Ascese diz respeito, portanto, a algo positivo, que é o exercício para a aquisição de uma atitude religiosa. Somente na filosofia popular cínico estoica é que a ascese foi vista como renúncia e como repressão dos instintos. Este aspecto negativo foi vencido pela ascese cristã, à medida que para os monges o ponto preponderante consiste no exercício pelo qual o ser humano se exercita numa atitude de apatheia1, um estado de paz interior em que estamos abertos para Deus. Para os monges, porém, este estado de paz se origina sempre da luta. Por essa razão é importante começarmos primeiramente com a luta contra os demônios que nos possam desviar de Deus. (GRÜN. Alselm, p. 53-54). O que Evágrio chama de apatheia significa, para Cassiano, seu discípulo e aquele que dá uma forma nova e latinizada ao ensinamento de Evágrio, puritas cordis, quer dizer, pureza de coração. A pureza de coração é um estado de clareza e pureza interior, de amor como abertura para Deus. Para alcançar a pureza de coração é necessário lutar: “Portanto, para alcançar a pureza de coração e o amor, é necessário que façamos tudo quanto realizamos por meio de obras ascéticas; pois elas são os instrumentos que podem libertar nosso coração de todas as paixões prejudiciais que nos atrapalham no progresso para a plenitude do amor. Assim, nós praticamos o jejum, as vigílias noturnas, o recolhimento, a meditação das Sagradas Escrituras, etc. por almejarmos a pureza de coração, que consiste no amor. Assim, o que quer que façamos, devemos fazê-lo a fim de tornar-nos verdadeiramente amantes. É por isso que o amor é normativo em tudo. Atingi-lo é a finalidade de nosso agir; e os instrumentos de que dispomos para isso são de dupla categoria” (JOÃO CASSIANO. PotAlm 108). [...].
Os monges desenvolveram métodos de luta com os quais nos é possível treinar a atitude do amor, a atitude de clareza e pureza interiores, com as quais podemos treinar a abertura sincera para Deus. É muito frequente encontrar nos monges duas imagens para a luta por uma vida que nós mesmos vivemos, que corresponde à imagem que Deus tem de nós: nós somos atletas de Cristo – e somos soldados do Rei Cristo. (GRÜN. Alselm, p. 54-55).
O monge é atleta de Cristo. Sua luta está voltada, acima de tudo, contra as paixões. Entretanto, ele nunca poderá, como o atleta que está na arena, vencer o adversário e descansar sobre os louros da vitória. Nossa vida é, ao contrário, uma luta permanente. Os patriarcas exortam os jovens a esta luta. Em muitas sentenças dos patriarcas se experimenta até mesmo o prazer pela luta. Nisso se manifesta o sentimento de que nós não estamos entregues aos demônios, mas podemos vencê-los pela força de Cristo. E é esta chance de vencer que impulsiona os monges em sua luta. Do monge que renuncia às suas posses, Evágrio diz que ele é “um atleta que ninguém consegue segurar pela cintura e um corredor veloz que, com rapidez, alcança o prêmio do chamado do alto” (EVÁGRIO. OitPens 53).
Segundo Evágrio, porém, só podemos suportar a luta contra as paixões, se “nós lutarmos como homens e soldados robustos de rei vitorioso, Jesus Cristo. [...] Nessa luta, no entanto, é necessário – como arma espiritual – uma fé firme e uma doutrina segura, quer dizer, é necessário o jejum perfeito, as ações vigorosas, a humildade, um silêncio que seja pouco perturbado ou totalmente imperturbado, e a oração continuada. O que eu gostaria de saber, porém, é se alguém é capaz do continuar a luta em sua alma e de ser coroado com a coroa da justiça quando sacia sua alma com pão e água, quando atiça a cólera com rapidez, quando despreza e descuida da oração e quando se reúne com os heréticos. Presta pois atenção ao que diz São Paulo: ‘Os atletas se abstêm de tudo’ (1Cor 9,25). [...] Por conseguinte, ao empreendermos esta campanha, não há dúvida que é importante empregarmos a armadura espiritual e mostrarmos aos pagãos que nós lutaremos contra os pecados mesmo que tenhamos que derramar o sangue” (EVÁGRIO. Anti 2).


[...]. 


No capítulo 5 veremos sobre a importância do Calar e não julgar.

“O patriarca Poimen solicitou ao patriarca José: ‘Dize-me como poderei tornar-me monge’. E ele respondeu: ‘Se queres encontrar serenidade onde quer que estejas, então, em tudo que fizeres, deves dizer: Quem sou eu? E não julgues a ninguém’” (Apot 385). O julgamento dos outros é sempre um sinal de que a pessoa ainda não se encontrou consigo mesma. Por essa razão as pessoas piedosas, que se irritam com os outros, ainda não encontraram sua própria verdade. Sua piedade ainda não fez com que se confrontassem consigo mesmas e com seus próprios pecados. Pois assim diz pai Moisés: “Se alguém carrega seus próprios pecados, não fica reparando os pecados dos outros” (Apot 510). “Certa vez, pai Poimen foi interrogado por um irmão: ‘Pai, o que devo fazer, já que fico abatido por causa da tristeza?’ E o ancião lhe respondeu: ‘Não olhes para ninguém sem motivo, não julgues nem difames ninguém e, assim, o Senhor haverá de conceder-te serenidade’” (Apot 1186). Os monges realizam, por meio de sua experiência, aquilo que Jesus exige no sermão da montanha: “Não julgueis para não serdes julgados!” (Mt 7,1). O não julgar é fruto do encontro consigo mesmo. Pois quem se encontra consigo sabe de todas as suas próprias falhas e conhece seus lados sombrios. Ele sabe estar carregando em si mesmo aquilo que ele julga, nos outros. E se uma outra pessoa peca, então, ele não se irrita, mas é levado a recordar-se de seus próprios pecados. Os psicólogos nos dizem que, ao xingarmos os outros, revelamos aquilo que está em nós mesmos. Nós projetamos nossos próprios lados sombrios, nossos desejos e necessidades recalcadas sobre os outros e os xingamos, ao invés de mantermos a nossa própria verdade perante os olhos. O desejo dos monges é que abandonemos os mecanismos de projeção e que, em vez disso, nos calemos. O calar é, pois, segundo eles, um auxílio para deixar de lado a projeção e, em vez disso, encarar o comportamento dos outros como um espelho para nós mesmos. E é justamente isso que algumas sentenças dos patriarcas nos ensinam. (GRÜN. Alselm, p. 60-61).
O calar é a renúncia a todo tipo de projeção. “Quando pai Agatão via algo e seu coração queria emitir um juízo a respeito, dizia para si mesmo: ‘Agatão, não faças isso’. Foi assim que seu pensar encontrou a tranquilidade” (Apot 100). “E quando vires alguém pecando, reza ao Senhor e dize: perdoa-me, pois pequei” (EthColl 13,40). O julgamento dos outros nos torna cegos para as nossas próprias falhas. Calar em relação aos outros nos proporciona um autoconhecimento mais lúcido e faz com que paremos de projetar as nossas falhas sobre eles. Uma sentença dos patriarcas diz o seguinte: “Certa vez, houve uma assembleia em Scete a respeito de um irmão que havia pecado. Os patriarcas todos falaram pai Pior, porém permaneceu calado. Em seguida, ele levantou-se e, tomando um saco, encheu-o com areia e o pôs nas costas. E pôs um pouco de areia num pequeno cesto e colocou-o à sua frente. Os patriarcas então lhe perguntaram o que isso significava, e ele respondeu: ‘O saco que tem muita areia são meus pecados e estes são numerosos. Eu o pus sobre minhas costas para que não me aflijam nem me façam chorar. E vejam: as poucas falhas do meu irmão, que estão diante de mim, sobre elas eu falo muito a fim de julgá-lo. Não é correto proceder desta maneira. Eu deveria, ao contrário, colocar minhas próprias falhas à minha frente, e, meditando sobre elas, deveria pedir a Deus para me perdoar’. Então os patriarcas levantaram-se e disseram: ‘Verdadeiramente este é o caminho de salvação!’” (Apot 779). 

Mesmo quando um irmão realmente peca, não devemos julgá-lo. Assim nos diz pai Poimen: “Se um homem peca e o nega, dizendo: ‘Eu não pequei’, não o julgues, pois deste modo podes fazer com que desanime. Contudo, se disseres: ‘Não desanimes, irmão, mas toma cuidado de agora em diante’, então estarás despertando sua alma para o arrependimento” (Apot 597). Em vez de julgar o outro, deveríamos, por meio da caridade, buscar conquista-lo para Deus. “Dizia-se a respeito de pai Isidoro, presbítero de Scete, que se alguém tinha um irmão enfermo, negligente ou presunçoso, e queria expulsá-lo, lhe dizia: ‘Tragam-no para mim!’ E ele o tomava consigo e, com a paciência que lhe era própria, o conduzia à salvação” (Apot 357).
Não raras vezes acusa-se os primeiros monges de terem-se tornado austeros demais em sua ascese. Porém, as mais diversas exortações a não julgar e as belas narrativas sobre monges misericordiosos mostram-nos o contrário. Sim, para os monges, o não julgar era um critério para o caminho certo. Pois quem julga os outros ainda não aprendeu a conhecer-se realmente. Hoje em dia, existem muitos movimentos piedosos que vivem às custas dos outros. Eles se definem à medida que ficam rebaixando e ultrajando os outros. Quando alguém tem necessidade de amaldiçoar os homens por seguirem um outro caminho espiritual, isso será sempre um sinal de que seu próprio caminho não é o correto. Sua maldição revela o demônio no próprio coração, realidade, porém, que ele não admite. Nestas horas ele recalca e projeta este demônio sobre os outros. Quem se conhece a si mesmo com sinceridade, torna-se misericordioso sozinho. E sabe, no fundo de seu coração, que todos nós necessitamos da misericórdia de Deus. E quando Deus permite que o bem triunfe em nós, isso será sempre um prodígio de sua graça. (GRÜN. Alselm, p. 63-64).

[...]

Uma das atividades para compreendermos a nós mesmos e vigiarmos nas nossas ações é sobre: A análise dos nossos pensamentos e sentimentos. 


O encontrar-se consigo mesmo é uma condição prévia do encontro com Deus. Para Evágrio Pôntico, antes de tudo, um encontro com os pensamentos e com os sentimentos do próprio coração. Dele se diz: “Se queres chegar a conhecer todas tentações que ele experimentou da parte dos demônios, deves ler o livro que ele compôs contra as objeções dos demônios. Ali verás toda a sua força e todas as tentações pelas quais passou. Foi por esta razão que ele as expôs por escrito de modo que, aqueles que viessem a lê-las, pudessem ser fortificados e vissem que não são somente eles a serem tentados dessa maneira. Evágrio é aquele que nos ensinou a maneira adequada de vencer todo e qualquer tipo de pensamento” (EVÁGRIO. OitPens 52).
Evágrio está convencido de que grande parte de nosso caminho espiritual consiste em prestar atenção às paixões de nosso coração, em conhecê-las e tratá-las adequadamente. O objetivo deste tratamento é a apatheia, que é um estado de paz interior e serenidade. Na apatheia as paixões já não mais se combatem entre si, mas entram em harmonia umas com as outras. Evágrio chama também a saúde da alma de apatheia. A meta do caminho espiritual não é, portanto um ideal moral destituído de defeitos, mas a saúde da alma. Segundo Evágrio, a alma é saudável quando ela entra em harmonia consigo mesma, quando está preparada para o amor. Pois somente o homem que alcança a apatheia é capaz de amar realmente. Sim, porque, na realidade, a apatheia é amor. (GRÜN. Alselm, p. 67-68).
Evágrio é grego. E por isso ele também constrói o caminho espiritual a partir da imagem do homem grego. A filosofia grega conhece três âmbitos no ser humano: a parte cobiçosa (epithymia), a parte emotiva (thymos) e a parte espiritual (nous). Aliás, estes são também os três âmbitos conhecidos pelo eneagrama, quer dizer, um sistema de autoconhecimento que tem sua origem no sufismo e que apresenta grande semelhança com a doutrina dos nove logismoi de Evágrio. O eneagrama fala de um tipo-ventre, de um tipo-coração e de um tipo-cabeça2. (GRÜN. Alselm, p. 68). 


A cada um destes três âmbitos, Evágrio relaciona também três logismoi. 


Logismoi são pensamentos sensitivos que podem dominar o homem, são paixões da alma e forças impulsivas com as quais ele deve se debater. Num sentido negativo, Evágrio chama os logismoi também de vícios e os ordena a demônios que inspiram estes vícios ao homem. Por conseguinte, o tratamento destes pensamentos e paixões é ao mesmo tempo uma luta com os demônios. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 68).
O conhecimento exato das emoções e paixões é a condição prévia para podermos lidar adequadamente com elas. E a meta de nossa luta é, por sua vez, a apatheia, isto é, a liberdade interior. Dito em linguagem psicológica, podemos dizer: A meta é um modo maduro de lidar com minhas emoções, um relacionamento equilibrado com minhas paixões, um modo de estar em paz comigo mesmo e com minha sombra, minha totalidade, na qual a sombra é integrada e serve à aspiração espiritual.
Na familiaridade com as paixões Evágrio vê cumprir-se a palavra de Jesus a respeito da prudência das serpentes: “Disse Nosso Senhor: ‘Sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas!’ (Mt 10,16). Na verdade, o monge deve ser manso e sem falsidade e, seguindo a palavra dos profetas, sua luta há de acontecer em meio à mansidão. A visão de seu espírito, porém, deve ser ágil, e seja prudente nas malícias dos demônios como o é o mangusto – uma espécie de doninha egípcia – que observa o rastro das suas presas para estar em condições de dizer: os pensamentos do maligno não estão encobertos para mim; ou ainda: meu olho vê o meu inimigo e meus ouvidos hão de ouvir o maligno que se me opuser” (EVÁGRIO. CartDes 16).
Portanto, para podermos agarrar os demônios, devemos estudá-los como o mangusto estuda o rastro das suas presas. A serpente é ao mesmo tempo símbolo da sabedoria, da natureza e da sexualidade. Por isso, adquirir a prudência da serpente também significa: reconciliar-nos com a nossa sexualidade, familiarizar-nos com ela, a fim de podermos integrar a sua sabedoria e a sua força em nosso caminho espiritual. Os padres do deserto tornaram-se muito familiares dos pensamentos e sentimentos negativos e das paixões da alma. Eles não tinham medo de entrar em contato com os demônios. Para eles, essa era uma luta diária por meio da qual eles puderam conhecer o adversário com um rigor sempre maior. Em seus escritos fala a experiência com as paixões de nosso coração e com as forças de nosso inconsciente. (GRÜN. Alselm, p. 70-71).

1) Ao âmbito da cobiça Evágrio relaciona os vícios da gula, da luxúria e da cobiça


Comida, sexualidade e posses são três instintos básicos do homem que ele não pode simplesmente cortar ou ignorar. Pois, enquanto instintos básicos, eles também estimulam a viver. Eles são sim, em última análise, estimulados em direção a Deus. Importa saber como nós nos comportamos com estes instintos, ou seja, se nos deixamos dominar por eles, se nos tornarmos pessoas instintivas ou se somos capazes de utilizar sua força de forma positiva, para deixar que nos impulsionem no caminho para a vida e para Deus.
Evágrio define o primeiro instinto, que é o da gula ou do apetite da boca, não tanto como o comer em excesso ou como um tapar os sentimentos negativos, mas como uma preocupação temerosa com a saúde, como o medo de passar fome e de não possuir mantimentos e medicamentos suficientes e, ainda, como o medo de ficar doente através da ascese. [...]. Muitas pessoas se empanturram de comida porque não admitem experimentar sua própria ira. O comer, portanto, pode tornar-se também uma compensação prazerosa. É justamente no comer que muitas pessoas mostram que devoram a comida, mas são incapazes de realmente saboreá-la. A verdadeira ascese consiste em aprender a saborear. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 71).
A finalidade do comer consiste em unir-se a Deus. É por isso que em todas as religiões existem as refeições sagradas. Na Eucaristia, comendo o pão, nós nos unimos a Cristo e, por meio dele, ao próprio Deus. Assim, a mística possibilita descrever a nossa união com Deus como fruitio Dei, como gozo de Deus. O comer é, portanto, a ação fundamental pela qual podemos saborear a Deus. (GRÜN. Alselm, p. 72).
O segundo vício, o da luxúria, é descrito por Evágrio da seguinte maneira: “No caso do demônio da fornicação, trata-se da cobiça do corpo. Quem leva uma vida de abstinência, vê-se ainda mais prontamente exposto aos seus ataques do que uma outra pessoa. O demônio gostaria que ele afinal deixasse de se exercitar nessa virtude. Ele ainda lhe gostaria de fazer crer que esta virtude não lhe traria nenhum proveito. É próprio deste demônio apresentar à alma ações impuras, sujá-la e, por fim, seduzi-la a proferir palavras e ouvi-las como se toda a realidade desaparecesse diante de seus olhos” (EVÁGRIO. TratPrat 8).
A sexualidade é uma força determinante presente no ser humano. Nela está tanto a ânsia por vitalidade como por autossuperação e por êxtase. A sexualidade pode tornar-se uma das fontes mais importantes para a espiritualidade. Evágrio certamente não nega isso. No entanto, ele acha que o perigo está em refugiar-se dentro de um mundo de aparências. Pois a sexualidade tem muito a ver com a frustração. Muitos há que, por não suportarem a desilusão acabam se refugiando na sexualidade. [...]. Em vez de me encontrar com uma pessoa real e deixar-me envolver completamente por ela, utilizo a sexualidade para representar fantasiosamente meu próprio mundo, um mundo de aparências onde tudo é maravilhoso, onde eu não preciso levar ninguém em consideração, mas fico tão somente curtindo a minha sexualidade. (GRÜN. Alselm, p. 72-73).
Na atualidade, os mais variados relatos sobre abuso sexual de crianças e sobre assédio sexual de mulheres no ambiente de trabalho são certamente uma demonstração de que se trata de um perigo bem real. [...] a sexualidade é vista apenas como satisfação do desejo e não como expressão de um amor [...]. É assim que pessoas, a partir de uma sexualidade não plenamente integrada, acabam ferindo os outros em sua dignidade. Pois não há ferida mais dolorosa e violência mais brutal e humanamente mais indigna do que a sexual, principalmente quando ela rebaixa o ser humano ao nível de mercadoria. (GRÜN. Alselm, p. 73).
Evágrio, em sua descrição da luxúria, mostra não só que ele não rejeita absolutamente a sexualidade, acusação que com frequência se censura os primeiros monges. Ele mostra antes que a sexualidade – como também o comer – pode ser usada de forma errada para fugir da realidade, que a ira e a desilusão podem ser tapadas com comida. [...]. Somente quando a sexualidade é integrada por meio da via religiosa é que a espiritualidade se torna realmente viva. Uma espiritualidade que perdeu o sabor é uma prova de que a sexualidade não foi encarada nem aceita. Por isso Evágrio não nos aconselha a reprimir a sexualidade, mas a tratá-la conscientemente. Pois, sem este tratamento consciente da sexualidade, não existe nenhuma espiritualidade verdadeira nem humanamente madura. (GRÜN. Alselm, p. 73-74).
O terceiro logismoi da força instintiva cobiçosa do ser humano é, segundo Evágrio, a cobiça de posses. A ambição de possuir é essencial ao ser humano. Nesta aspiração encontra-se a ânsia por tranquilidade. O que esperamos das posses que possuímos é não ter mais nenhuma preocupação e poder assim abandonar-nos tranquilamente à vida. Porém, a experiência mostra que as posses também podem nos possuir, que somos possuídos pela nossa aspiração a possuir sempre mais. [...]. Nossa cobiça por posses jamais será satisfeita, caso a orientemos exclusivamente para as coisas mundanas. Pois, por mais posses que tivermos, a nossa ansiedade mais profunda por tranquilidade e sossego e pela harmonia conosco mesmos não poderá ser satisfeita. É por isso que a Bíblia transforma este instinto, apontando-nos os bens interiores, como é o caso da pérola preciosa e do tesouro no campo. Dentro de nós, isto é, em nossa alma, podemos encontrar uma imensa riqueza; é aí que encontramos Deus e todas as potencialidades com que nos agraciou. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 74-75).
Hoje em dia, certamente, também ocorre uma demonização das posses e uma ideologização da pobreza. Tudo isso não nos ajuda absolutamente em nada. Às vezes, a pobreza é até confundida com falta de cultura. Quando a pobreza é vista apenas como negação da vida, é porque ela ainda não é capaz de libertar-nos. A verdadeira pobreza sabe lidar com a aspiração pela posse de uma maneira bem humana. Ela se permite esta aspiração, mas sabe relativizá-la, uma vez que é conhecedora de uma riqueza mais profunda. Somente em vista deste valor interior é que seremos capazes de desprender-nos dos bens exteriores e libertar-nos da cobiça de querer possuir sempre mais. 


2) Ao âmbito emocional do ser humano Evágrio relaciona os três logismoi da tristeza, da cólera e da acídia3.

“A tristeza sobrevém, algumas vezes, quando o ser humano não realiza seus desejos. Às vezes, ele vem acompanhado da cólera. Quando surge pela frustração das necessidades e desejos, em geral ocorre da seguinte maneira: a pessoa é levada a pensar e a lembrar-se da casa onde nasceu, dos seus pais e da vida que levava no passado. Quando a pessoa não oferece resistência a esses pensamentos e até se deixa levar por eles ou mesmo se deleita com eles, embora só na imaginação, ele se apoderam inteiramente dela. Por fim essas representações se desvanecem e ela mergulha na tristeza. Sua situação atual a impede de que essas coisas passadas se tornem novamente realidade. E assim a infeliz alma, quando mais se deixa atrair pelos primeiros pensamentos, tanto mais se há de sentir abatida e humilhada” (EVÁGRIO. TratPrat 10). 
Evágrio distingue a tristeza (lypé) da aflição (penthos). [...]. A aflição pode chorar. Suas lágrimas podem amolecer a alma endurecida e fazer que ela se torne frutífera. É possível que as lágrimas da aflição se transformem em lágrimas de alegria. A tristeza, porém, não pode chorar, pois ela é choramingona e se banha em sua própria autocompaixão. Para Evágrio, a tristeza consiste sobretudo na dependência infrutífera do passado. Pois sempre de novo as pessoas imaginam os sentimentos de outrora em casa junto aos pais, na proteção, na despreocupação, etc. [...]. Para Evágrio, é sobretudo perigoso, diante da realidade presente, fugir para o passado, uma vez que o passado é algo definitivamente passado e nunca mais haverá de se tornar realidade. É possível aprender muito do passado para o momento presente. No entanto, se o passado se torna fuga de conflito presente, então ele se torna um obstáculo que nos impede de assumir as tarefas atuais e através delas amadurecer. (GRÜN. Alselm, p. 76).
Enquanto nós através da tristeza reagimos passivamente aos nossos desejos insatisfeitos, a cólera é antes uma reação ativa. Evágrio também consegue identificar a cólera como um dos demônios. O que se evidencia para ele é que na cólera o ser humano pode ser dominado completamente por uma outra força. “A cólera é a mais forte das paixões. Com efeito, diz-se que é uma ebulição da parte irascível da alma e uma indignação contra quem lhe fez algum ultraje ou contra que se presume que o tenha feito. Ela deixa a alma da pessoa furiosa o dia inteiro, mas é sobretudo na hora da oração que ela domina a mente, com a imagem do rosto que a contristou. Às vezes, ela dura mais tempo e se transforma em ressentimento, provocando então, durante a noite, as piores experiências. [...]”. (EVÁGRIO. TratPrat 11).
Evágrio analisou a cólera com bastante rigor. A cólera não é, para ele, uma mera agressão. Pois as agressões têm um significado absolutamente positivo. Pois as agressões pretendem regular a relação de proximidade e distância. [...]. No dizer de Evágrio, o demônio da cólera devora a alma humana. Hoje em dia, encontramos uma confirmação disso na psicologia que parte do princípio de que o câncer não raramente possui uma causa psíquica. Quando continuamente engolimos todas as raivas, em algum momento o corpo reage e, no sentido mais verdadeiro e real da palavra, ele será carcomido. (GRÜN. Alselm, p. 77-78).
O demônio mais perigoso é o da acídia, que corrompe o monge interiormente. Evágrio descreve a ação deste demônio da seguinte maneira: “O demônio da acídia, também chamado ‘demônio do meio-dia’, é o mais pesado de todos; ataca o monge pela quarta hora e sitia a alma até a oitava. Primeiro, o monge tem a impressão de que o sol demora muito a se mover e o dia tem pelo menos 50 horas! Depois, sente necessidade constante de olhar pela janela, sair da cela, examinar atentamente o sol para ver se falta muito para a nona hora [...]”. (EVÁGRIO. TratPrat 12). A acídia é a incapacidade de fazer-se presente no momento atual. Não se tem apetite nem para o trabalho nem para a oração. Nem mesmo saborear o não fazer nada. Pois sempre se está com os pensamentos num outro lugar. A acídia é uma expressão de fuga da realidade. Não se aceita encarar a sua própria realidade. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 79).
A acídia é também chamada de demônio do meio-dia, porque costuma manifestar-se nesta hora do dia. Mas isso pode também ser compreendido simbolicamente e, neste caso, a acídia é sobretudo o demônio da meia-idade. Na meia-idade perde-se o prazer pelo costumeiro. Então a pessoa se pergunta: para que tudo isso? Tudo quanto a pessoa produziu até então parece-lhe aborrecedor e vazio. E também não consegue detectar com que deva ocupar-se. [...]. Atualmente, a acídia também parece ser uma disposição fundamental de muitos jovens. Eles são incapazes de envolver-se e entusiasmar-se por alguma coisa. Não são capazes de viver no momento atual. [...]. Para os violentos dentre eles, a força bruta contra os outros é o único caminho para se sentirem vivos. Aqui fica especialmente patente quão destruidora a acídia pode vir a tornar-se. Aquele, pois, que é incapaz de viver, viverá às custas de outros e precisará castigá-los para se sentir a si mesmo. (GRÜN. Alselm, p. 79-80).

3) Os três logismoi da esfera espiritual são a ambição, a inveja e a soberba (hybris).

A ambição consiste no contínuo vangloriar-se diante dos outros. Tudo é feito unicamente para ser visto pelas outras pessoas. Evágrio descreve a ambição deste modo: “O pensamento da ambição é um companheiro deveras difícil. Ele tende a manifestar-se em pessoas que gostariam de viver virtuosamente. Desperta nelas o desejo de compartilhar com os outros a dificuldade de sua luta, procurando com isso a honra diante das pessoas. [...]”. (EVÁGRIO. TratPrat 13). A preocupação do que os outros pensam de nós, está relacionado ao que o Senhor Jesus Cristo falou aos que não creram n’Ele, por estarem com a mente voltada com as coisas concernentes a este mundo: "Como podeis crer, vós que recebeis a glória uns dos outros, e não buscais a glória que é só de Deus?” (Jo 5:4). Na ambição, eu penso continuamente nas pessoas e em suas opiniões. E acabo me perguntando: Como será meu modo de agir sobre elas? Elas também acham bom o que eu faço? E assim eu acabo não estando comigo mesmo e torno-me dependente do juízo das outras pessoas.
O que fico imaginando é: como, em minha próxima aparição no palco, causar a melhor impressão possível, para ser devidamente aplaudido? Naturalmente nos faz bem quando somos reconhecidos e confirmados. E seria certamente hybris se nós pensássemos que estamos totalmente livres do reconhecimento e do elogio. A busca de reconhecimento se introduz furtivamente em tudo que fazemos, até mesmo em nossa ação mais piedosa. Não se trata de nos livrar completamente dessa busca de reconhecimento, mas de relativizá-la de maneira a não nos tornarmos dependentes dela. Nós mesmos sentimos como é desagradável quando, por exemplo, já aos sessenta ou setenta anos, ainda prestamos atenção ao que os outros pensam e esperam de nós. Isso não é viver, mas tão somente ser-vivido. (GRÜN. Alselm, p. 80-81).
A inveja mostra-se na contínua comparação de si mesmo com os outros. Não sou capaz de encontrar-me com nenhuma outra pessoa sem comparar-me com ela. Imediatamente, começo a avaliar, a valorizar, a desvalorizar e a revalorizar. De um modo geral, procuro desvalorizar o outro no intuito de revalorizar-me a mim mesmo. [...]. Também na inveja eu não estou comigo, não estou satisfeito comigo mesmo e não tenho nenhum sentimento por minha dignidade, reconhecendo meu valor somente em comparação como os outros. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 81).
hybris, isto é, a soberba, torna as pessoas cegas. O soberbo se identificou a tal ponto com sua imagem ideal, que se recusa a encarar a própria realidade. “O demônio da soberba é aquela que provoca na alma as piores quedas. Ele seduz o monge a não procurar em Deus a razão de sua ações virtuosas mas apenas em si mesmo; e a considerar a si mesmo como a causa de todo o bem que faz e a se inchar de orgulho diante dos irmãos, considerando-os tolos por não o terem em tão alta estima. Tudo isso é depois acompanhado pela tristeza e, último dos males, pela perturbação mental e a loucura, que o faz ver uma legião de demônios no ar”. (EVÁGRIO. TratPrat 14). 

Pela hybris o ser humano ingressa no mundo aparente de seus próprios ideais, a ponto de chegar a perder o contato com a realidade. E isso o torna alienado, C.G. Jung chama esta atitude de inflação: A pessoa se envaidece de ideais e representações que, de fato, não lhe pertencem. A inflação sempre acontece quando nos identificamos com imagens arquetípicas, por exemplo, com a imagem dos profetas, e acabamos proclamando: “Eu sou o único que consegue perceber e que se atreve a dizer a verdade”. Ou, então, identificamo-nos com a imagem do mártir: “Eu não sou compreendido e preciso afinal sofrer, porque como Jesus sou tão diferente, porque respondo pela verdade sozinho”. [...]. [...]. Jesus cura o cego de nascença cuspindo no chão e esfregando-lhe a lama carinhosamente nos olhos, como querendo dizer-lhe: “Tu também foste tirado da terra. Reconcilia-te também com a sujeira que está em ti e em teus lados sombrios. Sê humano, pois então poderás ver novamente. Porque, enquanto negares tua condição terrena, também não serás capaz de ver”. (GRÜN. Alselm, p. 81-82).




______________


1. Segundo Dom Fernando Antônio Figueiredo, a apatheia não significa uma indiferença diante da vida, no sentido do vulgar de apatia, mas “um estado de paz interior” e “serenidade” atenta como “atitude do homem livre faze à vida” (cf. Curso de teologia patrística – A vida da Igreja primitiva (séculos IV e V). Vol. 3. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 177-186; sobre a “apatia gnóstica”, cf. Clemente de Alexandria, in Boehner, Philotheus & Gilson, Etiene. História da filosofia cristã. 6. Ed., Petrópolis: Vozes, 1995, p. 46-47). 

2. Cf. ROHR, Richard & EBERT, Andreas. O eneagrama – As nove faces da alma. 5. Ed., Petrópolis: Vozes, 1998, principalmente p. 45-49.
3. Acídia, no grego akedia, é um termo que também está presente na Vita Antonii, de Atanásio, e em Orígenes, onde significam “negligência”, “indiferença”, mas já vem acompanhado de termos que apontam para a acepção evagriana: “vileza”, “aviltamento”, “tristeza”, etc. mas Evágrio parece ter sido o primeiro a identificar o demônio da acídia com o “demônio do meio-dia”. É difícil precisar a diferença entre acídia e tristeza na lista dos oito vícios capitais. A tradição monástica oriental as distingue para sublinhar uma circunstância particular: acídia, segundo a definição de Evágrio, está ligada ao estado de vida anacorética e se contrapõe à permanência na cela e à vida solitária. 


Link para a continuação do post: O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto para hoje (PARTE 3)

Formulário de contato

Nome

E-mail *

Mensagem *