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sábado, 16 de setembro de 2017

Segunda parte: Céu e inferno. Há inferno do mesmo modo como há céu [...], "o fariseu e o pecador" arrependido.

As portas da percepção: Céu e inferno; Céu e inferno; o fariseu e o pecador arrependido
Só me dediquei, até este momento, à experiência visionária bem-aventurada, a sua interpretação em termos de teologia e a sua tradução em arte. Mas nem sempre essa experiência é celestial. Por vezes ela é terrível. Há inferno do mesmo modo como há céu. (págs. 123 – 124).
Assim como este, o inferno visionário possui sua luz e seu valor preternaturais. Mas seu significado é intrinsicamente aterrador, e a luz é a “luz fumegante” do Livro tibetano dos mortos, a “escuridão visível” de Milton. No Journal d’une schizophrène [Diário de uma esquizofrênica], registro autobiográfico da passagem de uma jovem pela loucura, o mundo do esquizofrênico é chamado le d’éclairement – “o país da iluminação”. Esse é um nome que um místico bem poderia ter escolhido para designar seu paraíso.
Mas para a pobre Renée – a vítima da esquizofrenia – a iluminação é infernal: um intenso clarão elétrico sem uma sombra, ubíquo e implacável. Tudo o que, para o visionário são, é uma fonte de alegria, traz a Renée tão-somente pavor a um tétrico sentimento e irrealidade. O sol estival é maligno; o brilho das superfícies polidas nas sugere gemas, e sim maquinaria e chapas esmaltadas; a intensidade de existência que anima cada objeto, quando examinado de perto e abstraído seu aspecto utilitário, é sentida como uma ameaça.
E há, ainda, o horror infinito. Para o visionário são a percepção do infinito em um finito particular é uma revelação de sublime imanência; para Renée, isso era uma comprovação do que ela chama o sistema – vasto mecanismo cósmico, que existe unicamente para produzir crime e castigo, solidão e irrealidade. (págs. 123 – 124).
A sanidade mental é uma questão de gradação, e há um grande número de visionários que vê o mundo tal como Renée o viu, mas consegue, a despeito disso, viver fora dos manicômios. (pág. 124 – 125). Tal como os visionários positivos, eles também vêem o Universo transfigurado – mas para pior. Tudo nele, das estrelas, no céu, à poeira sob seus pés, é indizivelmente sinistro e repugnante; cada acontecimento vem carregado de ódio, cada objeto acusa a presença de um Horror infinito, todo-poderoso, eterno.
Esse mundo negativamente transfigurado consegue insinuar-se, de tempos em tempos, na literatura e nas artes. Ele desvirtua e ameaça por meio das últimas paisagens de Van Gogh; foi o quadro e o tema de todos os contos de Kafka; foi o lar espiritual de Géricault, foi habitado por Goya durante os anos de sua surdez e solidão; foi entrevisto por Browning ao escrever Childe Roland; teve seu lugar, diante das teofanias, nas novelas de Charles Williams.
A experiência visionária negativa é, frequentemente, seguida de sensações corpóreas de natureza bastante especial e característica. As visões felizes são, via de regra, associadas a uma sensação do corpo, a um sentimento de despersonalização. (É, sem dúvida, esse sentimento que possibilita aos índios que praticam o culto do peiote usar a droga, não apenas como um atalho para atingir o mundo das visões, mas também como instrumento para criar uma solidariedade afetiva dentro do grupo de participantes.) Mas, quando as experiências visionárias são terríveis e o mundo se transfigura para pior, a individualização é intensificada e o visionário negativo sente-se preso a um corpo que parece tornar-se cada vez mais denso, mais comprimido, até que acaba por sentir-se reduzido à condição de torturada consciência de um aglutinado de matéria compacta, não maior que uma pedra que pudesse ser contida entre as mãos. (pág. 125).
Vale a pena observar que muitos dos sofrimentos narrados nas várias descrições do inferno são castigos de pressão e constrição. Os pecadores de Dante eram enterrados na lama, encerrados em troncos de árvores, aprisionados em blocos de gelo, esmagados entre rochas. Seu inferno é psicologicamente verdadeiro. Muitas de suas punições são experimentadas pelos esquizofrênicos e por aqueles que tomam mescalina ou ácido lisérgico, sob condições desfavoráveis.
Qual a natureza dessas condições desfavoráveis? Como e por que é o Céu transformado em Inferno?
Em certos casos, a experiência visionária negativa é o resultado de causas primordialmente fisiológicas. A mescalina tende, após sua ingestão, a se acumular no fígado. Se esse órgão estiver doente, isso pode levar a mente a sentir-se no Inferno. Mas, o que é mais importante, do ponto de vista de nosso presente estudo, é o fato de que a experiência visionária negativa pode ser produzida por meio puramente psicológicos. O temor e a angústia barram o caminho para o Outro Mundo celestial e mergulham no inferno quem ingerir a droga.
E o que é verdade para quem toma mescalina também é válido para os que têm visões espontâneas ou sob a influência do hipnotismo. Foi com base nesse fundamento psicológico que ergueu-se a doutrina teológica da preservação da fé – doutrina essa com que nos defrontamos em todas as grandes religiões do mundo. Os escatologistas sempre tiveram dificuldade em conciliar seu racionalismo e sua moral com as realidades brutais da experiência psicológica. (pág. 126). Como racionalistas e moralistas, sentem que o bom comportamento deve ser recompensado e que o virtuoso merece subir ao Céu. Mas, como psicologistas, sabem também que a virtude não é a condição única, nem é suficiente, para uma experiência visionária feliz. Sabem que as simples boas ações são importantes, e que é a fé, ou a confiança no amor, que assegura a bem-aventurança dessa experiência.
As emoções negativas – o medo, que é a ausência de confiança; o ódio, a ira ou a maldade, que eliminam o amor – trazem consigo a certeza de que a experiência visionária, se e quando produzir, será aterradora.
O fariseu é um homem virtuoso; mas a sua virtude é de uma espécie compatível com as emoções negativas. Suas experiências visionárias têm, pois, maiores possibilidades de serem infernais que bem-aventuradas.
A natureza da mente é tal que o pecador que se arrepende, e pratica um ato de fé em um poder mais alto, tem maior probabilidade de encontrara bem-aventurança na experiência visionária do que o sustentáculo da sociedade, de consciência tranquila, mas que abriga na mente justas indignações, indignações, inquietações, a respeito de bens e ambições materiais, hábitos arraigados de reclamar, desprezar e condenar. Daí a enorme importância conferida, em todas as grandes religiões, ao estado de espírito no momento da morte.
Experiência visionária não é a mesma coisa que experiência mística. Esta se situa além do reino do dualismo, enquanto aquela ainda permanece dentro de sua esfera de ação. O Céu está vinculado ao inferno, e “subir ao Céu” não representa liberação maior do que a descida ao horror. O Céu representa apenas uma posição vantajosa, da qual o sublime Princípio poderá ser apreciado com maior clareza que ao nível da existência individual de todo o dia. (pág. 127).

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