Mostrando postagens com marcador O Céu começa em você [...]. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador O Céu começa em você [...]. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto para hoje

Mantendo a morte diariamente diante dos olhos
:
São Bento em sua regra, aconselha os monges a manterem diariamente a morte diante dos olhos. [...]. Os monges viviam na consciência de sua morte. E isso os tornava mais vivos e presentes. O pensar na morte liberta-os de todo medo. Um jovem monge perguntou a um patriarca nestes termos: ‘“Por que o medo toma conta de mim quando saio sozinho durante a noite?’ Disse-lhe o ancião: Porque a vida deste mundo ainda possui valor para ti’” (EVÁGRIO. OitPens 190). [...]. (pág.109).
Em muitas palavras dos monges sentimos uma profunda ânsia e desejo da morte. Mas esta ânsia e desejo da morte, para estar ao lado do Senhor, confere aos monges ‘uma surpreendente jovialidade, de modo que um deles ouviu esta pergunta: ‘Por que acontece que tu nunca estás triste? E ele respondeu: ‘Porque desejo e espero morrer todo dia’. Um outro disse: ‘A pessoa que mantém a morte diante dos olhos por todo o tempo supera facilmente a tristeza e a estreiteza da alma’” (RANKE-HEINEMANN, Mönchtum... 30). Assim, o exercício de manter a morte diariamente diante dos olhos é expressão da ansiedade e do desejo de “estar com nosso Senhor no paraíso” (RANKE-HEINEMANN, Mönchtum... 41).
Para os monges, à ansiedade e desejo da morte associa-se também uma expressiva espera da parusia. A expectativa pela escatologia iminente dos primeiros cristãos se acende novamente entre os monges. Escreve Rufino “que os monges esperam por seu pai ou uma tropa por seu rei, ou ainda como um servo fiel por seu senhor e libertador. Num outro lugar diz: ‘Eles não queriam mais preocupar-se com a vestimenta e com a alimentação, mas, entre hinos, esperavam unicamente pela parusia de Cristo’” (Assim, o exercício de manter a morte diariamente diante dos olhos é expressão da ansiedade e do desejo de “estar com nosso Senhor no paraíso” (RANKE-HEINEMANN, Mönchtum... 41)., Mönchtum... 32). A leveza que podemos perceber em muitos padres do deserto está ligada certamente a esta espera da parusia. E é a partir dela que Evágrio pode comparar o monge a uma “águia altaneira” (EVÁGRIO. OitPens 51). Por esperar pelo Senhor, o monge torna-se livre das preocupações mundanas, do julgamento e das expectativas dos homens. A serenidade jovial, a liberdade, a confiança e a sinceridade para com o momento presente forjam o monge que anseia pelo Senhor. (pág. 110).

[...]

A psicossíntese, elaborada por Roberto Assagioli, desenvolveu o método da des-identificação1. Observo meus pensamentos e meus sentimentos; meu medo, por exemplo. Sinto o medo, mas nesta hora coloco-me por detrás dele como uma testemunha imóvel e como um si-mesmo intocável e inatingível. Esse núcleo interior, o si-mesmo espiritual – como o chama Assagioli -, não é atingido pelo medo e pelos sentimentos que se imprimam no meu domínio emocional. A des-identificação me liberta da obrigação de ter de realizar a tarefa com perfeição. A des-identificação é, segundo a psicologia transpessoal, a verdadeira terapia. [...]. (pág. 111).
O método da des-identificação evidencia-se também numa outra sentença dos patriarcas: “Um irmão aproximou-se do patriarca Macário o Egípcio e lhe disse: ‘Pai, dize-me uma palavra! Como posso alcançar a salvação?’ E o ancião lhe ensinou: ‘Olha para a sepultura e zomba dos mortos. Então, o irmão dirigiu-se até lá, zombou e atirou pedras. Em seguida, ele retornou e contou ao ancião o que havia feito. Este, porém, lhe perguntou: ‘E eles não te disseram nada?’ Respondeu então ele: ‘Não!’ Então o ancião lhe disse: ‘Volta lá amanha e louva-os!’ Retornando para junto do ancião, lhe contou: ‘Eu os louvei!’ Então o ancião lhe perguntou: ‘Eles não responderam nada?’ O irmão lhe respondeu: ‘Não!’ Aí o ancião lhe ensinou: ‘Sabes o quanto tu os insultastes e eles não te responderam nada; sabes também o quanto tu os louvaste e eles não te disseram nada. É assim que tu também deves ser se quiseres alcançar a salvação. Sê como um cadáver, não observes nem a injustiça dos homens nem seu elogio, mas sê como os mortos; então, haverás de ser salvo!’” (Apot 476). (págs. 111-112).
A primeira vista, este método parece ser algo macabro, como se nós devêssemos ser insensíveis como os mortos. Na realidade, porém, o objetivo é que superemos o plano da identificação com o elogio e a repreensão, isto é, que exercitemos a des-identificação. Nossa vida somente será bem-sucedida – diz-nos esta sentença dos patriarcas -, quando deixarmos de depender do elogio e da repreensão. E é desse modo que nunca estamos próximos de nós mesmos. [...]. (GRÜN. Alselm, pág. 112).
Tornar-se como os mortos não significa ser destituído de sentimentos. Mas significa o que acontece no batismo, isto é, que nós morremos para o mundo. O mundo, quer dizer, as pessoas com suas expectativas e pretensões, com suas normas e julgamentos não têm poder algum sobre nós. Vivemos num outro limiar. Vivemos numa realidade espiritual a qual o mundo não possui poder algum. E isso nos torna livres. Se constantemente dependermos do elogio, sempre continuaremos insatisfeitos. Pois somos insaciáveis em nossa ânsia por elogio. (GRÜN. Alselm, pág. 112-113).

[...].

Devemos estar mortos sobretudo para o nosso próximo. “Certa vez, o patriarca Poimen contou o seguinte: Um irmão perguntou ao patriarca Moisés de que modo uma pessoa poderia tornar-se morta para seu próximo. O ancião lhe respondeu: ‘Se o homem não se tornar em seu coração como alguém que jaz na sepultura há três dias, não chegará a esta atitude espiritual’” (Apot 506).
E ao patriarca Moisés atribui-se a seguinte sentença: “A pessoa deve estar morta para seu colega, de modo a não vir a condená-lo em algum assunto” (Apot 508). Estar morto para o próximo significa, antes de mais nada, renunciar a condená-lo. Eu não tenho direito de julgar os outros. O estar-morto para o próximo, no entanto, pode também significar que eu me torno independente dos problemas dos outros e que não me identifico com suas dificuldades. Isso naturalmente não deve tornar-se algo desumano como se não tivéssemos nenhum interesse pelo outro. Muitas das sentenças dos patriarcas – em que algum patriarca conversa de coração cheio com seu consulente e o consola e anima – mostram que, para os monges, não está em jogo rigidez ou insensibilidade, mas distância interior. [...]. (GRÜN. Alselm, pág. 113).
Num primeiro momento, estes conselhos nos parecem estranhos. Porém, no fundo, trata-se do cumprimento das palavras de Jesus: “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só; mas se morrer, produz muito fruto. Quem ama sua vida, acabará perdendo-a; mas quem odiar sua vida neste mundo, vai guardá-la para a vida eterna” (Jo 12,24s.). Precisamos desprender-nos de nós mesmos e de nossas ideias sobre a vida, pois assim há de abrir-se um novo espaço para novas possibilidades para nós. Precisamos desprender-nos do outro, pois assim será possível um verdadeiro relacionamento. Quando, numa amizade, uma pessoa se prende demais a outra, com o passar do tempo o relacionamento se tornará impossível. Uma amizade só poderá subsistir enquanto um se desprende do outro, enquanto um deixa o outro livre e vice-versa. Segundo nos diz também a psicologia, o desprender-se é a condição prévia e fundamental para uma vida plenamente realizada. (GRÜN. Alselm, pág. 115).
O capítulo 10: A contemplação como caminho de cura, nos diz, que “é em vão, obter a cura interior através da mera disciplina”. O lidar com os pensamentos e os exercícios concretos são um bom auxílio para as paixões se aquietarem e a alma se tornar saudável. Mas só a contemplação produz a verdadeira cura. Assim o experimentaram os monges, assim o descreveu Evágrio Pôntico.
A contemplação é a oração pura, é a oração continuada, a oração acima dos pensamentos e sentimentos, a oração de união com Deus. Evágrio não se cansa em descrever a oração como o presente mais belo com que Deus nos agraciou. A dignidade humana consiste em unir-se a Deus por meio da oração.

[...].

Pela oração, o homem deve libertar-se primeiramente de suas paixões e, sobretudo, da ira e das preocupações. Mas aí ele deve também deixar para trás de si os pensamentos piedosos. Não deve apenas pensar em Deus, mas unir-se a ele. Evágrio não se cansa de dizer ao escrever sobre isso: “Quando uma pessoa já se tiver libertado das paixões perturbadoras, isto ainda não significa que ela também já esteja em condição de rezar verdadeiramente. Pois é possível que ela apenas conheça os pensamentos mais puros, porém deixa-se seduzir a pensar sobre eles, e com isso está muito distante de Deus” (EVÁGRIO. SobreOra 55).
“O Espírito Santo tem compaixão de nossas fraquezas e frequentemente vem em nosso auxílio, mesmo que nós não sejamos dignos dele. Se ele nos procura, enquanto lhe oramos por amor à verdade, ele nos inunda e nos ajuda a nos desprendermos de todos os raciocínios e pensamentos que nos mantêm presos a nós mesmos, conduzindo-nos assim à oração espiritual” (EVÁGRIO. SobreOra 62).
“Vigia para que durante tua oração não te prendas a nenhuma apresentação, mas permaneças em profundo silêncio. Somente assim é que Deus, compadecido dos ignorantes, haverá de visitar um homem insignificante com tu e presentear-te com o maior de todos os dons que é a tua oração” (EVÁGRIO. SobreOra 69).
Segundo Evágrio, é por meio da contemplação que alcançamos o estado da mais profunda paz. Descobrimos em nós um espaço do puro calar. E é aí que Deus mesmo habita em nós. Evágrio chama a este espaço – que é o espaço de silêncio em nós – de “lugar de Deus” ou “visão de paz”. Numa carta a um amigo escreve ele: “Se o intelecto, por meio da graça de Deus, foge destas coisas (isto é, das paixões) e se desprende do seu homem velho, então sua própria situação durante o tempo da oração lhe parece uma safira ou da cor do céu. É o que a Escritura chama de lugar de Deus e que os antigos viram no monte Sinai. A Escritura também chama este lugar de visão de paz, onde a pessoa contempla em si mesma aquela paz que é mais sublime que toda compreensão e que guarda e protege nosso coração. Pois num coração puro é forjado um outro céu, cuja visão é luz e cujo lugar é espiritual, e em que, de maneira maravilhosa, pode ser avistado o conhecimento dos entes – isto é, das coisas. Pois também os santos anjos se reúnem perto daqueles que lhes são dignos” (EVÁGRIO. CartDes 39).
É por meio da oração que o homem vê sua própria luz. E é por esta luz que ele descobre a sua própria natureza, que é toda reluzente e tem parte na luz de Deus. Neste lugar de Deus, no lugar da paz no interior da alma, tudo é silêncio e aí só Deus habita. Aí tudo é curado. É também aí que, no amor de Deus, todas as feridas que a vida possa nos ter infligido são cicatrizadas. Aí desaparecem todos os pensamentos em relação às pessoas que nos feriram. Nossas paixões não têm aí nenhum acesso; aí também os homens não podem nos atingir-nos com suas expectativas, opiniões e preconceitos. Pois é aí que nos unimos a Deus, mergulhamos em sua luz, em sua paz, em seu amor. Esta é a meta do caminho espiritual. (GRÜN. Alselm, pág. 118).

[...].

“A oração verdadeira torna o monge semelhante aos anjos, uma vez que ele anseia insistentemente por ver seu Pai que está no céu” (EVÁGRIO. SobreOra 113). “Bem-aventurada é aquela alma que, rezando sem dispersão, deseja e anseia sempre mais profundamente a Deus” (EVÁGRIO. SobreOra 118). Desejas rezar verdadeiramente? Então mantém-te afastado das coisas deste mundo. Seja tua pátria o céu. Já não deves viver somente com palavras, mas através de ações angelicais e com conhecimento sempre mais profundo de Deus” (EVÁGRIO. SobreOra 142). Se queres rezar de maneira perfeita, deixa de lado tudo o que tem a ver com a carne, de modo que, enquanto estiveres rezando, tua visão não se turve” (EVÁGRIO. SobreOra 128). E ainda: “Se te entregares à oração, deves deixar para trás tudo quanto de causa alegria, pois somente então alcançarás a oração pura” (EVÁGRIO. SobreOra 153).

[...].

No último capítulo: A mansidão como sinal do homem espiritual, nos diz que, “a finalidade do caminho espiritual não está em ser penitente ou asceta, através do jejum perseverante, no homem consequente, mas naquele que se dispõe a viver a mansidão”. Evágrio sempre de novo exalta a mansidão como o sinal do homem espiritual. Ele nos convida a tornar-nos mansos como Moisés, do qual diz a Escritura: “Ele era o mais manso de todos os homens” (Nm 12,3).
“Peço-vos eu: ninguém ponha sua confiança somente na abstinência! Pois não é possível construir uma casa com uma única pedra, nem é possível completar uma construção com um só tijolo. Um asceta encolerizado é semelhante a um bosque ressequido e sem frutas em tempo de outono, sendo por isso duplamente atrofiado e desenraizado. Um homem encolerizado não verá o despontar da estrela matutina, mas irá até um lugar de onde não poderá mais voltar, uma terra tenebrosa e sombria onde não brilha nenhuma luz e onde não é possível avistar nenhuma vida humana. A abstinência reprime somente o corpo, mas a mansidão transforma o intelecto em vidente!” (EVÁGRIO. CartDes 27).
Evágrio fala continuamente que a ascese sozinha não é suficiente para o caminho espiritual. A mansidão é tão decisiva que só ela é capaz de transformar o coração do homem, tornando-o aberto para Deus. (GRÜN. Alselm, pág. 121). [...]. Na carta 56, Evágrio nos apresenta ainda uma outra comparação: “Aquele que se abstém de comida e bebida, mas em cujo interior se agita a cólera não corrigida, é semelhante a um navio que se encontra no meio do mar e é governado pelo demônio da cólera”.
Evágrio também vê concretizada em Davi e Jesus a mansidão que nós devemos seguir: “Dize-me: por que a Escritura, quando quis exaltar Moisés, deixou de lado todos os sinais milagrosos e pensou unicamente na mansidão? [...] Ela exalta unicamente isso: que Moisés era o mais manso de todos os homens. [...] Foi também por ela que suplicou Davi quando pensou na virtude da mansidão para se tornar digno dela ao falar: ‘Senhor, lembra-te de Davi e de toda a sua mansidão!’ Ele nem mesmo chegou a perceber que seus joelhos haviam se enfraquecido por causa do jejum e que sua carne (por falta de óleo) esmorecera, e que se mantivera vigilante e se tornara como um pardal que voa de um lado para outro no telhado, e falou: ‘Ó Senhor, lembra-te de Davi e de toda a sua mansidão!’ Procuremos também nós merecer a mansidão daquele que disse: ‘Aprendei de mim, pois sou manso e humilde de coração’, para que ele nos ensine seus caminhos e nos reanime no reino dos céus” (EVÁGRIO. CartDes 56).
A mansidão é, para Evágrio, a fonte do conhecimento de Cristo. Sem mansidão podemos ler quanto quisermos a Bíblia e exercitar-nos na mais rigorosa das asceses, mas nunca entenderemos o mistério de Cristo. Evágrio escreve o seguinte a um de seus discípulos: “Acima de tudo, porém, não esqueças a mansidão e a prudência, pois elas purificam a alma e nos indicam o conhecimento de Cristo”. (EVÁGRIO. CartDes 34).
O conhecimento de Cristo é uma outra expressão para a contemplação. Sem mansidão não existe nenhuma contemplação verdadeira. Evágrio escreve a Rufino nestes termos: “Com efeito, estou convencido de que tua mansidão tornou-se para ti um motivo de grande conhecimento. Pois nenhuma virtude sozinha produz a mansidão, razão pela qual também Moisés foi louvado para ter sido ele o mais manso de todos os homens. E também eu rezo, a fim de tornar-me e poder ser chamado discípulo da mansidão” (EVÁGRIO. CartDes 36).
A mansidão é, portanto, um sinal de que nós compreendemos a Cristo e de que o estamos seguindo. [...]. Um homem manso torna-se um homem que atrai e interessa a muitas outras pessoas. Ele já não precisa persuadir os hereges para a fé a partir de sua ortodoxia; ele não tem necessidade de evangelizá-los. Sua mansidão é um testemunho suficiente de Cristo. Quem encontra sua mansidão, encontra a Cristo e haverá de reconhecê-lo através dela. A mansidão e a misericórdia são os critérios de uma espiritualidade autêntica. [...]. Somente quando os homens se tiverem tornado mansos e passarem a tratar seus semelhantes com misericórdia, somente então passarão a anunciar uma espiritualidade que seja ao modo de ser de Cristo. Por mais piedosas que se mostrem todas as demais formas de espiritualidade, ainda provêm do espírito do próprio medo e da repressão das paixões. É neste ponto que poderemos aprender dos primeiros monges a desenvolver uma espiritualidade que corresponda ao espírito de Cristo. (GRÜN. Alselm, pág. 123).



______________________________

1 Segundo o dicionário de psicologia Dorch, a psicossíntese é “um conceito formado para completar ou contrapor-se à psicanálise, para designar todas as medidas da psicoterapia. O encontro de si mesmo e possibilidades abertas de desenvolvimento se consideram mais importantes do que a última explicação causal”. Para um maior aprofundamento da psicossíntese de Roberto Assagioli (1888-1974), sugiro o artigo recentemente publicado: “Roberto Assagioli, ideatore della psicosintesi”. Antonianum, Ano 72, abr.-jun. de 1997, fasc. 2, p. 303-316.

 

terça-feira, 8 de setembro de 2020

O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto para hoje (Parte 3)

O tratamento das nossas paixões
:
São métodos de tratamento dispensado para os logismoi, (pensamentos e sentimentos instintivos), que prejudicam a todos os homens e mulheres, principalmente aos que aspiram viver uma vida espiritual íntegra para com Deus e os homens. [...] Para cada tipo de paixão, Evágrio aconselha um outro método. Os três instintos básicos – o comer, a sexualidade e a cobiça – são transformados por meio da ascese, do jejum e da esmola. A disciplina torna-se aqui um ótimo caminho para não se reprimir os instintos, mas formá-los para que possam estar à nossa disposição como forças em potencial. Superamos a tristeza quando nos afastamos da dependência do mundo, quando nos desprendemos daquilo a que estamos presos, quando nos libertamos interiormente. (GRÜN. Alselm, p. 83).
Sobre a ira, o que nos ajuda, antes de dormir, é refletir sobre ela e livrar-se dela, a fim de que ela não se fixe através do inconsciente no sonho, vindo a manifestar-se no dia seguinte como insatisfação difusa. Pois se nós, durante a noite, levarmos a ira conosco, perderemos o controle sobre nós mesmos e continuaremos sendo governados pela ira e pelo rancor a partir do inconsciente. É por isso que nos diz Evágrio: “Não deixes o sol se pôr sobre a cólera, senão os demônios virão durante teu descanso noturno, irão atormentar-te e, desse modo, haverão de tornar-te ainda mais covarde para a luta do dia seguinte. Pois as alucinações noturnas surgem comumente através da influência agitada da cólera. E não há nada que torne o homem mais apto a abandonar sua luta do que quando ele é incapaz de controlar suas emoções”. (EVÁGRIO. TratPrat 21).
Mas Evágrio nos adverte, sobretudo, contra os jogos de pensamentos com a cólera: “Não te entregues à cólera, querendo lutar em pensamentos com quem te aborreceu” (EVÁGRIO. TratPrat 23). Pois isto faz com que nossa alma se ofusque e nosso espírito fique opaco. Mas também devemos valer-nos de nossa cólera como uma força positiva, voltando-se contra os demônios, contra as tentações e contra os pensamentos que nos impedem de viver: “Devemos estar encolerizados quando encaramos os demônios e lutamos contra o divertimento” (EVÁGRIO. TratPrat 24).
Evágrio dá três conselhos em relação à acídia. O primeiro diz respeito à constância. Devemos decididamente permanecer em nossa cela e simplesmente suportar aquilo que acontece em nosso interior: “Aceita simplesmente o que a tentação te oferece. Antes de mais nada, encara esta tentação da acídia, pois ela é a maior de todas. Mas ela tem também como resultado uma maior purificação da alma. Fugir ou espantar-se diante de tais conflitos torna o espírito acanhado, covarde e medroso” (Evágrio. TratPrat 28).
O segundo conselho refere-se à oração: “Quando a acídia nos tenta é bom que, entre lágrimas, dividamos nossa alma em duas partes iguais: uma que anima e outra que é animada. Nós semeamos semente de uma esperança inabalável em nós quando cantamos com o rei Davi: Ó minha alma, por que estás aflita e tão inquieta dentro de mim? Espera em Deus, pois eu ainda haverei de agradecer-lhe, meu Deus e Salvador, a quem eu contemplo!” (Sl 42,6). (EVÁGRIO. TratPrat 27).
O método aqui recomendado por Evágrio é o método antirrético
1. Este método foi por ele desdobrado em seu livro intitulado Antirrheticon. Trata-se de um método que ajuda não só no caso da acídia, mas em toda e qualquer situação. Evágrio recolhe uma palavra da Bíblia contra cada pensamento que possa tornar-nos doentes e embaraçados diante da liberdade, do amor e da vida e a contrapõe a estas situações. Desse modo, uma pessoa que continuamente se repreende dos pecados de sua juventude e diz que com ela tudo está de cabeça para baixo, deve sempre de novo repetir a palavra de 2Cor 5,17 que diz: “Quem está em Cristo é uma nova criatura. O velho passou e um mundo novo se fez”. Esta palavra transforma pouco a pouco nossos sentimentos de tristeza e de autocompaixão. Ela nos põe em contato com a força positiva que está em nós, por meio do Espírito Santo que já está atuando em nós e que, como uma fonte, borbulha em nós, preparando-nos para que a partir disso possamos tomar novo ânimo. (GRÜN. Alselm, p. 86).
Contra a 
ambição Evágrio indica o remédio da recordação. Devemos recordar-nos de onde viemos, com quais paixões tivemos que lutar e como não foi mérito nosso que tenhamos vencido, mas, pelo contrário, foi Cristo quem nos amparou em nossas lutas. A recordação haverá de mostrar-nos que não temos garantia alguma de nossa vida ser bem-sucedida, mas que isso é antes fruto da graça divina. Evágrio diz que o demônio da soberba e da ambição sempre de novo haverá de aparecer em nós. E, principalmente, quando já tivermos feito consideráveis avanços dentro da ascese. O remédio mais eficaz é a contemplação. Quando nos tivermos unido a Deus através da contemplação, não terá mais valor o que as outras pensam a respeito de nós e não mais os definiremos a partir do reconhecimento e da aprovação, mas teremos encontrado nosso fundamento em Deus. (GRÜN. Alselm, págs. 86-87).

[...].

O diálogo com os pensamentos é conveniente, sobretudo no caso do 
medo. Também o medo tem seu significado e quer me dizer algo. Pois sem ele eu também não possuiria medida, querendo constantemente exigir demais de mim. Todavia, o medo geralmente me bloqueia. Mas se converso com ele, é possível que me revele para uma atitude falsa em relação à vida. Não raro o medo provém de um ideal de perfeição. Eu tenho medo de cometer uma gafe, de cometer uma falha. Eu não me atrevo a falar no grupo por medo, porque eu poderia vir a gaguejar ou porque os outros poderiam achar isso ruim. Também sinto medo de ler, uma vez que poderia vir a me atrapalhar. Nestes casos, o medo revela sempre expectativas exageradas. Em última análise, é a soberba que provoca o medo. Assim, a conversa com meu medo poderia conduzir-me à humildade, isto é, à humilitas. E eu poderia reconciliar-me com meus limites, com minhas fraquezas e falhas, dizendo, por exemplo: “Posso cometer gafes. Não tenho obrigação de poder tudo”. (GRÜN. Alselm, págs. 91-92).
Porém, existem também medos que não indicam falsas atitudes de vida, mas têm necessariamente uma ligação com o ser humano. É o caso do medo da solidão, do medo da perda e do medo em relação à morte. Em cada pessoa existe uma parcela considerável de medo diante da morte. Em algumas pessoas chega ao ponto de tornar-se ameaçador. Neste momento seria importante conversar com o medo nestes termos: “Sim, é certo que um dia morrerei”. O medo pode me ajudar a reconciliar-me com a morte e a me convencer de que sou realmente mortal. Quando examino o medo a fundo, quando o admito, é possível que em meio ao medo eu experimente também uma profunda paz. O medo se transforma em serenidade, liberdade e paz. (GRÜN. Alselm, p. 92).

[...].

Um outro método de abordar os nossos pensamentos e sentimentos, nossas paixões e necessidades, consiste em pensá-los até o fim, em imaginá-los até às últimas consequências e em permitir a representação das paixões. Desta maneira poderemos tirar-lhes a sua força. Força com que eles sempre de novo tendem a combater-nos. Talvez também acabemos por descobrir para onde as paixões realmente estão querendo nos conduzir. Não raro, por exemplo, as fantasias sexuais representam algo totalmente diverso: a ânsia de estar vivo, de abandonar-se, de entregar. Se eu continuamente lutar contra as fantasias sexuais e as reprimir, elas sempre retornarão. Todavia, se for capaz de pensar nelas até o fim e de senti-las, elas poderão transformar-se num impulso de vida, e até mesmo num impulso em direção a Deus. (GRÜN. Alselm, págs. 93-94).
Conta-se que pai Olímpio não fugiu da ideia de se casar e tudo pensou em seus mínimos detalhes. E mais: “Fez uma mulher de barro, olhou para ela e disse a si mesmo: ‘Vê, esta é tua esposa. De ora em diante precisarás trabalhar muito, a fim de sustenta-la’. E trabalhou muito. No dia seguinte, preparou novamente uma porção de barro e deu forma a uma filha, e disse para si mesmo: ‘Tua mulher deu à luz! Agora é necessário que trabalhes ainda mais para conseguires sustentar e vestir tua filha’. Fazia isto a ponto de extenuar-se e, então disse a si mesmo: ‘Não posso mais suportar o trabalho’. E disse ainda a si mesmo: ‘Se já não podes suportar o trabalho, então também não queiras uma esposa’. E, vendo Deus seu esforço, tirou-lhe a sua luta e ele alcançou tranquilidade” (Apot 572). [...]. Talvez nos pareça simplório o argumento de ele não desejar uma mulher apenas por causa do trabalho demasiado. O decisivo aqui, porém, é o seguinte: se, por um lado, Olímpio trata sem medo de sua necessidade de possuir uma mulher e não somente a representa na fantasia, mas chega mesmo a moldar uma mulher de barro e a encara realmente, por outro lado, no entanto, ele não fica parado na fantasia de querer dormir e viver com a mulher, mas também descreve para si as consequências. Apresenta o desejo em sua realidade, e, porque o desejo é pensado em sua realidade nua e crua, ele perde seu caráter ameaçador. É neste momento que pai Olímpio se torna capaz de encarar e tratar o desejo de modo sóbrio. (GRÜN. Alselm, págs. 94-95).

[...].

Pessoas insatisfeitas com sua profissão necessitam ocupar-se realmente, nem que seja uma única vez, com a profissão desejada e experimentá-la para então poderem retornar saudavelmente ao estado atual com novo vigor e contentamento. O mesmo vale também para um marido, que possa ter-se apaixonado por uma outra mulher. Geralmente ele só conseguirá desprender-se de seus sonhos românticos quando representar concretamente para si mesmo como seria viver com esta mulher, abandonar tudo o que fez até o presente e estar dia após dia ao lado dela. Quando coloca seus sonhos dentro da realidade e realmente os admite, também será capaz de desligar-se deles. (GRÜN. Alselm, p. 95).
Evágrio fundamenta o método antirrético tanto a partir da prática de Davi como também da atividade de Jesus. Segundo uma de suas cartas, o intelecto precisaria conhecer primeiramente as intrigas enganadoras dos demônios. Este é o pressuposto para o conhecimento de Cristo, para a contemplação. O caminho para lá chegar passa pela luta com os demônios: “Por isso ele – o intelecto – deve ser destemido diante de seu adversário, como mostra o bem-aventurado Davi, apresentando palavras tiradas da boca dos demônios e então contestando-as. Com efeito, se os demônios dizem: ‘Quando ele há de morrer e seu nome desaparecer?’, ele diz: ‘Eu não morrerei, mas haverei de viver e anunciarei as obras do Senhor’. E, novamente, se os demônios dizem: ‘Foge e permanece nas montanhas como o pardal’, ele diz: ‘Pois ele é meu Deus e meu Salvador, meu refúgio vigoroso e eu não vacilarei’. Portanto, observa as palavras que se contradizem umas às outras e ama a vitória, imita Davi e presta atenção em ti mesmo!” (EVÁGRIO. CartDes 11).
método de Davi consiste em dividir sua alma em duas partes: entre a triste e a que anima, entre a que é doente e a que é saudável. Estas duas esferas da alma devem dialogar uma com a outra. A parte doente se manifesta por meio de objeções negativas tais como: “Eu não posso fazer isso, ninguém gosta de mim, ninguém se preocupa comigo, comigo sai tudo errado”. Contra tais pensamentos deve-se procurar uma palavra na Escritura. Evágrio fez isso, para seus irmãos, em seu livro Antirrheticon: “Entretanto, visto que durante os momentos de luta nós não encontramos com suficiente rapidez as palavras que devem ser ditas contra nossos inimigos, que são os odiados demônios, e uma vez que tais palavras se encontram dispersas nas Escrituras e é difícil encontrá-las, nós, repletos de zelo, as recolhemos das Escrituras. Desse modo, armados com elas, perseguimos vigorosamente os filisteus, perseverando na luta como homens fortes e soldados de nosso vitorioso Rei Senhor Jesus Cristo” (EVÁGRIO. Anti, prólogo).
O modelo para esta luta é o próprio Cristo. Pois, quando tentado pelo diabo, pronunciou palavras da Escritura contra suas objeções mentirosas: “O próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, tendo abandonado tudo para nos salvar, concedeu-nos o poder de andar por sobre serpentes e escorpiões e sobre todo tipo de poder do maligno. E, juntamente como todo seu ensinamento, nos transmitiu o que ele mesmo fez quando foi tentado por Satanás, para que, no momento da luta, quando os demônios saem à luta contra nós lançando seus projéteis, possamos enfrenta-los com as Sagradas Escrituras, para que os pensamentos perversos não permaneçam em nós, não subjuguem a alma pelos pecados que realmente ocorrem, não a manchem nem a deixem afundar-se na morte dos pecados... Sempre que na alma não existe pensamento apropriado para se opor ao maligno sem descanso e rapidamente, o pecado acaba tendo a supremacia” (EVÁGRIO. Anti, prólogo).

[...]

____________

1 Fundamentado no estoicismo, este método consiste, segundo Evágrio Pôntico, em recolher uma palavra bíblica contra cada pensamento ou sentimento negativo que possa vir a tornar-nos doentios. Para realizar isso, contudo, pressupõe-se que se tome conhecimento dos próprios pensamentos, sentimentos e paixões, a fim de se poder encontrar a palavra curativa adequada. Uma das referências principais é a obra de Evágrio intitulada Antirrheticon, que reúne textos bíblicos para os oito vícios que o homem deve combater para afugentar os demônios.



No capítulo 8, intitulado: A formação da vida espiritual, o autor enfatiza a importância como eles os monges, estruturam concretamente seu dia e que exercícios praticam para ter uma penitência e comunhão com o Senhor Jesus Cristo. “Pai Poimen disse: Encontramos três exercícios corporais no patriarca Pambo: jejuar durante o dia todo até à noite, calar e muito trabalho manual” (Apot 724). Com estes exercícios Pambo chegou à sua maturidade espiritual. A perseverança consequente nestas três coisas fez com ele fosse transformado. De forma semelhante fica sabendo Antão, por meio de um anjo, como sua vida poderia ser bem-sucedida. Quando, tomado de mau humor, pergunta ao anjo pelo que deve fazer, avista alguém que se parece com ele: “Ele estava sentado e trabalhava. Levantou-se do trabalho e orou, sentou-se novamente e trançou uma corda e aí levantou-se outra vez para orar. Eis que era um anjo do Senhor, enviado a fim de dar instrução e certeza a Antão. Ele ouviu o anjo dizer-lhe: ‘Procede assim e alcançarás a salvação’. Ao ouvir isso, foi tomado de grande alegria e coragem. E através deste modo de proceder ele encontrou a salvação” (Apot 1). [...].
Ao patriarca João atribuiu-se um outro exercício: “Conta-se que, ao regressar para casa depois da colheita ou depois de visitar anciãos, o patriarca João dedicava-se à oração, à meditação e à salmodia, até que seu pensamento voltasse à ordem que tinha ao princípio” (Apot 350). João não permite que as emoções despertadas pelo diálogo com seus confrades tenham livre curso. Em primeiro lugar, ele reserva um tempo para a oração, para que as emoções possam vir a esclarecer-se. Quando carregamos não elaboradas emoções para casa e ainda por cima as sufocamos com atividade excessiva – de qualquer espécie –, elas se estabelecem no inconsciente, criando em nós, a partir desse momento, uma insatisfação difusa. [...]. E aquele que dá livre curso aos seus pensamentos e sentimentos, sem confrontar-se com eles, é por eles interiormente contagiado. E assim, sem que o perceba, é governado pelos impulsos inconscientes e perde sua liberdade. (GRÜN. Alselm, p. 102).
A respeito do patriarca João conta-se ainda algo semelhante: “Certa vez, tendo ido à igreja de Scete e ouvindo como alguns dos irmãos disputavam entre si, voltou para a sua cela. Antes de entrar nela, rodeou-a por três vezes. Alguns dos irmãos que o haviam observado, mas não podendo imaginar por que havia feito isso, vieram até ele e o interrogaram. E ele lhes disse: ‘Meus ouvidos estavam cheios das disputas; fiz estas voltas a fim de purificá-los para, desta maneira, pode entrar em minha cela com serenidade’” (Apot 340).
Ao Pai Antão se atribui a seguinte sentença: “O monge deve, enquanto possível, dizer com confiança ao patriarca quantos passos ele dá, ou quanta água bebe em sua cela, a fim de estar seguro de não estar pecando” (MILLER. SabPad 40). A configuração exterior da vida é muito importante para os monges. Nela eles reconhecem se alguém está sadio ou não, se alguém realmente procura a Deus ou se procura a si mesmo. A ordem exterior põe o monge interiormente em ordem. Ela purifica seu pensamento, seus sentimentos e cria espaço para tornar-se também limpo e transparente interiormente. (GRÜN. Alselm, p. 103).
A espiritualidade dos primeiros monges tem a força de formar e transformar a vida. Hoje em dia, corremos o risco de escrever unicamente sobre a espiritualidade. E, no entanto, ela não se manifesta na vida concreta e não tem força de marcar a vida. Certa noite, quando me encontrava numa casa paroquial, o padre durante o jantar não sabia fazer outra coisa a não ser assistir televisão. Pensei comigo: amanhã ele poderá pregar o que ele bem quiser. Se a vida não vai bem, a pregação também não irá bem e a espiritualidade acaba ficando sem valor. A espiritualidade dos monges produziu uma cultura de vida. Ela nos desafia ainda hoje a nos deixarmos penetrar espiritualmente por ela, a cultivar uma vida espiritual que se torna visível também exteriormente. (GRÜN. Alselm, págs. 103-104).
Para os monges, o caminho para uma cultura da vida espiritual era sempre um exercício concreto. Havia, em geral, três conselhos que um pai espiritual dava a um jovem monge quando este lhe perguntava a respeito da via do verdadeiro monaquismo. “Certa vez, um irmão, que vivia com outros irmãos, perguntou a pai Bessarião: ‘O que devo fazer?’ Respondeu-lhe o ancião: ‘Cala e não te meças com os outros’” (Apot 165). [...]. Antão recomenda ainda outro exercício: “Pai Pambo perguntou a Pai Antão: ‘O que devo fazer?’ Retrucou-lhe o ancião: ‘Não construas sobre a tua própria justiça, nem te lamentes de algum acontecimento passado, e exercita a moderação de tua língua e de teu ventre’” (Apot 6). 
[...]. 
Aqui, ao lado da abstinência da língua e do ventre, do calar e do jejum, temos a humildade, que também é descrita em muitas outras sentenças dos patriarcas como o caminho régio para Deus. A humildade é considerada pelos monges como “a virtude mais elevada, pois faz com que o ser humano possa erguer-se até de um abismo, mesmo que o pecador seja como um demônio” (N 558). O terceiro exercício consiste no interessante conselho de não arrepender-se de alguma coisa do passado. [...]. Somente quem se arrepende consegue alcançar o perdão. E isso está certamente correto. Às vezes, porém, pensamos demonstrar algum agrado a Deus, tornando-nos tão contritos a ponto de falar mal de nós mesmo e acusar-nos através do arrependimento. Neste particular, o patriarca Antão dá-nos um outro conselho: O que passou, passou! Isso vale para os acontecimentos passados, pois não devemos ficar meditando insistentemente sobre nosso passado. [...]. O que precisamos é prestar menos atenção em nós mesmos e em nossas falhas, e mais em Deus: “Pois Deus é maior do que nosso coração; e ele sabe tudo” (1Jo 3,20).

[...]

Assim pai Paulo de Gálata fala de si mesmo e do seu exercício diário: “Tenho sempre estas três coisas presente no espírito: calar, humildade de espírito e dizer para mim mesmo: Eu não tenho nenhuma preocupação” (EthColl 13,66). Aqui nos deparamos novamente com o calar, tão aconselhado pelos monges; deparamo-nos também com a humildade como atitude fundamental da pessoa religiosa. Um dos padres monásticos é até capaz de dizer: “Onde não há humildade, também não há Deus” (Arm II 279 A). A humildade é a condição prévia para poder experimentar a Deus. Sem a humildade, corremos não só o perigo de fazer cobranças a Deus como também de submetê-lo aos nossos pensamentos e vontades. (GRÜN. Alselm, págs. 105-106).
O terceiro exercício consiste na despreocupação. O padre monástico a exercita dizendo sempre de novo: “Eu não tenho preocupação”. Ele precisa dizer esta palavra com clareza para si mesmo, toda vez que em seu coração surgem pensamentos de preocupação. Pois não existe ser humano destituído de preocupação. Segundo o modo de pensar de Martin Heidegger, a preocupação constitui mesmo o existencial fundamental do ser humano. O ser humano é essencialmente alguém que se preocupa. Pois, enquanto sustento que “não tenho nenhuma preocupação”, é possível que o sentimento se transforme e cresça em mim a fé em Deus. Aqui, portanto, se indica um caminho para exercitar-se na fé em Deus. (GRÜN. Alselm, p. 106). [...]
Hoje em dia, muitos psicólogos recomendam que a pessoa se encoraje com palavras positivas e frase de confiança – algo como acontece no exercício de relaxamento. Tudo isto, porém, sempre o fizeram os monges de outrora. Para os primeiros monges, a vida espiritual também significava a arte de uma vida saudável. Não é por acaso que os monges alcançaram idades tão avançadas. Sua ascese não era uma ascese de negação da vida, mas, pelo contrário, uma ascese que fomentava e promovia a vida. A dietética, isto é, a arte uma vida saudável, tarefa mais importante da antiga medicina, também foi incorporada pelos monges em sua vida espiritual. Eles compreenderam que o caminho espiritual consiste na arte de uma vida saudável. E não há vida espiritual saudável sem que haja também um estilo de vida saudável. [...] e é a partir dela que puderam recomendar uma saudável alternância entre oração e trabalho, entre vigília e sono, entre refeição e jejum, entre solidão e convivência, como norma de vida saudável. Pois é através da ordem exterior que o homem entra em ordem também interiormente. (GRÜN. Alselm, págs. 106-107). [...].

Link para a continuação do post: O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto para hoje

segunda-feira, 6 de abril de 2020

O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto para hoje (Parte 2)

A respeito da Ascese: “Os monges falam com frequência da luta que a vida com Deus exige. A vida no deserto faz com que os monges lutem com amiúde contra os demônios, gerando assim, um trabalho constante para os mesmos”. “Disse mãe Sinclética: No início existe toda sorte de fadigas e lutas para aqueles que se aproximam de Deus. Mais tarde, porém, alcançam uma alegria inexprimível. Assim como aqueles que querem acender o fogo são primeiramente incomodados pela fumaça e chegam a lacrimejar, chegando em seguida a alcançar o que desejam – uma vez que está escrito: ‘Nosso Deus é um fogo ardente’ (Hb 12,29) –, assim também nós devemos atiçar em nós o fogo divino por meio de lágrimas e esforço” (Apot 892).
“Um irmão suplicou a pai Arsênio que lhe dissesse uma palavra. E o patriarca lhe disse: ‘Luta com todas as tuas forças para que tua ação interior seja semelhante ao modo de ser de Deus e serás capaz de vencer tuas paixões exteriores’” (MILLER. SabPad 44). Num outro apotegma, é Cristo mesmo quem fala a um monge: “Eu, porém, vos digo: É necessário muito trabalho, pois sem trabalho ninguém pode possuir a Deus. Pois ele mesmo foi crucificado por nós”. (MILLER. SabPad 103).

[...]. 


A ascese é, num sentido ético, “um exercício para um comportamento virtuoso, conformado ao ideal” (LEX 749).

Ascese diz respeito, portanto, a algo positivo, que é o exercício para a aquisição de uma atitude religiosa. Somente na filosofia popular cínico estoica é que a ascese foi vista como renúncia e como repressão dos instintos. Este aspecto negativo foi vencido pela ascese cristã, à medida que para os monges o ponto preponderante consiste no exercício pelo qual o ser humano se exercita numa atitude de apatheia1, um estado de paz interior em que estamos abertos para Deus. Para os monges, porém, este estado de paz se origina sempre da luta. Por essa razão é importante começarmos primeiramente com a luta contra os demônios que nos possam desviar de Deus. (GRÜN. Alselm, p. 53-54). O que Evágrio chama de apatheia significa, para Cassiano, seu discípulo e aquele que dá uma forma nova e latinizada ao ensinamento de Evágrio, puritas cordis, quer dizer, pureza de coração. A pureza de coração é um estado de clareza e pureza interior, de amor como abertura para Deus. Para alcançar a pureza de coração é necessário lutar: “Portanto, para alcançar a pureza de coração e o amor, é necessário que façamos tudo quanto realizamos por meio de obras ascéticas; pois elas são os instrumentos que podem libertar nosso coração de todas as paixões prejudiciais que nos atrapalham no progresso para a plenitude do amor. Assim, nós praticamos o jejum, as vigílias noturnas, o recolhimento, a meditação das Sagradas Escrituras, etc. por almejarmos a pureza de coração, que consiste no amor. Assim, o que quer que façamos, devemos fazê-lo a fim de tornar-nos verdadeiramente amantes. É por isso que o amor é normativo em tudo. Atingi-lo é a finalidade de nosso agir; e os instrumentos de que dispomos para isso são de dupla categoria” (JOÃO CASSIANO. PotAlm 108). [...].
Os monges desenvolveram métodos de luta com os quais nos é possível treinar a atitude do amor, a atitude de clareza e pureza interiores, com as quais podemos treinar a abertura sincera para Deus. É muito frequente encontrar nos monges duas imagens para a luta por uma vida que nós mesmos vivemos, que corresponde à imagem que Deus tem de nós: nós somos atletas de Cristo – e somos soldados do Rei Cristo. (GRÜN. Alselm, p. 54-55).
O monge é atleta de Cristo. Sua luta está voltada, acima de tudo, contra as paixões. Entretanto, ele nunca poderá, como o atleta que está na arena, vencer o adversário e descansar sobre os louros da vitória. Nossa vida é, ao contrário, uma luta permanente. Os patriarcas exortam os jovens a esta luta. Em muitas sentenças dos patriarcas se experimenta até mesmo o prazer pela luta. Nisso se manifesta o sentimento de que nós não estamos entregues aos demônios, mas podemos vencê-los pela força de Cristo. E é esta chance de vencer que impulsiona os monges em sua luta. Do monge que renuncia às suas posses, Evágrio diz que ele é “um atleta que ninguém consegue segurar pela cintura e um corredor veloz que, com rapidez, alcança o prêmio do chamado do alto” (EVÁGRIO. OitPens 53).
Segundo Evágrio, porém, só podemos suportar a luta contra as paixões, se “nós lutarmos como homens e soldados robustos de rei vitorioso, Jesus Cristo. [...] Nessa luta, no entanto, é necessário – como arma espiritual – uma fé firme e uma doutrina segura, quer dizer, é necessário o jejum perfeito, as ações vigorosas, a humildade, um silêncio que seja pouco perturbado ou totalmente imperturbado, e a oração continuada. O que eu gostaria de saber, porém, é se alguém é capaz do continuar a luta em sua alma e de ser coroado com a coroa da justiça quando sacia sua alma com pão e água, quando atiça a cólera com rapidez, quando despreza e descuida da oração e quando se reúne com os heréticos. Presta pois atenção ao que diz São Paulo: ‘Os atletas se abstêm de tudo’ (1Cor 9,25). [...] Por conseguinte, ao empreendermos esta campanha, não há dúvida que é importante empregarmos a armadura espiritual e mostrarmos aos pagãos que nós lutaremos contra os pecados mesmo que tenhamos que derramar o sangue” (EVÁGRIO. Anti 2).


[...]. 


No capítulo 5 veremos sobre a importância do Calar e não julgar.

“O patriarca Poimen solicitou ao patriarca José: ‘Dize-me como poderei tornar-me monge’. E ele respondeu: ‘Se queres encontrar serenidade onde quer que estejas, então, em tudo que fizeres, deves dizer: Quem sou eu? E não julgues a ninguém’” (Apot 385). O julgamento dos outros é sempre um sinal de que a pessoa ainda não se encontrou consigo mesma. Por essa razão as pessoas piedosas, que se irritam com os outros, ainda não encontraram sua própria verdade. Sua piedade ainda não fez com que se confrontassem consigo mesmas e com seus próprios pecados. Pois assim diz pai Moisés: “Se alguém carrega seus próprios pecados, não fica reparando os pecados dos outros” (Apot 510). “Certa vez, pai Poimen foi interrogado por um irmão: ‘Pai, o que devo fazer, já que fico abatido por causa da tristeza?’ E o ancião lhe respondeu: ‘Não olhes para ninguém sem motivo, não julgues nem difames ninguém e, assim, o Senhor haverá de conceder-te serenidade’” (Apot 1186). Os monges realizam, por meio de sua experiência, aquilo que Jesus exige no sermão da montanha: “Não julgueis para não serdes julgados!” (Mt 7,1). O não julgar é fruto do encontro consigo mesmo. Pois quem se encontra consigo sabe de todas as suas próprias falhas e conhece seus lados sombrios. Ele sabe estar carregando em si mesmo aquilo que ele julga, nos outros. E se uma outra pessoa peca, então, ele não se irrita, mas é levado a recordar-se de seus próprios pecados. Os psicólogos nos dizem que, ao xingarmos os outros, revelamos aquilo que está em nós mesmos. Nós projetamos nossos próprios lados sombrios, nossos desejos e necessidades recalcadas sobre os outros e os xingamos, ao invés de mantermos a nossa própria verdade perante os olhos. O desejo dos monges é que abandonemos os mecanismos de projeção e que, em vez disso, nos calemos. O calar é, pois, segundo eles, um auxílio para deixar de lado a projeção e, em vez disso, encarar o comportamento dos outros como um espelho para nós mesmos. E é justamente isso que algumas sentenças dos patriarcas nos ensinam. (GRÜN. Alselm, p. 60-61).
O calar é a renúncia a todo tipo de projeção. “Quando pai Agatão via algo e seu coração queria emitir um juízo a respeito, dizia para si mesmo: ‘Agatão, não faças isso’. Foi assim que seu pensar encontrou a tranquilidade” (Apot 100). “E quando vires alguém pecando, reza ao Senhor e dize: perdoa-me, pois pequei” (EthColl 13,40). O julgamento dos outros nos torna cegos para as nossas próprias falhas. Calar em relação aos outros nos proporciona um autoconhecimento mais lúcido e faz com que paremos de projetar as nossas falhas sobre eles. Uma sentença dos patriarcas diz o seguinte: “Certa vez, houve uma assembleia em Scete a respeito de um irmão que havia pecado. Os patriarcas todos falaram pai Pior, porém permaneceu calado. Em seguida, ele levantou-se e, tomando um saco, encheu-o com areia e o pôs nas costas. E pôs um pouco de areia num pequeno cesto e colocou-o à sua frente. Os patriarcas então lhe perguntaram o que isso significava, e ele respondeu: ‘O saco que tem muita areia são meus pecados e estes são numerosos. Eu o pus sobre minhas costas para que não me aflijam nem me façam chorar. E vejam: as poucas falhas do meu irmão, que estão diante de mim, sobre elas eu falo muito a fim de julgá-lo. Não é correto proceder desta maneira. Eu deveria, ao contrário, colocar minhas próprias falhas à minha frente, e, meditando sobre elas, deveria pedir a Deus para me perdoar’. Então os patriarcas levantaram-se e disseram: ‘Verdadeiramente este é o caminho de salvação!’” (Apot 779). 

Mesmo quando um irmão realmente peca, não devemos julgá-lo. Assim nos diz pai Poimen: “Se um homem peca e o nega, dizendo: ‘Eu não pequei’, não o julgues, pois deste modo podes fazer com que desanime. Contudo, se disseres: ‘Não desanimes, irmão, mas toma cuidado de agora em diante’, então estarás despertando sua alma para o arrependimento” (Apot 597). Em vez de julgar o outro, deveríamos, por meio da caridade, buscar conquista-lo para Deus. “Dizia-se a respeito de pai Isidoro, presbítero de Scete, que se alguém tinha um irmão enfermo, negligente ou presunçoso, e queria expulsá-lo, lhe dizia: ‘Tragam-no para mim!’ E ele o tomava consigo e, com a paciência que lhe era própria, o conduzia à salvação” (Apot 357).
Não raras vezes acusa-se os primeiros monges de terem-se tornado austeros demais em sua ascese. Porém, as mais diversas exortações a não julgar e as belas narrativas sobre monges misericordiosos mostram-nos o contrário. Sim, para os monges, o não julgar era um critério para o caminho certo. Pois quem julga os outros ainda não aprendeu a conhecer-se realmente. Hoje em dia, existem muitos movimentos piedosos que vivem às custas dos outros. Eles se definem à medida que ficam rebaixando e ultrajando os outros. Quando alguém tem necessidade de amaldiçoar os homens por seguirem um outro caminho espiritual, isso será sempre um sinal de que seu próprio caminho não é o correto. Sua maldição revela o demônio no próprio coração, realidade, porém, que ele não admite. Nestas horas ele recalca e projeta este demônio sobre os outros. Quem se conhece a si mesmo com sinceridade, torna-se misericordioso sozinho. E sabe, no fundo de seu coração, que todos nós necessitamos da misericórdia de Deus. E quando Deus permite que o bem triunfe em nós, isso será sempre um prodígio de sua graça. (GRÜN. Alselm, p. 63-64).

[...]

Uma das atividades para compreendermos a nós mesmos e vigiarmos nas nossas ações é sobre: A análise dos nossos pensamentos e sentimentos. 


O encontrar-se consigo mesmo é uma condição prévia do encontro com Deus. Para Evágrio Pôntico, antes de tudo, um encontro com os pensamentos e com os sentimentos do próprio coração. Dele se diz: “Se queres chegar a conhecer todas tentações que ele experimentou da parte dos demônios, deves ler o livro que ele compôs contra as objeções dos demônios. Ali verás toda a sua força e todas as tentações pelas quais passou. Foi por esta razão que ele as expôs por escrito de modo que, aqueles que viessem a lê-las, pudessem ser fortificados e vissem que não são somente eles a serem tentados dessa maneira. Evágrio é aquele que nos ensinou a maneira adequada de vencer todo e qualquer tipo de pensamento” (EVÁGRIO. OitPens 52).
Evágrio está convencido de que grande parte de nosso caminho espiritual consiste em prestar atenção às paixões de nosso coração, em conhecê-las e tratá-las adequadamente. O objetivo deste tratamento é a apatheia, que é um estado de paz interior e serenidade. Na apatheia as paixões já não mais se combatem entre si, mas entram em harmonia umas com as outras. Evágrio chama também a saúde da alma de apatheia. A meta do caminho espiritual não é, portanto um ideal moral destituído de defeitos, mas a saúde da alma. Segundo Evágrio, a alma é saudável quando ela entra em harmonia consigo mesma, quando está preparada para o amor. Pois somente o homem que alcança a apatheia é capaz de amar realmente. Sim, porque, na realidade, a apatheia é amor. (GRÜN. Alselm, p. 67-68).
Evágrio é grego. E por isso ele também constrói o caminho espiritual a partir da imagem do homem grego. A filosofia grega conhece três âmbitos no ser humano: a parte cobiçosa (epithymia), a parte emotiva (thymos) e a parte espiritual (nous). Aliás, estes são também os três âmbitos conhecidos pelo eneagrama, quer dizer, um sistema de autoconhecimento que tem sua origem no sufismo e que apresenta grande semelhança com a doutrina dos nove logismoi de Evágrio. O eneagrama fala de um tipo-ventre, de um tipo-coração e de um tipo-cabeça2. (GRÜN. Alselm, p. 68). 


A cada um destes três âmbitos, Evágrio relaciona também três logismoi. 


Logismoi são pensamentos sensitivos que podem dominar o homem, são paixões da alma e forças impulsivas com as quais ele deve se debater. Num sentido negativo, Evágrio chama os logismoi também de vícios e os ordena a demônios que inspiram estes vícios ao homem. Por conseguinte, o tratamento destes pensamentos e paixões é ao mesmo tempo uma luta com os demônios. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 68).
O conhecimento exato das emoções e paixões é a condição prévia para podermos lidar adequadamente com elas. E a meta de nossa luta é, por sua vez, a apatheia, isto é, a liberdade interior. Dito em linguagem psicológica, podemos dizer: A meta é um modo maduro de lidar com minhas emoções, um relacionamento equilibrado com minhas paixões, um modo de estar em paz comigo mesmo e com minha sombra, minha totalidade, na qual a sombra é integrada e serve à aspiração espiritual.
Na familiaridade com as paixões Evágrio vê cumprir-se a palavra de Jesus a respeito da prudência das serpentes: “Disse Nosso Senhor: ‘Sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas!’ (Mt 10,16). Na verdade, o monge deve ser manso e sem falsidade e, seguindo a palavra dos profetas, sua luta há de acontecer em meio à mansidão. A visão de seu espírito, porém, deve ser ágil, e seja prudente nas malícias dos demônios como o é o mangusto – uma espécie de doninha egípcia – que observa o rastro das suas presas para estar em condições de dizer: os pensamentos do maligno não estão encobertos para mim; ou ainda: meu olho vê o meu inimigo e meus ouvidos hão de ouvir o maligno que se me opuser” (EVÁGRIO. CartDes 16).
Portanto, para podermos agarrar os demônios, devemos estudá-los como o mangusto estuda o rastro das suas presas. A serpente é ao mesmo tempo símbolo da sabedoria, da natureza e da sexualidade. Por isso, adquirir a prudência da serpente também significa: reconciliar-nos com a nossa sexualidade, familiarizar-nos com ela, a fim de podermos integrar a sua sabedoria e a sua força em nosso caminho espiritual. Os padres do deserto tornaram-se muito familiares dos pensamentos e sentimentos negativos e das paixões da alma. Eles não tinham medo de entrar em contato com os demônios. Para eles, essa era uma luta diária por meio da qual eles puderam conhecer o adversário com um rigor sempre maior. Em seus escritos fala a experiência com as paixões de nosso coração e com as forças de nosso inconsciente. (GRÜN. Alselm, p. 70-71).

1) Ao âmbito da cobiça Evágrio relaciona os vícios da gula, da luxúria e da cobiça


Comida, sexualidade e posses são três instintos básicos do homem que ele não pode simplesmente cortar ou ignorar. Pois, enquanto instintos básicos, eles também estimulam a viver. Eles são sim, em última análise, estimulados em direção a Deus. Importa saber como nós nos comportamos com estes instintos, ou seja, se nos deixamos dominar por eles, se nos tornarmos pessoas instintivas ou se somos capazes de utilizar sua força de forma positiva, para deixar que nos impulsionem no caminho para a vida e para Deus.
Evágrio define o primeiro instinto, que é o da gula ou do apetite da boca, não tanto como o comer em excesso ou como um tapar os sentimentos negativos, mas como uma preocupação temerosa com a saúde, como o medo de passar fome e de não possuir mantimentos e medicamentos suficientes e, ainda, como o medo de ficar doente através da ascese. [...]. Muitas pessoas se empanturram de comida porque não admitem experimentar sua própria ira. O comer, portanto, pode tornar-se também uma compensação prazerosa. É justamente no comer que muitas pessoas mostram que devoram a comida, mas são incapazes de realmente saboreá-la. A verdadeira ascese consiste em aprender a saborear. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 71).
A finalidade do comer consiste em unir-se a Deus. É por isso que em todas as religiões existem as refeições sagradas. Na Eucaristia, comendo o pão, nós nos unimos a Cristo e, por meio dele, ao próprio Deus. Assim, a mística possibilita descrever a nossa união com Deus como fruitio Dei, como gozo de Deus. O comer é, portanto, a ação fundamental pela qual podemos saborear a Deus. (GRÜN. Alselm, p. 72).
O segundo vício, o da luxúria, é descrito por Evágrio da seguinte maneira: “No caso do demônio da fornicação, trata-se da cobiça do corpo. Quem leva uma vida de abstinência, vê-se ainda mais prontamente exposto aos seus ataques do que uma outra pessoa. O demônio gostaria que ele afinal deixasse de se exercitar nessa virtude. Ele ainda lhe gostaria de fazer crer que esta virtude não lhe traria nenhum proveito. É próprio deste demônio apresentar à alma ações impuras, sujá-la e, por fim, seduzi-la a proferir palavras e ouvi-las como se toda a realidade desaparecesse diante de seus olhos” (EVÁGRIO. TratPrat 8).
A sexualidade é uma força determinante presente no ser humano. Nela está tanto a ânsia por vitalidade como por autossuperação e por êxtase. A sexualidade pode tornar-se uma das fontes mais importantes para a espiritualidade. Evágrio certamente não nega isso. No entanto, ele acha que o perigo está em refugiar-se dentro de um mundo de aparências. Pois a sexualidade tem muito a ver com a frustração. Muitos há que, por não suportarem a desilusão acabam se refugiando na sexualidade. [...]. Em vez de me encontrar com uma pessoa real e deixar-me envolver completamente por ela, utilizo a sexualidade para representar fantasiosamente meu próprio mundo, um mundo de aparências onde tudo é maravilhoso, onde eu não preciso levar ninguém em consideração, mas fico tão somente curtindo a minha sexualidade. (GRÜN. Alselm, p. 72-73).
Na atualidade, os mais variados relatos sobre abuso sexual de crianças e sobre assédio sexual de mulheres no ambiente de trabalho são certamente uma demonstração de que se trata de um perigo bem real. [...] a sexualidade é vista apenas como satisfação do desejo e não como expressão de um amor [...]. É assim que pessoas, a partir de uma sexualidade não plenamente integrada, acabam ferindo os outros em sua dignidade. Pois não há ferida mais dolorosa e violência mais brutal e humanamente mais indigna do que a sexual, principalmente quando ela rebaixa o ser humano ao nível de mercadoria. (GRÜN. Alselm, p. 73).
Evágrio, em sua descrição da luxúria, mostra não só que ele não rejeita absolutamente a sexualidade, acusação que com frequência se censura os primeiros monges. Ele mostra antes que a sexualidade – como também o comer – pode ser usada de forma errada para fugir da realidade, que a ira e a desilusão podem ser tapadas com comida. [...]. Somente quando a sexualidade é integrada por meio da via religiosa é que a espiritualidade se torna realmente viva. Uma espiritualidade que perdeu o sabor é uma prova de que a sexualidade não foi encarada nem aceita. Por isso Evágrio não nos aconselha a reprimir a sexualidade, mas a tratá-la conscientemente. Pois, sem este tratamento consciente da sexualidade, não existe nenhuma espiritualidade verdadeira nem humanamente madura. (GRÜN. Alselm, p. 73-74).
O terceiro logismoi da força instintiva cobiçosa do ser humano é, segundo Evágrio, a cobiça de posses. A ambição de possuir é essencial ao ser humano. Nesta aspiração encontra-se a ânsia por tranquilidade. O que esperamos das posses que possuímos é não ter mais nenhuma preocupação e poder assim abandonar-nos tranquilamente à vida. Porém, a experiência mostra que as posses também podem nos possuir, que somos possuídos pela nossa aspiração a possuir sempre mais. [...]. Nossa cobiça por posses jamais será satisfeita, caso a orientemos exclusivamente para as coisas mundanas. Pois, por mais posses que tivermos, a nossa ansiedade mais profunda por tranquilidade e sossego e pela harmonia conosco mesmos não poderá ser satisfeita. É por isso que a Bíblia transforma este instinto, apontando-nos os bens interiores, como é o caso da pérola preciosa e do tesouro no campo. Dentro de nós, isto é, em nossa alma, podemos encontrar uma imensa riqueza; é aí que encontramos Deus e todas as potencialidades com que nos agraciou. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 74-75).
Hoje em dia, certamente, também ocorre uma demonização das posses e uma ideologização da pobreza. Tudo isso não nos ajuda absolutamente em nada. Às vezes, a pobreza é até confundida com falta de cultura. Quando a pobreza é vista apenas como negação da vida, é porque ela ainda não é capaz de libertar-nos. A verdadeira pobreza sabe lidar com a aspiração pela posse de uma maneira bem humana. Ela se permite esta aspiração, mas sabe relativizá-la, uma vez que é conhecedora de uma riqueza mais profunda. Somente em vista deste valor interior é que seremos capazes de desprender-nos dos bens exteriores e libertar-nos da cobiça de querer possuir sempre mais. 


2) Ao âmbito emocional do ser humano Evágrio relaciona os três logismoi da tristeza, da cólera e da acídia3.

“A tristeza sobrevém, algumas vezes, quando o ser humano não realiza seus desejos. Às vezes, ele vem acompanhado da cólera. Quando surge pela frustração das necessidades e desejos, em geral ocorre da seguinte maneira: a pessoa é levada a pensar e a lembrar-se da casa onde nasceu, dos seus pais e da vida que levava no passado. Quando a pessoa não oferece resistência a esses pensamentos e até se deixa levar por eles ou mesmo se deleita com eles, embora só na imaginação, ele se apoderam inteiramente dela. Por fim essas representações se desvanecem e ela mergulha na tristeza. Sua situação atual a impede de que essas coisas passadas se tornem novamente realidade. E assim a infeliz alma, quando mais se deixa atrair pelos primeiros pensamentos, tanto mais se há de sentir abatida e humilhada” (EVÁGRIO. TratPrat 10). 
Evágrio distingue a tristeza (lypé) da aflição (penthos). [...]. A aflição pode chorar. Suas lágrimas podem amolecer a alma endurecida e fazer que ela se torne frutífera. É possível que as lágrimas da aflição se transformem em lágrimas de alegria. A tristeza, porém, não pode chorar, pois ela é choramingona e se banha em sua própria autocompaixão. Para Evágrio, a tristeza consiste sobretudo na dependência infrutífera do passado. Pois sempre de novo as pessoas imaginam os sentimentos de outrora em casa junto aos pais, na proteção, na despreocupação, etc. [...]. Para Evágrio, é sobretudo perigoso, diante da realidade presente, fugir para o passado, uma vez que o passado é algo definitivamente passado e nunca mais haverá de se tornar realidade. É possível aprender muito do passado para o momento presente. No entanto, se o passado se torna fuga de conflito presente, então ele se torna um obstáculo que nos impede de assumir as tarefas atuais e através delas amadurecer. (GRÜN. Alselm, p. 76).
Enquanto nós através da tristeza reagimos passivamente aos nossos desejos insatisfeitos, a cólera é antes uma reação ativa. Evágrio também consegue identificar a cólera como um dos demônios. O que se evidencia para ele é que na cólera o ser humano pode ser dominado completamente por uma outra força. “A cólera é a mais forte das paixões. Com efeito, diz-se que é uma ebulição da parte irascível da alma e uma indignação contra quem lhe fez algum ultraje ou contra que se presume que o tenha feito. Ela deixa a alma da pessoa furiosa o dia inteiro, mas é sobretudo na hora da oração que ela domina a mente, com a imagem do rosto que a contristou. Às vezes, ela dura mais tempo e se transforma em ressentimento, provocando então, durante a noite, as piores experiências. [...]”. (EVÁGRIO. TratPrat 11).
Evágrio analisou a cólera com bastante rigor. A cólera não é, para ele, uma mera agressão. Pois as agressões têm um significado absolutamente positivo. Pois as agressões pretendem regular a relação de proximidade e distância. [...]. No dizer de Evágrio, o demônio da cólera devora a alma humana. Hoje em dia, encontramos uma confirmação disso na psicologia que parte do princípio de que o câncer não raramente possui uma causa psíquica. Quando continuamente engolimos todas as raivas, em algum momento o corpo reage e, no sentido mais verdadeiro e real da palavra, ele será carcomido. (GRÜN. Alselm, p. 77-78).
O demônio mais perigoso é o da acídia, que corrompe o monge interiormente. Evágrio descreve a ação deste demônio da seguinte maneira: “O demônio da acídia, também chamado ‘demônio do meio-dia’, é o mais pesado de todos; ataca o monge pela quarta hora e sitia a alma até a oitava. Primeiro, o monge tem a impressão de que o sol demora muito a se mover e o dia tem pelo menos 50 horas! Depois, sente necessidade constante de olhar pela janela, sair da cela, examinar atentamente o sol para ver se falta muito para a nona hora [...]”. (EVÁGRIO. TratPrat 12). A acídia é a incapacidade de fazer-se presente no momento atual. Não se tem apetite nem para o trabalho nem para a oração. Nem mesmo saborear o não fazer nada. Pois sempre se está com os pensamentos num outro lugar. A acídia é uma expressão de fuga da realidade. Não se aceita encarar a sua própria realidade. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 79).
A acídia é também chamada de demônio do meio-dia, porque costuma manifestar-se nesta hora do dia. Mas isso pode também ser compreendido simbolicamente e, neste caso, a acídia é sobretudo o demônio da meia-idade. Na meia-idade perde-se o prazer pelo costumeiro. Então a pessoa se pergunta: para que tudo isso? Tudo quanto a pessoa produziu até então parece-lhe aborrecedor e vazio. E também não consegue detectar com que deva ocupar-se. [...]. Atualmente, a acídia também parece ser uma disposição fundamental de muitos jovens. Eles são incapazes de envolver-se e entusiasmar-se por alguma coisa. Não são capazes de viver no momento atual. [...]. Para os violentos dentre eles, a força bruta contra os outros é o único caminho para se sentirem vivos. Aqui fica especialmente patente quão destruidora a acídia pode vir a tornar-se. Aquele, pois, que é incapaz de viver, viverá às custas de outros e precisará castigá-los para se sentir a si mesmo. (GRÜN. Alselm, p. 79-80).

3) Os três logismoi da esfera espiritual são a ambição, a inveja e a soberba (hybris).

A ambição consiste no contínuo vangloriar-se diante dos outros. Tudo é feito unicamente para ser visto pelas outras pessoas. Evágrio descreve a ambição deste modo: “O pensamento da ambição é um companheiro deveras difícil. Ele tende a manifestar-se em pessoas que gostariam de viver virtuosamente. Desperta nelas o desejo de compartilhar com os outros a dificuldade de sua luta, procurando com isso a honra diante das pessoas. [...]”. (EVÁGRIO. TratPrat 13). A preocupação do que os outros pensam de nós, está relacionado ao que o Senhor Jesus Cristo falou aos que não creram n’Ele, por estarem com a mente voltada com as coisas concernentes a este mundo: "Como podeis crer, vós que recebeis a glória uns dos outros, e não buscais a glória que é só de Deus?” (Jo 5:4). Na ambição, eu penso continuamente nas pessoas e em suas opiniões. E acabo me perguntando: Como será meu modo de agir sobre elas? Elas também acham bom o que eu faço? E assim eu acabo não estando comigo mesmo e torno-me dependente do juízo das outras pessoas.
O que fico imaginando é: como, em minha próxima aparição no palco, causar a melhor impressão possível, para ser devidamente aplaudido? Naturalmente nos faz bem quando somos reconhecidos e confirmados. E seria certamente hybris se nós pensássemos que estamos totalmente livres do reconhecimento e do elogio. A busca de reconhecimento se introduz furtivamente em tudo que fazemos, até mesmo em nossa ação mais piedosa. Não se trata de nos livrar completamente dessa busca de reconhecimento, mas de relativizá-la de maneira a não nos tornarmos dependentes dela. Nós mesmos sentimos como é desagradável quando, por exemplo, já aos sessenta ou setenta anos, ainda prestamos atenção ao que os outros pensam e esperam de nós. Isso não é viver, mas tão somente ser-vivido. (GRÜN. Alselm, p. 80-81).
A inveja mostra-se na contínua comparação de si mesmo com os outros. Não sou capaz de encontrar-me com nenhuma outra pessoa sem comparar-me com ela. Imediatamente, começo a avaliar, a valorizar, a desvalorizar e a revalorizar. De um modo geral, procuro desvalorizar o outro no intuito de revalorizar-me a mim mesmo. [...]. Também na inveja eu não estou comigo, não estou satisfeito comigo mesmo e não tenho nenhum sentimento por minha dignidade, reconhecendo meu valor somente em comparação como os outros. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 81).
hybris, isto é, a soberba, torna as pessoas cegas. O soberbo se identificou a tal ponto com sua imagem ideal, que se recusa a encarar a própria realidade. “O demônio da soberba é aquela que provoca na alma as piores quedas. Ele seduz o monge a não procurar em Deus a razão de sua ações virtuosas mas apenas em si mesmo; e a considerar a si mesmo como a causa de todo o bem que faz e a se inchar de orgulho diante dos irmãos, considerando-os tolos por não o terem em tão alta estima. Tudo isso é depois acompanhado pela tristeza e, último dos males, pela perturbação mental e a loucura, que o faz ver uma legião de demônios no ar”. (EVÁGRIO. TratPrat 14). 

Pela hybris o ser humano ingressa no mundo aparente de seus próprios ideais, a ponto de chegar a perder o contato com a realidade. E isso o torna alienado, C.G. Jung chama esta atitude de inflação: A pessoa se envaidece de ideais e representações que, de fato, não lhe pertencem. A inflação sempre acontece quando nos identificamos com imagens arquetípicas, por exemplo, com a imagem dos profetas, e acabamos proclamando: “Eu sou o único que consegue perceber e que se atreve a dizer a verdade”. Ou, então, identificamo-nos com a imagem do mártir: “Eu não sou compreendido e preciso afinal sofrer, porque como Jesus sou tão diferente, porque respondo pela verdade sozinho”. [...]. [...]. Jesus cura o cego de nascença cuspindo no chão e esfregando-lhe a lama carinhosamente nos olhos, como querendo dizer-lhe: “Tu também foste tirado da terra. Reconcilia-te também com a sujeira que está em ti e em teus lados sombrios. Sê humano, pois então poderás ver novamente. Porque, enquanto negares tua condição terrena, também não serás capaz de ver”. (GRÜN. Alselm, p. 81-82).




______________


1. Segundo Dom Fernando Antônio Figueiredo, a apatheia não significa uma indiferença diante da vida, no sentido do vulgar de apatia, mas “um estado de paz interior” e “serenidade” atenta como “atitude do homem livre faze à vida” (cf. Curso de teologia patrística – A vida da Igreja primitiva (séculos IV e V). Vol. 3. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 177-186; sobre a “apatia gnóstica”, cf. Clemente de Alexandria, in Boehner, Philotheus & Gilson, Etiene. História da filosofia cristã. 6. Ed., Petrópolis: Vozes, 1995, p. 46-47). 

2. Cf. ROHR, Richard & EBERT, Andreas. O eneagrama – As nove faces da alma. 5. Ed., Petrópolis: Vozes, 1998, principalmente p. 45-49.
3. Acídia, no grego akedia, é um termo que também está presente na Vita Antonii, de Atanásio, e em Orígenes, onde significam “negligência”, “indiferença”, mas já vem acompanhado de termos que apontam para a acepção evagriana: “vileza”, “aviltamento”, “tristeza”, etc. mas Evágrio parece ter sido o primeiro a identificar o demônio da acídia com o “demônio do meio-dia”. É difícil precisar a diferença entre acídia e tristeza na lista dos oito vícios capitais. A tradição monástica oriental as distingue para sublinhar uma circunstância particular: acídia, segundo a definição de Evágrio, está ligada ao estado de vida anacorética e se contrapõe à permanência na cela e à vida solitária. 


Link para a continuação do post: O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto para hoje (PARTE 3)

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto para hoje (Parte 1)

Livro; O Céu começa em você [...]; Anselm Grün; Evangelho
Nos traz as sentenças dos padres do deserto contextualizado para os nossos dias. Elas nos farão ponderar para agirmos de modo que, possamos viver uma vida mais próxima a Deus. Conforme escrito no prefácio, ele nos diz: “É bem possível que para muitas pessoas as sentenças dos patriarcas e os escritos dos primeiros monges se mostrem como um mundo distante e estranho. Nem sempre é fácil fazer uma experiência interior semelhante através de uma linguagem diferente da deles. Porém, uma vez que tivermos descoberto a sabedoria que reside em suas palavras, elas dificilmente haverão de abandonar-nos. Pois os monges fizeram uma real experiência do que dizem, ou seja, eles nãos desenvolvem nenhum modelo teórico, mas suas palavras refletem “apenas” sua própria experiência”.
     No capítulo primeiro, o autor expõe a importância de vivermos: A Espiritualidade a partir da base, para que possamos trabalhar o que há em nós de obscuro, e que nos atrapalha para progredirmos na caminhada da fé, portanto é a partir da base que conseguiremos avançarmos para a parte de cima. “A espiritualidade que a teologia moralizante da modernidade tem transmitido parte de cima. Ela nos apresenta grande ideais que nós devemos alcançar. Semelhante ideal consiste na abnegação, no autodomínio, na amabilidade constante, no amor desinteressado, na liberdade diante da cólera e no domínio da sexualidade. A espiritualidade a partir de cima possui certamente uma importância positiva para pessoas jovens, à medida que ela as desafia e testa sua força”. (GRÜN. Alselm, p. 25).
O autor em sua alegação sobre a importância da espiritualidade a partir da base, não despreza a espiritualidade a partir de cima ou do topo, mas conclui, que a ordem deve se começar pela base, para que assim, consigamos examinar o que nos dificulta a progredirmos espiritualmente como dito anteriormente, para alcançarmos uma fé verdadeira e não para nos escondermos diante de nossa “piedade”.
“Os padres do deserto nos ensinam uma espiritualidade a partir da base. Eles nos mostram que devemos principiar em nós e em nossas paixões. Para os padres do deserto, o caminho para Deus sempre conduz ao autoconhecimento. Certa vez, Evágrio Pôntico formulou isso da seguinte maneira: “Se queres conhecer a Deus, aprende primeiramente a conhecer a ti mesmo!” Sem o autoconhecimento corremos o perigo de nossos pensamentos acerca de Deus serem meras projeções. Há também pessoas piedosas que, diante de sua própria realidade, se refugiam na piedade. Elas não se transformam realmente por suas orações e atitude piedosa, mas aproveitam-se da piedade unicamente para se vangloriarem diante dos outros e confirmarem sua inefabilidade.” (GRÜN. Alselm, p. 26).
Nos padres do deserto, porém, vem ao nosso encontro uma forma de piedade totalmente diferente. Aí se questiona, antes de tudo, acerca da sinceridade e da autenticidade. No entanto, isso conduz a uma compreensão afetuosa em relação a todos aqueles que não trilham o mesmo caminho. Poimen, um comprovado patriarca, remete um grande teólogo para a espiritualidade a partir da base. O ilustre teólogo desejava muito conversar com o patriarca Poimen sobre a vida espiritual, sobre as coisas do céu e sobre a trindade de Deus. Poimen, porém, não responde a nada disso, ficando tão somente a escutar. Já irritado, o teólogo se prepara para deixar o padre monástico. Aí, um de seus companheiros se dirige a Poimen e lhe diz: “Pai, foi por tua causa que veio este grande homem, tão reconhecido em sua terra. Por que não conversaste com ele? Em resposta, disse-lhe o ancião: Ele está nas nuvens e fala de coisas espirituais. Eu sou aqui de baixo e falo de coisas terrenas. Se ele me tivesse falado das paixões da alma, ter-lhe-ia respondido. Mas como fala sobre coisas espirituais, não sou capaz de compreendê-las” (Apot 582).
O patriarca Poimen se utilizou desta sentença, para explicar a importância de se iniciar a partir da base, e não de cima, do topo. Se não estamos preparados a lutar contra a nossa ‘carne’, os maus desejos, a ira, a raiva, a inveja e os vícios e, que combatem contra o Espirito, então não conseguiremos atingir a espiritualidade da parte de cima. Este apotegma tem certa relação com as cartas de São Pedro e de São Paulo e, que faz-nos refletir acerca das paixões da carne; na primeira carta de São Pedro no Cap. 2: 1-3 nos diz: “Portanto, livrem-se de toda maldade e de todo engano, hipocrisia, inveja e toda espécie de maledicência. Como crianças recém-nascidas, desejem de coração o leite espiritual puro, para que por meio dele cresçam para a salvação, agora que provaram que o Senhor é bom”. E, em Gálatas, Cap. 5: 16-17 nos diz: “Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne. Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer”.
O teólogo parte de uma espiritualidade de cima. Ele fala diretamente de Deus e de coisas espirituais. Para Poimen, porém, o caminho espiritual começa nas paixões da alma. São as paixões da alma que devem ser primeiramente observadas e é com elas que se deve lutar. É somente então que se compreende algo acerca de Deus. Sim, o tratamento das paixões é, para Poimen, o caminho até Deus. (GRÜN. Alselm, p. 27).
São Bento definiu esta espiritualidade a partir da base em seu capítulo sobre a humildade, isto é, sobre a humilitas. Ele toma a escada de Jacó como imagem para nosso caminho até Deus. O paradoxo do nosso caminho espiritual está no fato de subirmos para Deus à medida que nos rebaixarmos até nossa própria realidade. E é assim que ele entende a palavra de Jesus que diz: “Quem se humilha a si mesmo, será exaltado” (Lc 14,11; 18,14).
É descendo para dentro de nossa condição terrena (húmus, humilitas) que nós estamos em contato com o céu, com Deus. Pois, à medida que nós temos a coragem de descer até as nossas próprias paixões, elas nos elevam a Deus. Por ser esta humildade o caminho mais vil e desprezível para se chegar a Deus, isto é, por ser ela o caminho da própria realidade para se alcançar o verdadeiro Deus, é que ela foi tão exaltada pelos padres monásticos. Aquele, porém, que almeja o céu com facilidade, nada encontrará além de sua imagem pessoal a respeito de Deus e suas próprias projeções. (GRÜN. Alselm, p. 29).
O que precisamos fazer é, através dos pecados, mergulhar dentro de nossa profundidade mais abissal. Porque é a partir do mais baixo que poderemos ascender até Deus. Esta ascensão para Deus corresponde à ansiedade originária do homem. A filosofia de Platão já girava em torno disso, isto é, segundo ele o homem só ascende até Deus por meio de seu espírito. Os padres da Igreja veem em no Senhor Jesus Cristo, antes de ele ser elevado ao céu (cf. Ef 4,9) e pelo fato de ser aquele que por primeiro se rebaixou, um outro modelo para a nossa ascensão até Deus. Desse modo, antes de podermos comunitariamente e por meio de Jesus ascender até Deus, nós devemos, antes de mais nada, rebaixar-nos para dentro de nossa humanidade da maneira como Deus o fez em Jesus. (GRÜN. Alselm, p. 29-30).
Às vezes os monges também falam a respeito de como nós podemos aprender a humildade: “Certa vez um ancião foi perguntado: ‘O que é a humildade?’ E ele respondeu: ‘A humildade é uma grande obra; uma obra divina! O caminho para a humildade, porém, deve ser este: realizar trabalhos corporais, considerar-se um homem pecador, submeter-se a todos’. Aí o irmão lhe perguntou: ‘O que significa ser submisso a todos?’ E o ancião replicou: ‘Ser submisso a todos é quando alguém não presta atenção às falhas dos outros, mas antes atenta para as próprias, e quando alguém suplica sem cessar a Deus”. (Apot 1083).
Desse modo, o patriarca aponta exercícios concretos de como o monge pode aprender a humildade. Estes exercícios se apresentam a nós como sendo demasiadamente negativos. E, no entanto, o que está em jogo nestes exercícios é eu ver e abraçar minha própria verdade em vez de preocupar-me com os pecados dos outros. Pois humildade significa que eu sigo a Cristo de uma maneira silenciosa e não que eu fique vociferando por aí diante de todos dizendo o que faço de bom. Assim diz um patriarca: “Como um tesouro, uma vez aberto, é diminuído, do mesmo modo diminui uma virtude que sido posta em público. Pois, como a cera derrete por estar próxima ao fogo, assim também a alma perde grande parte de sua intenção pura quando diluída pelo elogio” (Apot 1054). Diz ainda outro padre do deserto: “É impossível, acrescenta ele, gozarmos do elogio e da glória do mundo e ainda produzirmos frutos para o céu” (Apot 1053). O fruto do Espírito Santo só poderá crescer em nós se formos capazes de renunciar a mostrá-lo a todas as pessoas ou declará-lo de algum modo às pessoas que nos cercam. (GRÜN. Alselm, p. 31-32).
     No capítulo posterior, Permanecer em si mesmo: Nos orienta, enfatizando que devemos permanecer em nós mesmos para criarmos ‘raízes’, suportando a nós mesmos, assim progrediremos na fé. “Os patriarcas aconselham repetidamente a permanecer na cela, a auto suportar-se e a não fugir de si mesmo. Stabilitas, a estabilidade – ou seja, o autossuportar-se ou o permanecer-em-si – é a condição para todo progresso humano e espiritual. São Bento vê na stabilitas, isto é, na estabilidade ou na permanência, o remédio para a doença de sua época, que é a época da invasão dos povos bárbaros, da incerteza e da incessante movimentação. Stabilitas significa, para ele, a permanência na comunidade na qual ingressa. E isto significa, para São Bento, que a árvore precisa enraizar-se para poder crescer. O transplante continuado simplesmente retarda o seu desenvolvimento”. (GRÜN. Alselm, p. 36).
Entretanto, stabilitas significa, em primeiro lugar, permanecer em si mesmo, a capacidade de perseverar diante de Deus em sua própria cela. Por isso diz pai Serapião: “Filho, se queres ter proveito, permanece em tua própria cela, presta atenção em ti mesmo e em teu trabalho manual. Pois o sair por aí ao léu não te traz progresso profícuo como o permanecer em silêncio em tua cela” (Apot 878).
Mas não basta simplesmente permanecer em sua cela. Acerca de pai Amonas é-nos transmitida a seguinte palavra: “Um homem pode permanecer nem sua cela durante cem anos sem, contudo aprender o modo adequado de como se deve permanecer nela” (Apot 670). Como, então, deve o monge permanecer em sua cela? Pensa-se aqui numa atitude exterior de corpo, num modo determinado de permanecer em meditação, que mantém alguém em vigília? Ou trata-se aqui da atitude interior ao permanecer na cela? (GRÜN. Alselm, p. 37).
Supõe-se que pai Amonas esteja pensando na atitude da stabilitas, isto é, da estabilidade. Não é um estar sentado no qual me entrego a devaneios, no qual cochilo, mas é um estar sentado no qual sento e permaneço imóvel. Mesmo quando em mim tantas coisas se agitam, mesmo quando os pensamentos de vez em quando me assaltam de todos os lados, ainda assim permaneço imóvel. Eu resisto. E assim, através da serenidade exterior, a tormenta dos pensamentos e dos sentimentos haverá de serenar. (GRÜN. Alselm, p. 37).
Há sempre dois aspectos que devem ser cumpridos quando se permanece na cela: um é o autoconhecimento, o outro, o ser tomado completamente por Deus. “Pai Antão disse certa vez: ‘É muito proveitoso que nós procuremos abrigo em nossa cela e que, ao longo de nossa vida, ponderemos bastante acerca de nós mesmos, até que saibamos qual é o nosso ser. Se suportares ficar na cela, então estarás atento para a tua morte. Se rezares continuamente, tanto de dia como de noite, então estarás aguardando tua própria morte’” (Am 35,13 III, 147).
“Um irmão perguntou a pai Antão: ‘Pai meu, de que modo se deve permanecer sentado na cela?’ E o Ancião respondeu: ‘Aquilo que aos homens é visível é o seguinte: jejuar até a noite durante todos os dias, estar vigilante e exercitar a meditação. Mas o que fica escondido aos homens é o desprezo de si mesmo, a luta contra os maus pensamentos, a benignidade, a meditação sobre a morte e a humildade do coração como fundamento de todo bem’” (Am 37, 12, III, 148).
Blaise Pascal, 1400 anos depois, percebeu que a causa da miséria humana está no fato de ninguém mais conseguir suportar-se a si mesmo em seu próprio quarto. Hoje em dia, passou a ser algo por demais normal a incapacidade de suportar-se e assim saltar de um lugar para outro. As pessoas se dispersam com uma facilidade tremenda. Basta ficar zapeando os canais da televisão de um programa para outro. No entanto, o que acontece em nossa alma? Nada mais pode amadurecer, nada mais pode crescer. Não acontece mais nenhuma verdade, uma vez que o amadurecimento carece de serenidade. E é a cela que nos conduz para a verdade. Ela confronta-nos com a nossa própria verdade. No entanto, este é o pressuposto fundamental para todo e qualquer amadurecimento humano. E é também a condição para uma convivência saudável. (GRÜN. Alselm, p. 41).
     “No capítulo: Em Deserto e tentação, o monaquismo sustenta a importância do deserto, como objetivo para estarmos a sós, para que assim, longe do burburinho do mundo e desprendidos estarmos mais sensíveis à presença e a voz de Deus.  Para os antigos o deserto era a morada dos demônios. Antão ao ir para o deserto, foi com a intenção de lutar com os demônios dentro de seu domínio ou habitação”. A decisão de Antão de instalar-se no domínio dos demônios foi certamente uma decisão bastante heroica, mas foi também um desafio aos demônios na medida em que eles o visitavam e sempre de novo procuravam reconquistar seu próprio domínio e habitação, expulsando-o dali. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 44).
No deserto Antão luta contra os demônios em favor dos homens. Esta é sua contribuição para a melhoria do mundo, pois, tendo-se retirado dele, se põe em luta com os demônios em vista de um mundo mais saudável. Segundo Antão, o deserto é o lugar em que os demônios se apresentam de uma maneira bastante clara, isto é, de uma maneira menos dissimulada. Assim com Jesus fora tentado pelo diabo no deserto ao ser conduzido para lá pelo Espírito Santo, do mesmo modo os monges que vão para o deserto precisam contar com a luta contra os demônios. O monge é essencialmente um lutador. E os patriarcas sempre são elogiados quando se tornam vencedores na luta. (GRÜN. Alselm, p. 44-45).
Depois que o diabo deixou Jesus, vieram os anjos e o serviram. Desse modo a montanha em que aconteceu a tentação se tornou a montanha do paraíso. É esta mesma experiência que os monges realizam. O deserto não é só a arena dos demônios, o lugar em que não é possível esconder-nos da nossa própria verdade, o lugar em que somos confrontados mais cruelmente conosco mesmos e com as nossas regiões mais sombrias. O deserto é também o lugar da maior proximidade de Deus. O povo de Israel já o havia experimentado como o lugar onde se realizava a experiência da maior proximidade de Deus. Deus conduziu o povo de Israel através do deserto a fim de fazê-lo entrar na Terra Prometida. (GRÜN. Alselm, p. 45).
Foi assim que os monges experimentaram o deserto como o lugar em que Deus lhes estava bem próximo, o lugar onde puderam sentir o amor de Deus de uma maneira mais intensa por não estarem impedidos por nenhuma sedução mundana. Contudo, para sentir esta proximidade de Deus, o monge precisa assumir a luta com os demônios. Esta luta com os demônios traz consigo muitas tentações. A tentação é o lugar em que o monge encontra os demônios. Mas é também o lugar em que o monge, à medida que obtém bons resultados por meio da tentação e ao vencer os demônios, cresce em virtude e força e em clareza interior. (GRÜN. Alselm, p. 45-46).
Para os monges, a tentação pertence essencialmente à sua vida. O patriarca Antão expressa isso da seguinte maneira: “A maior obra dos homens é esta: ser capaz de manter seus pecados diante de Deus e estar preparado para a tentação até o último suspiro” (Apot 4). A vida humana é marcada por conflitos constantes. Nós não podemos simplesmente vegetar. Devemos enfrentar os ataques que a vida eventualmente nos apresentar. E nunca haverá um momento em que possamos descansar sobre os louros da vitória. As tentações, ao contrário, haverão de nos acompanhar até o fim da vida. Ainda num outro lugar diz o patriarca Antão: “Quem não tiver sido tentado não poderá entrar no reino do céu. Se suprimires a tentação, ninguém se salvará” (Apot 5).
Segundo o patriarca Antão, as tentações são manifestamente uma condição indispensável para se entrar no Reino do Céu. É através das tentações que o homem pode perceber o Deus verdadeiro. Sem tentação o homem estaria no perigo de apoderar-se de Deus e torna-lo inofensivo e inócuo. Pela tentação, porém, o homem experimenta existencialmente a sua distância de Deus, sente a diferença entre o homem e Deus. O homem permanece em luta constante, enquanto Deus repousa em si mesmo. Deus é amor absoluto, enquanto o homem é continuamente tentado pelo inimigo. (GRÜN. Alselm, p. 46).
As tentações, assim dizem os monges, levam-nos ao encontro de nossa humanidade. Elas nos fazem entrar em contato com as raízes que sustentam o tronco. Colocar-se diante das tentações significa: confrontar-se com a verdade. Um dos patriarcas expressa-se a este respeito da seguinte maneira: “Sem as tentações ninguém será santo, pois aquele que foge do proveito da tentação também foge da vida eterna. Com efeito, tentações há que prepararam aos santos as suas coroas” (N 595).
É possível que muitas pessoas tenham problemas semelhantes, ao pedirem, no Pai-nosso, que Deus as livre das tentações. Ora, Jesus nos fala aqui de um outro tipo de tentação, que é a tentação da traição. “Não nos deixes cair em situação de traição. É assim que Jesus ensina seus discípulos a rezar, e é também dessa maneira que ele mesmo reza por eles (cf. Lc 22,31s.; também Jo 17,14s.)” (MATHÄUS GRUNDMANN, 203). Os monges, em contrapartida, pensam nas tentações dos pensamentos, nas tentações das paixões e dos demônios que existem em nós. As tentações fazem parte essencial de nossa natureza e são elas que nos tornam mais experimentados. Contudo, isso também significa que nós não conseguiremos chegar a Deus com uma vestimenta branca. Ao contrário, é próprio de nossa condição estarmos em conflito com os demônios e sermos também sempre de novo feridos. (GRÜN. Alselm, p. 48).
Os monges não pedem que sejamos perfeitos e sem defeitos, corretos e sem máculas. Aquele que se familiariza como os demônios por meio da tentação encontra a verdade de sua alma e descobre abismos de seu inconsciente, os pensamentos homicidas, as representações sádicas e as fantasias imorais. Nós só nos tornamos seres humanos maduros quando nos confrontamos com esta verdade, quando somos experimentados por meio da tentação. Assim se expressa um patriarca: “Quando rezamos ao Senhor: ‘não nos deixeis cair em tentação!’ (Mt 6,13), não estamos pedindo para não sermos tentados, uma vez que isso seria até mesmo impossível, mas pedimos para não sermos devorados pela tentação ou fazermos algo que desagrade a Deus. É isso que quer dizer ‘não cair em tentação’” (Apot 1159).
Sem tentação o monge torna-se desleixado, descuida de si mesmo e passa pura e simplesmente a vegetar. As tentações forçam-no a viver conscientemente, a exercitar a disciplina e a ficar vigilante. É por isso que os monges não rezam para que as tentações cessem, mas rezam para que Deus lhes dê força suficiente como vem dito: “Conta-se que mãe Sara viveu durante treze anos fortemente atacada pelo demônio da fornicação. Ela, porém nunca pediu para que cessasse o combate, mas dizia: ‘Ó Deus, dá-me força!’” (Apot 884). E, por fim, ela acabou vencendo. Pois o espírito impuro disse a ela: ‘“Sara, tu me venceste!’ Ela, porém, respondeu: ‘Não fui eu que te venci, mas Cristo, meu Senhor’” (Apot 885). A tentação obriga-nos a lutar. Porque sem luta não há vitória. Vencer, porém, jamais é mérito nosso. Nós precisamos fazer a experiência de que, por meio da luta, Cristo age em nós e, de repente, nos liberta da luta constante e nos dá uma profunda paz. (GRÜN. Alselm, p. 50).


Link para a continuação do post: O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto para hoje (PARTE 2)

Formulário de contato

Nome

E-mail *

Mensagem *