terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto para hoje (Parte 1)

Livro; O Céu começa em você [...]; Anselm Grün; Evangelho
Nos traz as sentenças dos padres do deserto contextualizado para os nossos dias. Elas nos farão ponderar para agirmos de modo que, possamos viver uma vida mais próxima a Deus. Conforme escrito no prefácio, ele nos diz: “É bem possível que para muitas pessoas as sentenças dos patriarcas e os escritos dos primeiros monges se mostrem como um mundo distante e estranho. Nem sempre é fácil fazer uma experiência interior semelhante através de uma linguagem diferente da deles. Porém, uma vez que tivermos descoberto a sabedoria que reside em suas palavras, elas dificilmente haverão de abandonar-nos. Pois os monges fizeram uma real experiência do que dizem, ou seja, eles nãos desenvolvem nenhum modelo teórico, mas suas palavras refletem “apenas” sua própria experiência”.
     No capítulo primeiro, o autor expõe a importância de vivermos: A Espiritualidade a partir da base, para que possamos trabalhar o que há em nós de obscuro, e que nos atrapalha para progredirmos na caminhada da fé, portanto é a partir da base que conseguiremos avançarmos para a parte de cima. “A espiritualidade que a teologia moralizante da modernidade tem transmitido parte de cima. Ela nos apresenta grande ideais que nós devemos alcançar. Semelhante ideal consiste na abnegação, no autodomínio, na amabilidade constante, no amor desinteressado, na liberdade diante da cólera e no domínio da sexualidade. A espiritualidade a partir de cima possui certamente uma importância positiva para pessoas jovens, à medida que ela as desafia e testa sua força”. (GRÜN. Alselm, p. 25).
O autor em sua alegação sobre a importância da espiritualidade a partir da base, não despreza a espiritualidade a partir de cima ou do topo, mas conclui, que a ordem deve se começar pela base, para que assim, consigamos examinar o que nos dificulta a progredirmos espiritualmente como dito anteriormente, para alcançarmos uma fé verdadeira e não para nos escondermos diante de nossa “piedade”.
“Os padres do deserto nos ensinam uma espiritualidade a partir da base. Eles nos mostram que devemos principiar em nós e em nossas paixões. Para os padres do deserto, o caminho para Deus sempre conduz ao autoconhecimento. Certa vez, Evágrio Pôntico formulou isso da seguinte maneira: “Se queres conhecer a Deus, aprende primeiramente a conhecer a ti mesmo!” Sem o autoconhecimento corremos o perigo de nossos pensamentos acerca de Deus serem meras projeções. Há também pessoas piedosas que, diante de sua própria realidade, se refugiam na piedade. Elas não se transformam realmente por suas orações e atitude piedosa, mas aproveitam-se da piedade unicamente para se vangloriarem diante dos outros e confirmarem sua inefabilidade.” (GRÜN. Alselm, p. 26).
Nos padres do deserto, porém, vem ao nosso encontro uma forma de piedade totalmente diferente. Aí se questiona, antes de tudo, acerca da sinceridade e da autenticidade. No entanto, isso conduz a uma compreensão afetuosa em relação a todos aqueles que não trilham o mesmo caminho. Poimen, um comprovado patriarca, remete um grande teólogo para a espiritualidade a partir da base. O ilustre teólogo desejava muito conversar com o patriarca Poimen sobre a vida espiritual, sobre as coisas do céu e sobre a trindade de Deus. Poimen, porém, não responde a nada disso, ficando tão somente a escutar. Já irritado, o teólogo se prepara para deixar o padre monástico. Aí, um de seus companheiros se dirige a Poimen e lhe diz: “Pai, foi por tua causa que veio este grande homem, tão reconhecido em sua terra. Por que não conversaste com ele? Em resposta, disse-lhe o ancião: Ele está nas nuvens e fala de coisas espirituais. Eu sou aqui de baixo e falo de coisas terrenas. Se ele me tivesse falado das paixões da alma, ter-lhe-ia respondido. Mas como fala sobre coisas espirituais, não sou capaz de compreendê-las” (Apot 582).
O patriarca Poimen se utilizou desta sentença, para explicar a importância de se iniciar a partir da base, e não de cima, do topo. Se não estamos preparados a lutar contra a nossa ‘carne’, os maus desejos, a ira, a raiva, a inveja e os vícios e, que combatem contra o Espirito, então não conseguiremos atingir a espiritualidade da parte de cima. Este apotegma tem certa relação com as cartas de São Pedro e de São Paulo e, que faz-nos refletir acerca das paixões da carne; na primeira carta de São Pedro no Cap. 2: 1-3 nos diz: “Portanto, livrem-se de toda maldade e de todo engano, hipocrisia, inveja e toda espécie de maledicência. Como crianças recém-nascidas, desejem de coração o leite espiritual puro, para que por meio dele cresçam para a salvação, agora que provaram que o Senhor é bom”. E, em Gálatas, Cap. 5: 16-17 nos diz: “Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne. Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer”.
O teólogo parte de uma espiritualidade de cima. Ele fala diretamente de Deus e de coisas espirituais. Para Poimen, porém, o caminho espiritual começa nas paixões da alma. São as paixões da alma que devem ser primeiramente observadas e é com elas que se deve lutar. É somente então que se compreende algo acerca de Deus. Sim, o tratamento das paixões é, para Poimen, o caminho até Deus. (GRÜN. Alselm, p. 27).
São Bento definiu esta espiritualidade a partir da base em seu capítulo sobre a humildade, isto é, sobre a humilitas. Ele toma a escada de Jacó como imagem para nosso caminho até Deus. O paradoxo do nosso caminho espiritual está no fato de subirmos para Deus à medida que nos rebaixarmos até nossa própria realidade. E é assim que ele entende a palavra de Jesus que diz: “Quem se humilha a si mesmo, será exaltado” (Lc 14,11; 18,14).
É descendo para dentro de nossa condição terrena (húmus, humilitas) que nós estamos em contato com o céu, com Deus. Pois, à medida que nós temos a coragem de descer até as nossas próprias paixões, elas nos elevam a Deus. Por ser esta humildade o caminho mais vil e desprezível para se chegar a Deus, isto é, por ser ela o caminho da própria realidade para se alcançar o verdadeiro Deus, é que ela foi tão exaltada pelos padres monásticos. Aquele, porém, que almeja o céu com facilidade, nada encontrará além de sua imagem pessoal a respeito de Deus e suas próprias projeções. (GRÜN. Alselm, p. 29).
O que precisamos fazer é, através dos pecados, mergulhar dentro de nossa profundidade mais abissal. Porque é a partir do mais baixo que poderemos ascender até Deus. Esta ascensão para Deus corresponde à ansiedade originária do homem. A filosofia de Platão já girava em torno disso, isto é, segundo ele o homem só ascende até Deus por meio de seu espírito. Os padres da Igreja veem em no Senhor Jesus Cristo, antes de ele ser elevado ao céu (cf. Ef 4,9) e pelo fato de ser aquele que por primeiro se rebaixou, um outro modelo para a nossa ascensão até Deus. Desse modo, antes de podermos comunitariamente e por meio de Jesus ascender até Deus, nós devemos, antes de mais nada, rebaixar-nos para dentro de nossa humanidade da maneira como Deus o fez em Jesus. (GRÜN. Alselm, p. 29-30).
Às vezes os monges também falam a respeito de como nós podemos aprender a humildade: “Certa vez um ancião foi perguntado: ‘O que é a humildade?’ E ele respondeu: ‘A humildade é uma grande obra; uma obra divina! O caminho para a humildade, porém, deve ser este: realizar trabalhos corporais, considerar-se um homem pecador, submeter-se a todos’. Aí o irmão lhe perguntou: ‘O que significa ser submisso a todos?’ E o ancião replicou: ‘Ser submisso a todos é quando alguém não presta atenção às falhas dos outros, mas antes atenta para as próprias, e quando alguém suplica sem cessar a Deus”. (Apot 1083).
Desse modo, o patriarca aponta exercícios concretos de como o monge pode aprender a humildade. Estes exercícios se apresentam a nós como sendo demasiadamente negativos. E, no entanto, o que está em jogo nestes exercícios é eu ver e abraçar minha própria verdade em vez de preocupar-me com os pecados dos outros. Pois humildade significa que eu sigo a Cristo de uma maneira silenciosa e não que eu fique vociferando por aí diante de todos dizendo o que faço de bom. Assim diz um patriarca: “Como um tesouro, uma vez aberto, é diminuído, do mesmo modo diminui uma virtude que sido posta em público. Pois, como a cera derrete por estar próxima ao fogo, assim também a alma perde grande parte de sua intenção pura quando diluída pelo elogio” (Apot 1054). Diz ainda outro padre do deserto: “É impossível, acrescenta ele, gozarmos do elogio e da glória do mundo e ainda produzirmos frutos para o céu” (Apot 1053). O fruto do Espírito Santo só poderá crescer em nós se formos capazes de renunciar a mostrá-lo a todas as pessoas ou declará-lo de algum modo às pessoas que nos cercam. (GRÜN. Alselm, p. 31-32).
     No capítulo posterior, Permanecer em si mesmo: Nos orienta, enfatizando que devemos permanecer em nós mesmos para criarmos ‘raízes’, suportando a nós mesmos, assim progrediremos na fé. “Os patriarcas aconselham repetidamente a permanecer na cela, a auto suportar-se e a não fugir de si mesmo. Stabilitas, a estabilidade – ou seja, o autossuportar-se ou o permanecer-em-si – é a condição para todo progresso humano e espiritual. São Bento vê na stabilitas, isto é, na estabilidade ou na permanência, o remédio para a doença de sua época, que é a época da invasão dos povos bárbaros, da incerteza e da incessante movimentação. Stabilitas significa, para ele, a permanência na comunidade na qual ingressa. E isto significa, para São Bento, que a árvore precisa enraizar-se para poder crescer. O transplante continuado simplesmente retarda o seu desenvolvimento”. (GRÜN. Alselm, p. 36).
Entretanto, stabilitas significa, em primeiro lugar, permanecer em si mesmo, a capacidade de perseverar diante de Deus em sua própria cela. Por isso diz pai Serapião: “Filho, se queres ter proveito, permanece em tua própria cela, presta atenção em ti mesmo e em teu trabalho manual. Pois o sair por aí ao léu não te traz progresso profícuo como o permanecer em silêncio em tua cela” (Apot 878).
Mas não basta simplesmente permanecer em sua cela. Acerca de pai Amonas é-nos transmitida a seguinte palavra: “Um homem pode permanecer nem sua cela durante cem anos sem, contudo aprender o modo adequado de como se deve permanecer nela” (Apot 670). Como, então, deve o monge permanecer em sua cela? Pensa-se aqui numa atitude exterior de corpo, num modo determinado de permanecer em meditação, que mantém alguém em vigília? Ou trata-se aqui da atitude interior ao permanecer na cela? (GRÜN. Alselm, p. 37).
Supõe-se que pai Amonas esteja pensando na atitude da stabilitas, isto é, da estabilidade. Não é um estar sentado no qual me entrego a devaneios, no qual cochilo, mas é um estar sentado no qual sento e permaneço imóvel. Mesmo quando em mim tantas coisas se agitam, mesmo quando os pensamentos de vez em quando me assaltam de todos os lados, ainda assim permaneço imóvel. Eu resisto. E assim, através da serenidade exterior, a tormenta dos pensamentos e dos sentimentos haverá de serenar. (GRÜN. Alselm, p. 37).
Há sempre dois aspectos que devem ser cumpridos quando se permanece na cela: um é o autoconhecimento, o outro, o ser tomado completamente por Deus. “Pai Antão disse certa vez: ‘É muito proveitoso que nós procuremos abrigo em nossa cela e que, ao longo de nossa vida, ponderemos bastante acerca de nós mesmos, até que saibamos qual é o nosso ser. Se suportares ficar na cela, então estarás atento para a tua morte. Se rezares continuamente, tanto de dia como de noite, então estarás aguardando tua própria morte’” (Am 35,13 III, 147).
“Um irmão perguntou a pai Antão: ‘Pai meu, de que modo se deve permanecer sentado na cela?’ E o Ancião respondeu: ‘Aquilo que aos homens é visível é o seguinte: jejuar até a noite durante todos os dias, estar vigilante e exercitar a meditação. Mas o que fica escondido aos homens é o desprezo de si mesmo, a luta contra os maus pensamentos, a benignidade, a meditação sobre a morte e a humildade do coração como fundamento de todo bem’” (Am 37, 12, III, 148).
Blaise Pascal, 1400 anos depois, percebeu que a causa da miséria humana está no fato de ninguém mais conseguir suportar-se a si mesmo em seu próprio quarto. Hoje em dia, passou a ser algo por demais normal a incapacidade de suportar-se e assim saltar de um lugar para outro. As pessoas se dispersam com uma facilidade tremenda. Basta ficar zapeando os canais da televisão de um programa para outro. No entanto, o que acontece em nossa alma? Nada mais pode amadurecer, nada mais pode crescer. Não acontece mais nenhuma verdade, uma vez que o amadurecimento carece de serenidade. E é a cela que nos conduz para a verdade. Ela confronta-nos com a nossa própria verdade. No entanto, este é o pressuposto fundamental para todo e qualquer amadurecimento humano. E é também a condição para uma convivência saudável. (GRÜN. Alselm, p. 41).
     “No capítulo: Em Deserto e tentação, o monaquismo sustenta a importância do deserto, como objetivo para estarmos a sós, para que assim, longe do burburinho do mundo e desprendidos estarmos mais sensíveis à presença e a voz de Deus.  Para os antigos o deserto era a morada dos demônios. Antão ao ir para o deserto, foi com a intenção de lutar com os demônios dentro de seu domínio ou habitação”. A decisão de Antão de instalar-se no domínio dos demônios foi certamente uma decisão bastante heroica, mas foi também um desafio aos demônios na medida em que eles o visitavam e sempre de novo procuravam reconquistar seu próprio domínio e habitação, expulsando-o dali. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 44).
No deserto Antão luta contra os demônios em favor dos homens. Esta é sua contribuição para a melhoria do mundo, pois, tendo-se retirado dele, se põe em luta com os demônios em vista de um mundo mais saudável. Segundo Antão, o deserto é o lugar em que os demônios se apresentam de uma maneira bastante clara, isto é, de uma maneira menos dissimulada. Assim com Jesus fora tentado pelo diabo no deserto ao ser conduzido para lá pelo Espírito Santo, do mesmo modo os monges que vão para o deserto precisam contar com a luta contra os demônios. O monge é essencialmente um lutador. E os patriarcas sempre são elogiados quando se tornam vencedores na luta. (GRÜN. Alselm, p. 44-45).
Depois que o diabo deixou Jesus, vieram os anjos e o serviram. Desse modo a montanha em que aconteceu a tentação se tornou a montanha do paraíso. É esta mesma experiência que os monges realizam. O deserto não é só a arena dos demônios, o lugar em que não é possível esconder-nos da nossa própria verdade, o lugar em que somos confrontados mais cruelmente conosco mesmos e com as nossas regiões mais sombrias. O deserto é também o lugar da maior proximidade de Deus. O povo de Israel já o havia experimentado como o lugar onde se realizava a experiência da maior proximidade de Deus. Deus conduziu o povo de Israel através do deserto a fim de fazê-lo entrar na Terra Prometida. (GRÜN. Alselm, p. 45).
Foi assim que os monges experimentaram o deserto como o lugar em que Deus lhes estava bem próximo, o lugar onde puderam sentir o amor de Deus de uma maneira mais intensa por não estarem impedidos por nenhuma sedução mundana. Contudo, para sentir esta proximidade de Deus, o monge precisa assumir a luta com os demônios. Esta luta com os demônios traz consigo muitas tentações. A tentação é o lugar em que o monge encontra os demônios. Mas é também o lugar em que o monge, à medida que obtém bons resultados por meio da tentação e ao vencer os demônios, cresce em virtude e força e em clareza interior. (GRÜN. Alselm, p. 45-46).
Para os monges, a tentação pertence essencialmente à sua vida. O patriarca Antão expressa isso da seguinte maneira: “A maior obra dos homens é esta: ser capaz de manter seus pecados diante de Deus e estar preparado para a tentação até o último suspiro” (Apot 4). A vida humana é marcada por conflitos constantes. Nós não podemos simplesmente vegetar. Devemos enfrentar os ataques que a vida eventualmente nos apresentar. E nunca haverá um momento em que possamos descansar sobre os louros da vitória. As tentações, ao contrário, haverão de nos acompanhar até o fim da vida. Ainda num outro lugar diz o patriarca Antão: “Quem não tiver sido tentado não poderá entrar no reino do céu. Se suprimires a tentação, ninguém se salvará” (Apot 5).
Segundo o patriarca Antão, as tentações são manifestamente uma condição indispensável para se entrar no Reino do Céu. É através das tentações que o homem pode perceber o Deus verdadeiro. Sem tentação o homem estaria no perigo de apoderar-se de Deus e torna-lo inofensivo e inócuo. Pela tentação, porém, o homem experimenta existencialmente a sua distância de Deus, sente a diferença entre o homem e Deus. O homem permanece em luta constante, enquanto Deus repousa em si mesmo. Deus é amor absoluto, enquanto o homem é continuamente tentado pelo inimigo. (GRÜN. Alselm, p. 46).
As tentações, assim dizem os monges, levam-nos ao encontro de nossa humanidade. Elas nos fazem entrar em contato com as raízes que sustentam o tronco. Colocar-se diante das tentações significa: confrontar-se com a verdade. Um dos patriarcas expressa-se a este respeito da seguinte maneira: “Sem as tentações ninguém será santo, pois aquele que foge do proveito da tentação também foge da vida eterna. Com efeito, tentações há que prepararam aos santos as suas coroas” (N 595).
É possível que muitas pessoas tenham problemas semelhantes, ao pedirem, no Pai-nosso, que Deus as livre das tentações. Ora, Jesus nos fala aqui de um outro tipo de tentação, que é a tentação da traição. “Não nos deixes cair em situação de traição. É assim que Jesus ensina seus discípulos a rezar, e é também dessa maneira que ele mesmo reza por eles (cf. Lc 22,31s.; também Jo 17,14s.)” (MATHÄUS GRUNDMANN, 203). Os monges, em contrapartida, pensam nas tentações dos pensamentos, nas tentações das paixões e dos demônios que existem em nós. As tentações fazem parte essencial de nossa natureza e são elas que nos tornam mais experimentados. Contudo, isso também significa que nós não conseguiremos chegar a Deus com uma vestimenta branca. Ao contrário, é próprio de nossa condição estarmos em conflito com os demônios e sermos também sempre de novo feridos. (GRÜN. Alselm, p. 48).
Os monges não pedem que sejamos perfeitos e sem defeitos, corretos e sem máculas. Aquele que se familiariza como os demônios por meio da tentação encontra a verdade de sua alma e descobre abismos de seu inconsciente, os pensamentos homicidas, as representações sádicas e as fantasias imorais. Nós só nos tornamos seres humanos maduros quando nos confrontamos com esta verdade, quando somos experimentados por meio da tentação. Assim se expressa um patriarca: “Quando rezamos ao Senhor: ‘não nos deixeis cair em tentação!’ (Mt 6,13), não estamos pedindo para não sermos tentados, uma vez que isso seria até mesmo impossível, mas pedimos para não sermos devorados pela tentação ou fazermos algo que desagrade a Deus. É isso que quer dizer ‘não cair em tentação’” (Apot 1159).
Sem tentação o monge torna-se desleixado, descuida de si mesmo e passa pura e simplesmente a vegetar. As tentações forçam-no a viver conscientemente, a exercitar a disciplina e a ficar vigilante. É por isso que os monges não rezam para que as tentações cessem, mas rezam para que Deus lhes dê força suficiente como vem dito: “Conta-se que mãe Sara viveu durante treze anos fortemente atacada pelo demônio da fornicação. Ela, porém nunca pediu para que cessasse o combate, mas dizia: ‘Ó Deus, dá-me força!’” (Apot 884). E, por fim, ela acabou vencendo. Pois o espírito impuro disse a ela: ‘“Sara, tu me venceste!’ Ela, porém, respondeu: ‘Não fui eu que te venci, mas Cristo, meu Senhor’” (Apot 885). A tentação obriga-nos a lutar. Porque sem luta não há vitória. Vencer, porém, jamais é mérito nosso. Nós precisamos fazer a experiência de que, por meio da luta, Cristo age em nós e, de repente, nos liberta da luta constante e nos dá uma profunda paz. (GRÜN. Alselm, p. 50).


Link para a continuação do post: O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto para hoje (PARTE 2)

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Antônio: O santo do amor (Parte 2)

A RÁPIDA DECEPÇÃO

Quando Fernando entra para o serviço dos regrantes agostinianos, o prior de São Vicente de Fora é dom Pedro Mendes e o diretor espiritual dos noviços, que será seu primeiro mestre no mosteiro, dom Gonçalo Mendes. O próprio dom Gonçalo virá a tornar-se, mais tarde, o prior da casa. 
Ali, o rapaz almeja sentir-se distante do burburinho e da turbulência da cidade, que está sempre a receber mercadores, aventureiros e soldados, marinheiros e cruzados, gente de toda espécie. Palco de intenso combate em período recente, e sujeita a nova invasão a qualquer momento, Lisboa ainda é uma cidade de leis frágeis, onde ocorrem grandes arruaças e os costumes são violentos. Fernando conclui que fez a escolha acertada. Finalmente, interno do mosteiro, poderá estudar com tranquilidade, dedicar-se a uma vida devota e ao mesmo tempo ajudar os doentes e necessitados.
Esse novo estilo de vida implicou a renúncia à família, que não mais tomará a exercer influência sobre os destinos do filho. O pai teria preferido, já o sabemos, vê-lo cavaleiro e homem-bom do reino, como ao irmão Pedro, mas a mãe devota sabe tão bem como ele que o destino de um filho primogênito com frequência o conduz ao claustro, e provavelmente, como as outras mães da época, se conforma melhor a isso; no fundo, ela julga mesmo ser essa a melhor alternativa de vida para este filho sensível.
Bem logo, no entanto, o noviço perceberá a incompatibilidade entre seu projeto de vida e a instalação em um mosteiro tão próximo de rebuliço de uma cidade que se desenvolve rapidamente. Quando se recolheu entre as paredes do claustro, imaginou a si próprio – como viria a escrever anos mais tarde – em situação semelhante à das mulheres que foram procurar Jesus no sepulcro e se viram diante do problema de retirar a grande pedra que o fechava.
É verdade que no mosteiro pode-se conversar sobre as questões religiosas e culturais, e os monges que vêm do estrangeiro trazem assuntos importantes e discussões como a causada pela proibição, em 1202, do estudo do antigo filósofo grego Aristóteles em Paris. (No entanto, o pensamento aristotélico viria a ser incorporado pela teologia católica poucas décadas depois, pelas mãos do monge dominicano São Tomás de Aquino, que se tornaria mestre da própria universidade de Paris, a Sorbonne, em 1256.) Mas o tom geral da conversação, lá dentro, é bastante diferente. Dom Gonçalo e outros líderes agostinianos se orgulham de receber entre os monges um novo membro tão importante, de família fidalga, ao passo que o noviço prefere passear sozinho pelos corredores do claustro. A estada de Fernando em São Vicente de Fora acaba durante apenas pouco mais de dois anos. Págs. 60-62.

[...]. 

EM SANTA CRUZ

[...].

Fundado oitenta anos antes pelo arcediago dom Telo e mais doze seguidores, o mosteiro de Santa Cruz tem tradição de estudo e santidade. Dom Telo viera inspirado pelo exemplo dos monges orientais que conhecera durante uma viagem de quatro anos pela Palestina e por Constantinopla, acompanhado pelo bispo de Coimbra, dom Maurício Bordinho. Assim, ao fundar Santa Cruz com seus discípulos, dom Telo torna-se um dos pioneiros da retonificação do movimento monástico na Europa ocidental. Em 1130, dom Afonso Henriques doa aos novos cônegos regrantes as terras ao redor da Igreja de Santa Cruz, em que haviam se instalado, além de mandar construir o claustro e outros anexos necessários à ampliação do lugar. O rei, que sempre que podia se juntava aos internos nos momentos de oração, foi nomeado cônego honorário e, posteriormente, anunciou a fundação da abadia a Adriano IV (Nicolas Breakespeare, pontífice de 1154 a 1159), o único papa inglês da história. A propósito, foi esse período um dos mais internacionalistas da Igreja, em que o papado de Roma completava a solidificação de sua autoridade sobre os bispados regionais – tendo sido Inocêncio III o pontífice mais eficaz nesse sentido. Menos de cinquenta anos depois da morte de Santo Antônio, em 1276-1277, também houve um papa, João XXI – Pedro Julião –, a quem se atribui origem portuguesa.
O mais importante talvez, nesta altura da história é que dom Afonso guardava em Santa Cruz os tesouros resultantes de suas incursões anuais às terras mouras do sul. Assim, o mosteiro se torna uma espécie de caixa-forte do primeiro rei português. Embora seus bens não possam ser usufruídos pelos religiosos residentes, as doações para atender às necessidades vitais dos internos são régias. Págs. 66-67.

[...].

A realidade é que a pobre ermida fundada por dom Telo e São Teotônio tornara-se uma rica abadia, com as doações dos reis e da nobreza que para lá enviava seus filhos. Era o mosteiro do reis, a abadia da Corte – com tudo o que isso implicava. Assim, à revelia daqueles que ali buscavam um lugar de contemplação e oração (como Fernando Martins), ou de prática voltada ao bem-estar da comunidade, eram os que queriam se aproximar do poder, os ambiciosos e os bajuladores, passavam a se dirigir ao mosteiro, pedindo para nele se internar – ou os filhos secundogênitos da nobreza do reino, que mesmo sem herança podiam gozar vestidos de monges as benesses do tesouro real. Por isso mesmo as admissões tinham passado a ser controladas pelo rei e por seu apaniguado.
E fora assim que dom João César, clérigo da nobreza, mais ligado aos bens materiais e ao jogo do poder, assumira o priorado do mosteiro em 1196, protegido por dom Afonso II, então príncipe, ainda. Pág. 71. 

FINALMENTE

Num dia de meados de 1220 (em junho, ou talvez até em agosto, não se guardou a data), assim que raia o sol, os novos companheiros vêm buscar o cônego Fernando Martins no mosteiro dos agostinianos. Ali, na frente de todos, ele se descalça e troca o elegante traje branco dos cônegos pela áspera veste franciscana, com a grossa corda sobre a cintura. Ouve-se a voz de um agora ex-colega, um cônego, que diz em tom de gracejo:
- Isso, vai! Podes ir, que ainda vais ser santo.
Já em seu novo traje, o homem que parte responde apenas:
- Quando te contarem que me tornei um deles, louvarás a Deus.
Quando chega a Santo Antão já se tornou outro homem. A partir de agora ele será frei Antônio.
Para aquele que foi Fernando Martins faz-se outra vez a luz, o mundo é criado novamente.
O franciscanismo vem, como um descobrimento oceânico, aperfeiçoar e aprofundar sua vocação. Quase se poderia falar, na verdade, em mudança de vocação, em redescoberta pessoal, ao ponto de envolver a mudança do próprio nome.
O que ficou para trás, no entanto, não será desperdiçado. Se por um lado pode-se falar que Fernando já era uma espécie de franciscano entre os agostinianos (tinha “alma franciscana”, como se diz), com certeza é ele quem levará para a ordem de Francisco de Assis a teologia, o gosto pelo estudo e a disciplina aprendida nos mosteiros de Agostinho de Hipona.
A Igreja Católica está no bojo de sua primeira grande reforma, uma reforma que não envolve a separação de outras igrejas da sé de Roma, mas uma espécie de resgate da tentativa de viver mais literalmente os ensinamentos de Jesus. Pág. 95.

[...]. 

A REVIRAVOLTA DAS LETRAS

O talento desse homem único produz uma reviravolta nas políticas da ordem franciscana. Até então, Francisco de Assis, considerado avesso às letras, aos livros, e até ao uso da palavra como meio de convencimento – pelo que isso representava de estímulo ao orgulho e à vaidade, por tudo o que constituía como instrumentos de poder –, pregava que os membros de sua ordem só podiam usar o exemplo de vida, a humildade, a oração, a vida pacífica, como maneiras de comunicar sua mensagem. Um noviço que pedira autorização a Francisco de Assis para ter um livro de salmos recebera do santo uma resposta negativa. Frei Francisco, vendo na posse de um livro a possível causa de um problema interior da própria ordem, explicara que o irmão que o tivesse certamente trataria com ar de superioridade aos outros irmãos, como um senhor a seus empregados.
Não deixava de ter seu tanto de razão. Para ele, o ensino devia se processar de modo espontâneo, ao sabor das oportunidades que surgissem, ao ajudar um leproso, ao encontrar por acaso um doente ou um desvalido: para isso não é necessário ser Letrado, o Espírito Santo ilumina com a inspiração adequada no momento certo. Disso Antônio já tomara conhecimento ao ouvir contar as tantas histórias que corriam sobre Francisco, antes de conhecê-lo, quando viera ter, quase náufrago, à Sicília.
Francisco chegara, inclusive, a cortar pela raiz uma primeira tentativa de dar luzes intelectuais à ordem, mandando fechar a escola instalada no mosteiro de Bolonha por frei João de Estácia. Dizia-se mesmo que o santo de Assis chegara a usar palavras muito duras e amargas para vituperar a tentativa de estabelecer um ensino franciscano, tendo inclusive amaldiçoado frei João e os irmãos seus alunos, expulsando-os da abadia de Bolonha, inclusive os doentes com dificuldade de locomoção, como já vimos. Somente a chegada do cardeal Hugolino, protetor da ordem, teria revertido – ou pelo menos amenizado – a fúria anti-intelectualista de Francisco. Ao reprisar o episódio, pensamos que, como esse comportamento não condiz com a biografia do santo de Assis, acabamos por adentrar provavelmente o terreno pantanoso do boato e do comentário malicioso, difundidos por seus adversários (tanto os anticatólicos como os “católicos demais”). O mais certo, portanto, é fazer alguns descontos a esses relatos, embora preservando a ideia de que Francisco ama a humildade, por mais que seja fruto da ignorância, e aborrece o intelectualismo arrogante.
No entanto, se por um lado ai daquele que viesse falar em dialética ou em retórica em casa franciscana (pois Jesus tampouco as usou, e como ele devíamos recorrer somente às parábolas de entendimento fácil), por outro a ignorância geral em matéria religiosa adubava campo fértil para todo tipo de heresia. Antônio surge na ordem franciscana como o elemento articulado que, a par de ser capaz de lidar, com sua humildade, de igual para igual e sem arrogância com o povo, também sabe como transmitir a doutrina de acordo com os ensinamentos canônicos da Igreja. Vem formado pela ordem agostiniana, e já Santo Agostinho, tantos séculos antes, elaborava o discurso e os argumentos para vencer as teses heréticas em voga na época de Francisco e de Antônio. Antônio chega para materializar a prédica em que entram coração e razão, em que se mesclam devoção e raciocínio.
Assim como se chegou a dizer que Francisco, desconfiado dos demônios que se escondiam (ou que se revelam) nas palavras impressas, proibira que os membros de sua ordem tivessem livros, também se afirma que foi Antônio, com sua atitude, quem conseguiu provar ao mestre ser possível ler e estudar sem tornar-se arrogante, sem incutir nos ignorantes a noção de que são inferiores aos doutos simplesmente por não saberem ler. Que, em suma, Antônio teria sido o único membro da ordem a receber do próprio fundador a permissão para possuir e ler livros.
Na verdade, a proibição de livros chegou a ocorrer, mas havia outro motivo mais forte: o de que, sendo interditada aos franciscanos a posse de bens materiais, os livros entravam nessa categoria.
Certamente, o frade vindo de Portugal contribui muito para que seu herói, o fundador da ordem, reveja em parte suas posições, passando a encarar o estudo e as letras como benéficas quando se destinam a pavimentar os caminhos do amor ao próximo e da santidade. Págs. 126-128.

[...]. 

O SERMÃO AOS PEIXES

É de Rímini que vem o relato do primeiro milagre de Antônio em solo italiano. No entanto, ao chegar à cidade, em 1223, as coisas não são nada fáceis: é natural que ele não encontre a benevolência daqueles a que pretende se dirigir. Nos primeiros dias no lugar, sai a pregar pelas praças principais. Para ouvidos moucos. Não é agredido, tampouco sua pregação é agressiva, mas fazem pouco-caso ou zombam dele e de sua serenidade.
Um belo dia, seguindo uma inspiração, Antônio vai até a foz do rio Marecchia. Ali, “da parte de Deus” (como diz o relato medieval de suas “florezinhas”, ou milagres), dirige seu sermão aos peixes:
- Peixes do mar e do rio, serão vocês a ouvir a palavra de Deus, já que os homens, infiéis, a desprezaram. Num instante, acorre para junto dele uma enorme quantidade de peixes, tal como nunca se vira nesse lugar, que erguem a cabeça para fora da água. Atentos, eles parecem prestes a ouvir com devoção as palavras do frade. Diz o relato que até se colocam em ordem: os menores mais junto à areia, os médios logo atrás e mais ao fundo os maiores. Antônio retoma o sermão:
- Peixes, nossos irmãos, vocês devem dar graças ao Senhor conforme a sua possibilidade, pois Ele lhes deu como morada um elemento muito nobre: a água, doce e salgada. Além disso, deu a vocês, nela, abrigo contra tempestades. Ele fez a água clara e transparente para que possam ver os caminhos por onde devem andar e a comida que os alimenta. O Senhor, generoso e bom, ao criá-los, abençoou-os e deu-lhes o preceito de se multiplicarem. Quando veio o dilúvio e os outros animais que não entraram na arca morreram, Deus fez que fossem vocês os únicos a escapar vivos.
E nessa toada prossegue frei Antônio, enquanto os peixes, cada vez em maior número, abrem a boca e inclinam a cabeça, como se estivessem louvando a Deus da forma que lhes é possível, até a conclusão da prédica:
- Por todas essas graças, vocês devem bendizer ao Senhor. Bendito seja Deus para sempre, pois é mais venerado e honrado pelos peixes do rio e do mar que pelos homens infiéis. Os seres irracionais ouvem melhor a palavra de Deus do que os homens, racionais.
Durante o sermão, o número de pessoas que se aproxima também aumenta a cada passo. Admirada, a multidão recém-formada cai de joelhos ao fim da homilia, pedindo que Antônio também lhe dirija a pregação.
O santo dá licença aos peixes para mergulharem, e assim que ele os abençoa os animais voltam para o fundo da água. Enquanto isso, surpresos e maravilhados, vários daqueles homens que o hostilizavam vão se reunindo em redor dele. É então que Antônio inicia um novo sermão desta vez dirigido às pessoas, e o faz com tamanha convicção que acaba por converter todos os assistentes que ainda não se haviam deixado convencer ao ouvir suas palavras aos peixes. Págs. 130-132. 


A PROVA DA MULA

A notícia do milagre dos peixes se espalha rapidamente. Logo no dia seguinte, durante a pregação de Antônio ao povo de Rímini, um dos líderes da cidade, chamado Bonomilo (ou Bonilo) lhe propõe um desafio: ele tem uma mula, que deixará em jejum durante três dias. No quarto dia, a mula será solto na praça, tendo de um lado um monte de aveia e do outro Antônio com o ostensório da comunhão erguido à sua frente. Como os cátaros não acreditam na presença de Cristo na eucaristia, o chefe aceitará render-se a Ele se a mula se dirigir para a comunhão em vez de partir direto para o monte de aveia. Antônio aceita a prova, mas com uma ressalva: se a mula preferir a aveia à hóstia consagrada, isso não significará que a eucaristia não tenha valor, mas sim que ele, Antônio, como um simples pecador, não terá merecido a dignidade e a graça do milagre divino. Bonomilo e seus asseclas apenas riem, ridicularizando a resposta do frade franciscano. 
Antônio também passa os três dias em jejum – e em oração. No quarto dia, no fim da tarde como foi combinado, dirige-se para a praça. O líder cátaro chega logo depois com sua mula, visivelmente enfraquecida. Muita gente já está lá, tendo rumado para a praça depois dos afazeres diários. O dono do animal vira-o para a direção do monte de aveia e estimula-o a comer. A mula, porém, se volta para o outro lado, onde está Antônio, e com passo trôpego chega à frente do ostensório. Ao chegar ali, dobra as patas dianteiras, como que se ajoelhando diante da hóstia. O murmúrio cresce na multidão, tanto entre os que não tinham presenciado o sermão aos peixes como entre os que apenas tinham ouvido falar nele.
O dono da mula se dirige a Antônio:
- Em verdade a sua fé me convenceu. E comigo se convertem todos os meus seguidores aos ensinamentos da Igreja.
Com a difusão do relato de mais essa maravilha, é nesse período que começa a se firmar entre o povo a fama de Antônio como santo milagreiro. No entanto, ele nunca aceitará a fama. Diz frei Antônio que, se milagre há, é Deus quem o realiza, não ele, um simples homem e pobre frade franciscano. É quase como se ele não percebesse a imensidade das maravilhas que cercam sua vida – pois é bem verdade que, se deixasse estagnar o pensamento sobre elas, muito cedo se esvairia sua humildade... e também a possibilidade de novos eventos miraculosos.
Por isso, conta-se também que, sempre que ocorre algo que possa ser classificado como milagre, Antônio impõe o silêncio a quem o recebe ou aos que o testemunham – imposição inútil, aliás. Pois quem consegue fechar a boca do povo, ainda mais em assuntos como esse? Haverá exageros, claro, e quanto mais tempo se passar, no futuro, depois da morte do santo, mais avultarão as maravilhas vividas, vistas ou de que se ouviu falar. Por outro lado, sempre haverá algo inefável que não sabemos e que almas discretas terão guardado para si, respeitando a ordem de Antônio. Págs. 132-133.

[...] 


O PÃO DOS POBRES

A fome é rara entre os camponeses e os pobres burgos. Sempre que tem tempo para isso, Antônio enche um cesto com pães fabricados no convento e os leva à praça para distribuir entre os pobres. Um dia, inadvertidamente, carrega consigo todos os pães que os irmãos haviam preparado nãos só para a distribuição aos necessitados como para o consumo próprio. 
É somente ao retornar para o convento que percebe o suposto engano, e lamenta o ocorrido. Apesar de os irmãos franciscanos dizerem que o pão esta ali para isso mesmo, frei Antônio lembra que eles também são pobres como os outros e, portanto, também merecedores da dádiva do pão ofertado.
O fato é que, no momento de servir a parca refeição, para maravilhamento de todos, o irmão que cuida da cozinha nota que o cesto de pães – que Antônio tinha esvaziado – se encontrava novamente repleto.
Em outra versão, conta-se que um dia aparecem alguns pobres a pedir pão ao porteiro do convento, que se recusa a dá-lo, alegando falta de comida suficiente para os frades. Santo Antônio ouve a conversa e lhe ordena que dê todos os que têm, acrescentando:
- Deus nos há de prover!
Ao entrar no refeitório, vêem os frades, maravilhados, que o cesto está repleto.
Em lembrança desse milagre (ou desses milagres: nunca se sabe quando se trata da mesma história lembrada de diferentes modos ou quando é a vida que se replica) é que viria a surgir o tradicional “pão dos pobres de Santo Antônio”, distribuído tradicionalmente nos conventos franciscanos às terças-feiras ou, pelo menos, no dia 13 de junho de cada ano. Págs. 135-136.

[...]

Aquelas simples sete semanas de 1231 constituem uma autêntica revolução nos usos e costumes dos paduanos. A quaresma impregna a cidade de uma aura religiosa como nunca se vira. O preço dessa colheita se faz sentir, no entanto, no estado físico de frei Antônio: a hemoptise, que o faz perder sangue sempre que tosse – o que ocorre cada vez com mais frequência –, o enfraquece crescentemente. Isso, com a hidropisia, constituem as consequências decorrentes, tantos anos depois, da afecção contraída à beira do deserto e de uma vida de privações e de pouco cuidado com o corpo. O martírio que buscara encontrar no Marrocos, numa missão que a princípio julgara malsucedida, parecia cumprir-se afinal, adiado por anos: o mal contraído naquelas plagas, somado à desatenção acumulada em relação a seu próprio estado físico, o corroera lentamente, em vez do cutelo ou da cimitarra a decepar-lhe de um só golpe a juventude. Os jejuns severos, somados a essas enfermidades, muito contribuirão, com toda a certeza, para a morte precoce do santo.
Quando chega a Semana Santa, Antônio se encontra exausto, além de consumido pela doença. Todos lhe recomendam o descanso. Mas não, ele insiste.
Muitas pregações fez, muito assistiu pobres e enfermos. Mesmo assim, permanece ativo; só muda um pouco o teor das tarefas. Faz um pequeno intervalo nas pregações, para completar a redação de mais alguns textos e praticar a contemplação, que pode restaurar um pouco suas forças. Ele pretende realizar ainda alguns sermões e só descansar na alta estação da colheita, principalmente a partir de julho, quando os fiéis precisam dedicar mais tempo aos trabalhos no campo. Mas será que estará em condições de levar adiante essa intenção quando julho chegar? 


A CARTA PERDIDA

Em maio, porém, sentindo-se no limite da resistência física, Antônio parece ter-se dado por vencido: escreve ao provincial para pedir que o autorize a se retirar a um lugar tranquilo, um oratório ou ermida em que possa repousar e, sobretudo, meditar e rezar. A rigor, nem precisaria pedir essa autorização, tal é sua importância entre os franciscanos, mas Antônio nunca deixará de assumir a postura mais humilde. 
O lugar em que pensa fazer o retiro é próximo a Pádua e chama-se Camposampiero – também conhecido como Camposanto (fato curioso, pois em italiano camposanto significa “cemitério”).
No entanto, logo depois de ter escrito a carta ao ministro, surge uma dificuldade:
- Irmão Pio, não viu onde está a carta que escrevi há pouco para o nosso provincial? Eu a deixei ainda agora nesta mesa.
- Deve ser um sinal de Deus.
E, interpretando dessa forma o sumiço da correspondência, Antônio desiste de reescrevê-la. Julga entrever nesse fato a ordem divina para que permaneça onde está.
No entanto, alguns dias depois o irmão Pio vem procura-lo com um sobrescrito na mão:
- Frei Antônio, chegou carta do provincial.
Ao tirar-lhe o lacre, lê a resposta que o autoriza a retirar-se para o lugar que melhor lhe aprouver. Ao saber daquilo, Pio sai correndo a contar aos outros do convento o caso da resposta que chegou para a carta que não foi. Num instante a história se espalha, mais uma vez, como sempre, na versão do milagre:
- Então foi um anjo do Senhor quem levou a carta do nosso santo ao provincial. Foi por isso que sumiu o escrito da mesa em que ele o deixou.
E assim é que aparece essa história, como um evento miraculoso, já nos relatos mais antigos da vida de Santo Antônio.
O conde Tiso VI, a quem pertencem às terras de Camposampiero, havia construído no lugar uma capela, com um pequeno alojamento para religiosos, por ficar em local próximo de seu palácio. Antes de se retirar para a capela, frei Antônio visita o conde e, depois de muita insistência da parte deste, aceita hospedar-se por uma noite num dos quartos de sua casa.
Logo na noite da chegada de frei Antônio ocorre um fato maravilhoso, que Tiso, no entanto, só viria a divulgar depois da morte do santo. Págs. 236-237. 

O MENINO JESUS CONSOLA A QUEM O CONSOLA

Cabe contar neste ponto a história que o conde Tiso guardou para revelar apenas depois do falecimento de Antônio.
Diante dos religiosos unidos na imensa tristeza pela morte de um homem tão querido por todos, o conde relata, às lágrimas, o que viu quando o santo pernoitou em seu palacete:
- Como sempre, Il Santo não quis jantar. Aceitou apenas um pouco de pão e água. Antes de nos retirarmos para dormir, conversamos um pouco sobre assuntos religiosos. Ele se recolheu então ao quarto. Depois que todos na casa se aprontaram para dormir, resolvi passar pelo quarto de frei Antônio e ver se não precisava de alguma coisa. Quando olhei para dentro, tomei um susto. Onde se supunha reinar a escuridão, via-se uma luz forte que não vinha de nenhuma vela ou tocha. O santo estava de pé, no meio do quarto, com um lindo menino no colo. A criança, pouco mais que um bebê, tinha uma aura de luz em torno do corpo e acariciava o rosto de frei Antônio. E o santo beijava a testa e o rosto do menino de luz. Então a criança avisou o nosso querido frade de que eu os estava observando, e ele em seguida me pediu encarecidamente que não contasse a ninguém o que presenciei ali. Mas agora, vendo morto aquele que era a nossa luz e o nosso exemplo, não pude deixar de contar a mais bela cena que vi em minha vida.
Enquanto as lágrimas rolam pelo rosto do conde Tiso, começa a formar-se, no espírito dos que o escutam, aquela que será a imagem pela qual Antônio se tornará conhecido em todo o mundo cristão. As representações do santo trazem sempre a figura do Menino Jesus amparado em seu colo, invariavelmente com um livro – inevitável lembrança de seu dom de instruir – e de um lírio – símbolo da pureza, física e espiritual, que ele sempre almejou e praticou.
Estão todos convencidos de que a aparição do Menino Jesus a Antônio constitui um sinal de que seus dias se encontravam no fim, um ato de consolação. Págs. 237-238.

[...]. 


O DIA DO REENCONTRO

Ao amanhecer do dia 13, o santo se levanta em sua nova cela sentindo grande satisfação interior. Desce pela escada de madeira e ruma para a capela, onde os irmãos se reúnem para a primeira oração do dia. Em seguida, seguem todos para o refeitório improvisado, e é ali, antes de sequer pegar o costumeiro pedaço de pão duro, que Antônio desmaia, provavelmente de fraqueza, associada a uma provável crise de hidropisia. 
É carregado e colocado sobre o feixe espesso de palha que faz as vezes de cama a um dos irmãos. Quando finalmente volta a si, Antônio pede:
- Irmãos... Por favor, levem-me para o convento de Santa Maria.
Por causa de sua fragilidade, os outros relutam em fazer a remoção, mas Antônio insiste:
- Quero voltar para Pádua... Para Santa Maria...
Assim, ele é agasalhado e estendido sobre um carro de boi. Com todo o cuidado, vai sendo levado pelos religiosos da ermida, embora a contragosto deles. Antônio deseja viver em lugar dedicado à Virgem de sua devoção o que parecem ser seus últimos momentos; já os irmãos preferiam poupar-lhe o esforço.
Na entrada de Pádua, encontram outro franciscano, frei Inoto.
- Eu ia justamente visitar frei Antônio – diz ele. – Mas o caso parece grave! Para onde o estão levando?
Informado da decisão do santo, frei Inoto também tenta demovê-lo de continuar por aquele caminho:
- Mas, frei Antônio, se deseja vir para Pádua, por que não fica no eremitério de Arcella? O movimento é pequeno, lá vivem apenas alguns irmãos que cuidam das idosas pobres. Santa Maria é um lugar pequeno, mas lá faz muito barulho, há muito entra-e-sai. Com certeza isso irá prejudicar ainda mais a sua saúde.
E, argumentando dessa forma, Inoto consegue convencer Antônio a que concorde em ir para o pequeno convento de Arcella, pois fica no vilarejo de Capo di Ponte, ali bem próximo. Nessa ermida (também chamado de oratório) vivem uns poucos franciscanos, ao lado de outro pequeno convento de “mulheres pobres” da ordem feminina fundada por Santa Clara de Assis; as duas construções formam os anexos da pequena Igreja de Santa Maria della Cella (conhecida popularmente pela forma contrata “Arcella”). Talvez o fato de ser esse oratório também dedicado a Nossa Senhora tenha pesado na mudança de decisão do santo.
A decisão de levar frei Antônio para esse local se revela acertada: a viagem a Pádua, apesar de curta, seria puxada demais para seu estado físico. No entanto, assim que o instalam numa das minúsculas celas do lugar, nota-se que seu estado de saúde se agrava rapidamente: Antônio sente falta de ar, só pode ficar sentado. A tosse se torna mais intensa, os calores do corpo se acentuam.
Quando consegue reunir forças para falar, Antônio pede para se confessar com um dos frades de Arcella. Recebido o sacramento, põe-se a entoar a canção “Ó gloriosa Senhora, excelsa, que estais acima das estrelas”, dedicada à Virgem Maria. Seu olhar está fito no teto, mas sem dúvida não o enxerga: Antônio vê o que está muito além dele. Um dos frades, que sustenta seu corpo, lhe pergunta:
- Que está vendo, irmão Antônio?  Págs. 239-241. 

O REENCONTRO (13 DE JUNHO DE 1231)

E voltei a me perguntar: Que vim fazer aqui?
Contemplei a Deus, e Ele me contempla. Ouvi o chamado do Senhor. E vim. Ele me trouxe até aqui. Entreguei-me a Ele de corpo e alma e agora espero o Seu juízo. Terei pecado por omissões, por palavras, por obras.
- Quero confessar-me...
Sussurros, ruídos, a absolvição.
Sinto fiapos de odores,
Apenas pressinto os confusos ruídos.
- O gloriosa Domina excelsa supra sidera qui te creavit provide lactasti sacro úbere... Ó gloriosa Senhora, excelsa, que estais acima das estrelas e nutristes com vosso seio sagrado Aquele que vos criou.
Quero morrer de amor por Aquele que morreu de amor por todos os homens e mulheres deste mundo que pertence a Ele próprio, pois além de homem é Deus.
Quem me dessem a morte por tanto Vos amar, que me torturassem em nome do amor divino que frutificaria a conversão dos ímpios;
Que tanto morre por Vós, e vivi Vosso plano, Senhor. Anseio pela salvação que só Vós trazeis, anseio pelo Amor.
Vejo com os olhos da alma os altos céus, acima do telhado desta casa, acima do sol e das estrelas. Neste lugar quase sem iluminação e em que me falta o ar, sinto a presença do sol maior de todos, do sopro que me inspira enquanto expiro. A luz me preenche, sinto que não respiro, sim sou respirado.
Em algo que está aqui dentro não sinto mais as dúvidas, as perguntas se esgotaram, mas, sobretudo, surge a resposta necessária que se forma entre os abalos causados pelo mal-estar da doença. Ardo em febre, perco a consciência, recobro os sentidos. Longe das ânsias do martírio da fé, do sacrifício do meu corpo dado em oferenda Àquele que como eu viveu vida de homem, mas que também é Deus.
Está cumprida minha missão. Para isto me chamastes. Aceito o jugo que me impusestes, seja feita a Vossa vontade. Sinto-me esvair rapidamente, sei a tristeza dos companheiros assustados.
Pai, em Vossas mãos entrego meu corpo e minha alma. Alegre estou porque posso ir para junto de Vós. Seja feita a Vossa vontade...
Ouço a modulação de uma voz amiga que vem de tão perto e ao mesmo tempo de tão longe:
- Que está vendo, irmão Antônio?
Vejo meu Senhor.
- Vejo o meu Senhor...
Quase em seguida, o frade sacerdote lhe dá a extrema-unção. Com os olhos voltados para o alto, Antônio exala pela última vez. Págs. 243-244.


[...].


Referência 

Nuno, Fernando. Antônio: O santo do amor. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Antônio: O santo do amor (Parte 1)

Antônio: Livros; Antônio: O santo do amor parte 1; Fernando Nuno
UMA VOCAÇÃO EM APURO (COMEÇO DE 1220; INVERNO)

E só então me pergunto: Que estou fazendo aqui?
Que faço nesta terra inóspita e insalubre, em que sou estrangeiro, em que o solo duro do deserto e as dunas de areia escaldante começam logo à frente?
Contemplei a Deus, e Ele me contempla. Ouvi o chamado do Senhor. E vim. Ele me trouxe até aqui.
O som das cornetas dos encantadores de serpentes me chega através dos finos orifícios que dão para a Djemaâ, por onde quase não entra luz nem o ar necessário para respirar, mas que parecem amplificar, tantas vezes quantos são eles, os ruídos lá de fora, lá de cima. Da pra aqui ao lado, ouço ainda a modulação da voz dos contadores de histórias misturada aos sons cantados dos vendedores de água e de haxixe, apenas pressinto os confusos ruídos dos dromedários que chegam do deserto ao fundo, além. Sinto fiapos de odores, das comidas que preparam e vendem na Djemaâ, das flores, da água de rosas da pequena vendedora sentada ali fora bem perto, junto às frestas do porão.
Quero morrer de amor por Aquele que morreu de amor por todos os outros homens e mulheres deste mundo que pertence a Ele próprio, pois que além de homem é Deus. Que me dessem a morte por tanto Vos amar, que me torturassem em nome do amor divino que frutificaria na conversão dos ímpios; mas acabar assim, estendido sobre uma tábua áspera, ignorado por aqueles que deviam me perseguir e conhecido apenas pela doença intratável que, parece, irá dar cabo de mim? Queria tanto morrer por Vós, mas a que serve isto agora, qual é Vosso plano, Senhor?
De algo que está aqui dentro saltam as dúvidas, as perguntas, mas sobretudo a resposta necessária que se forma entre os abalos causados pelo mal-estar da doença. Ardo em febre, perco a consciência, recobro os sentidos amparados pelos braços de frei Filipino e frei Leão a oferecer-me o odre de água tépida, o calor os sufoca tanto quanto a mim.
Sinto que posso morrer, mas não na forma que desejava. Longe das ânsias do martírio pela fé, do sacrifício do meu corpo dado em oferenda a um homem como eu mas que também é Deus.
Está cumprida minha missão? Para isto me chamastes? Aceito o jugo que me impusestes, seja feita a Vossa vontade.
Aqui prostrado na tábua rija sobre o solo duro, sem mesmo uma enxerga que me sirva de colchão, a delirar numa língua absurda para os habitantes desta terra estrangeira de que é tão difícil aprender os costumes, vestido com o roto roupão cinzento dos que professam a mesma regra, sinto-me esvair rapidamente, sinto a tristeza dos companheiros assustados.
Pelas pequenas aberturas por onde entram os finos feixes de luz a iluminar o ar abafado e pestilento do porão, penetra agora também, como a pairar sobre a massa de ruídos e de cheiros, o canto do muezim a chamar para a oração aquela gente de outra fé.
Pai, em Vossas mãos entrego meu corpo e minha alma. Alegre estou porque posso ir para junto de Vós. Seja feita a Vossa vontade...
O sonho de morrer em nome do Senhor às mãos dos inimigos, glória almejada por tantos fiéis nesses séculos de furor religioso, está cada vez mais distante para o jovem frade português que atravessou o mar apenas para encontrar o fim de sua breve vida em Mrakch, a cidade que dá nome ao país de que é centro e que depois será conhecida como Marrakech.
Seu corpo frágil está subjugado pela doença, solar ou alimentar que seja. Nos breves intervalos de lucidez, ele começa a se perguntar se é essa realmente a vontade de Deus, se a glória divina, para se manifestar em todo o esplendor e ser ainda mais engrandecida, realmente precisa do sacrifício de sua carne e de seu sangue. Ter chegado ao coração da terra inimiga lhe parece agora, nos raros momentos em que consegue pensar, haver sido jornada vã. Os infiéis agem como se não se dessem conta do perigo que ele e seus companheiros representam, ao que tudo indica consideram inexpressiva e insignificante a sua presença, ou mesmo inexistente.
Que missão, portanto, Deus lhe confiaria, se não essa, do martírio? A morte inglória pela doença? Não haveria coisas mais importantes a fazer, outras missões que ele sequer imaginava, em lugares que nem supunha um dia vir a pisar?

O jovem frade delira. Num lapso de consciência, diz apenas:

- ... Seja feita a Vossa vontade!

Em seguida, balbucia mais algumas palavras que parecem sem sentido, escuta a voz de frei Filipino, companheiro de missão, que o chama pelo nome. Mas o cérebro febril parece ouvir ainda, confundido os apelos do amigo com os de outra voz vinda de algum lugar distante no tempo e no espaço, uma voz querida de mulher a chamar alguém, um menino. As ideias se dissolvem, sobram apenas os nomes, e ele mistura os nomes, os nomes apenas:

- Antônio!

- Fernando! 


OS NOMES FAZEM OS MITOS, OS MITOS FAZEM OS NOMES

Esse menino, que um dia viria a ser conhecido como um dos mais populares e queridos símbolos da cristandade sob o nome de Santo Antônio, chamou-se Fernando Martins de Bulhões e Taveira de Azevedo. Nome comprido, um tanto incomum numa época em que as outras pessoas quase todas só têm um nome próprio, além de um outro, o patronímico, que diz de quem é filho o seu portador. Poderá até nem haver tido tantos nomes, mas foi o maior que ficou para a História e para os livros.
Quando nasce o menino, os pais, Martinho e Teresa, dão-lhe o nome germânico de Fernando. No início do século V, quase oitocentos anos antes da história que estamos contando, os povos chamados “bárbaros” tinham invadido o que restava da parte ocidental do Império Romano. Desses grupos germânicos a conquistar a península Ibérica – e que explicam a maior parte da incidência de pessoas de cabelos e olhos claros até hoje em Portugal e Espanha –, foram os visigodos que prevaleceram, estabelecendo um reino que durou pouco mais de trezentos anos, até a invasão dos árabes, nos século VIII.
Ao tempo em que se inicia a história que estamos contando, decorridos mais de cinco séculos de ocupação muçulmana e começado o processo da Reconquista da península pelos reinos cristãos, a população tomava grande gosto nos nomes próprios de origem germânica, como os terminados em “ando” e “berto”. Fernando, nome que significa guerreiro audaz, pareceu ao pai cavaleiro e à mãe devota – guerra e devoção iam de mãos dadas nesses tempos de Cruzadas – bastante apropriado para o filho. Além do mais, era também o nome de um tio, irmão de Teresa e padre, dos primeiros, da catedral lisboeta ainda em final de construção. Mas talvez nem fosse o significado o importante, e sim o fato de que os nomes preferidos remontavam, como já sabemos, ao reino cristão anterior à ocupação mulçumana, o visigodo, e assim se revestiam do orgulho de pertencer a uma estirpe ibérica pré-moura. Os mouros eram a tribo de árabes (ou de povos arabizados) que, vinda da África, mais especificamente da Mauritânia (daí o nome de mauros, ou mouros, e daí a palavra “moreno” para se referir à pele menos clara), havia conquistado as terras ibéricas aos visigodos.
Ao nome de Fernando seguia-se o patronímico, Martins (que em outros lugares se poderia escrever Martin’s), ou seja, “Martim”, filho de Martim. Ou Martinho – afinal, nesta época em que tão poucos leem e escrevem e até os reis são analfabetos, os nomes flutuam ao sabor de quem os pronuncia. Por isso tanto dá também que tenhamos “Fernão” ou “Fernando”. Como se faz registro escrito das cerimônias religiosas, sendo os clérigos dos conventos quase as únicas pessoas que sabem ler e escrever letras, e como o registro se dá em latim, lá se encontra, nos assentamentos da ordem franciscana, a forma “Fernandus Martini” – consignada quando este menino Fernando Martins, que por enquanto mora e brinca em frente à sé de Lisboa, vier a se tornar, já adulto, seguidor da regra e do exemplo de Francisco de Assis.
Depois, uma vez que nos encontramos entre pessoas de importância na sociedade medieval, além do patronímico Martins, o pai legará a este menino algo não tão comum na época, isto é, um sobrenome próprio, a saber, Bolhom, e, por consequência, o menino se chama Fernando Martins de Bulhões (pois Bolhom, assim como Bulhão, é uma das formas medievais de Bulhões).
Aqui começa o mito a mesclar-se à verdade, sem que possamos deslindar e separar um da outra, de tal modo os séculos e as crenças construídas ao longo deles atravessam e fundem ambas as coisas.
O nome Bulhões vem de Bouillon, a região da Flandres de onde saiu o nobre Godofredo na Primeira Cruzada para tornar-se em 1099 rei de Jerusalém, o santo lugar em que pregou e morreu - e ressuscitou - Jesus Cristo Nosso Senhor.

[...].

O MUNDO TAMBÉM CONSPIRA PARA FORMAR SANTOS

As décadas de 11190 e de 1200 assistem a vários acontecimentos marcantes – não fossem também aquelas em que, na infância, se moldaram os anseios que norteariam a vida do santo mais popular dos países latinos.
Transcendendo as décadas, o mundo europeu vive conflitos que estão na raiz mesma do mundo moderno. Por um lado, o que opõe os cristãos à maré montante do islamismo, traçando uma linha fronteiriça entre duas forças que passa pelo interior da península Ibérica e se estende pelo Mediterrâneo, com eventuais reentrâncias muçulmanas no continente europeu e cristãs no Oriente Próximo.
Dentro do cristianismo, ocorre outra série de conflitos: o primeiro, mais genérico, que opõe a cristandade ocidental católica à oriental ortodoxa. Esse desentendimento ocasionará, durante a adolescência de Fernando Martins, como veremos, a invasão e o saque da capital ortodoxa – Bizâncio, ou Constantinopla – por forças católicas que na verdade supunha-se deverem confrontar o domínio do islã, geograficamente um pouco mais adiante.
Ao mesmo tempo, no interior do mundo católico, assiste-se ao conflito de poder pela supremacia material (ou temporal) entre o papa e o imperador do Sacro Império Romano, que ocupa a porção central do continente (essencialmente a Alemanha, a Áustria e o norte da Itália). O imperador pretende nomear não apenas bispos de seu território como também fazer ou destituir o próprio papa. Já o pontífice de Roma acredita estar num plano de ordens superior ao do Império: Inocêncio III (o papa que virá a aprovar as atividades da ordem franciscana, em que Santo Antônio irá se destacar) declara que não pode correr o risco de coroar um imperador ímpio ou assassino, ou sem condições mentais de exercer o poder.
Por esse lado, vários reis se colocam em estado de sujeição ao papa: soberanos de países distantes entre si como Portugal e a Dinamarca, a Inglaterra e a Hungria, se declaram vassalos do sumo pontífice e lhe enviam tributos.
Outro conflito de grandes dimensões já se prenuncia, entre Inglaterra e França. Em 1152, a duquesa da vasta região da Aquitânia. Alienor (ou Eleonora), tivera anulado seu casamento com o rei da França Luís VII. Já no mesmo ano, ela se casara com o rei inglês Henrique II, levando como dote seu ducado. Essa situação, pela qual o rei da Inglaterra se tornava senhor feudal de uma parcela substancial da França, viria a provocar rusgas intermitentes entre os dois reinos durante séculos. Os ingleses chegarão a dominar quase metade do que virá, séculos mais tarde, a constituir o território francês, e dali a duzentos anos os dois países se encontrarão (ou desencontrarão) em meio à calamitosa Guerra dos Cem Anos.
Não menos importante que essas dissensões é a das seitas heréticas, proliferam durante o período. Por conta dela ocorrerão grandes sanguinolências, que Fernando Martins, quando se tornar frade, tentará suprimir ou minorar com o poder de sua palavra coerente e firme. A atuação pela palavra estará na essência de sua santidade.

A INFÂNCIA EM MUNDO TURBULENTO

Está, assim, posto o quadro em que se desenvolve a infância de Fernando Martins de Bulhões, talhado para se tornar Santo Antônio.
Nasce num país jovem, Portugal, tornado independente apenas cinquenta anos, mais ou menos, antes de seu nascimento, que ocorre em... Não fizemos ainda a data, aí há outra controvérsia.
Seguindo antiga tradição, convencionou-se datar o nascimento do santo do dia festivo da Assunção de Maria, 15 de agosto, devido à intensa devoção que ele teve pela Virgem. Outra tradição firmada pelo tempo dá 1195 como ano de seu nascimento. Assim, em 1995 comemorou-se oficialmente o oitavo centenário de Santo Antônio. No entanto, como essa data não se acerta totalmente bem com a cronologia de sua vida, estudiosos apontam para distintos anos, a partir de 1188.
As medições antropométricas feitas em sua ossada, em 1981, levaram à conclusão de que tratava dos restos de um homem que havia pouco passara dos quarenta anos. Creditaremos, portanto, com boa dose de confiabilidade, a 1189 ser o ano do nascimento de Fernando Martins, ou Santo Antônio.
Com o tempo, como vimos, firmou-se também a fluida crença de que Martinho de Bulhões, seu pai, teria sido prefeito de Lisboa, burguês comerciante rico ou nobre cavaleiro. Seja como for, podemos concluir que seja um fidalgo, que mora com a mulher, Maria Teresa Taveira, e os quatro filhos numa bela casa bem em frente à antiga igreja que os mouros tornaram mesquita e que dom Afonso Henriques resolveu transformar em catedral da cidade, mandando construir torres que lhe acentuam o aspecto de fortificação. Nessa catedral é batizado o menino Fernando Martins, e ainda oito séculos depois a pia batismal em que ele se tornou cristão será venerada e visitada por uma multidão de fiéis.
Levando a estudar, pelo tio padre Fernando, na escola episcopal que a mando de dom Afonso Henriques o bispo de Hastings instalara junto à sé, Fernando Martins aprende a ler na época, tendo como colegas filhos de outros cavaleiros ou homens-bons do reino que vivem na cidade que é o posto avançado do reino. O primeiro conjunto de disciplinas estudadas é uma introdução ao trívio, composto pelas três artes liberais – a gramatica, a retórica e a dialética –, e depois, já bem entrados os alunos na adolescência, é que se envolvem nos princípios das artes liberais complementares – a aritmética, a geometria, a música e a astronomia –, as matérias que constituem o quadrívio. Nas décadas seguintes, com o desenvolvimento progressivo das primeiras universidades, o trívio e o quadrívio virão a constituir, na plenitude, o currículo acadêmico básico.
Aos quinze anos, concluída essa parte da educação, julga-se que seu pai o encaminha para as artes da cavalaria. Poucos têm recursos para possuir um cavalo, e dom Martinho está entre esses. Acima de tudo, o país precisa de soldados. O inimigo está logo ali, do outro lado do Tejo, ameaçador e voltando a flexionar os músculos.
No mesmo ano em que o primeiro rei português tomou Lisboa ao império almorávida, essa dinastia moura sofria importante derrota. Um outro grupo muçulmano, o do almôadas, tendo declarado a “guerra santa” aos almorávidas, conquistou justamente a capital de seu império, a cidade de Marrocos, ou Marrakech.
Com a troca de dinastia, os mouros tornam a ameaçar o que agora é território português: os almôadas vão gradualmente tomando os restos do império almorávida no norte da África e em parte da península Ibérica. Em Portugal, retomam territórios no Alentejo e chegam a fazer investidas bem ao norte de Lisboa, deixando bastante temerosos os que vivem na cidade. E atacam em várias frentes: em 1203, quando Fernando tem seus catorze anos, chegam a conquistar as ilhas Baleares, onde fica Maiorca, ao lado da Catalunha.
Enquanto isso, em Portugal, com a morte de dom Afonso Henriques, seu filho Sancho o sucedera em 1185, o que poderia revitalizar também o ânimo dos ibéricos envolvidos na Reconquista. No entanto, dom Sancho I não tem o mesmo impulso belicoso do pai e, preferindo manter a paz a se aventurar a novas conquistas de território, procura consolidar as instituições do jovem reino. Mesmo assim, o novo rei enfrentará a fase mais difícil desse combate. Antes de mais nada, pacifica as relações com os reinos cristãos vizinhos, Leão e Castela (que, como vimos, trezentos anos depois, já unidos, formarão o que hoje conhecemos como Espanha ao se juntarem, por sua vez, ao reino de Aragão). O rei português percebe que a paz entre os defensores da cruz é indispensável para enfrentar a ofensiva moura renovada. Com efeito, a situação de seu pequeno reino tornava-se delicada: os ataques muçulmanos a regiões ao norte de Lisboa haviam ocorrido em 1190 e 1191, na época do nascimento de Fernando Martins.
Como parte dessa nova maré montante do islamismo, um ex-escravo que se tornou valoroso líder guerreio, de nome Saladino, retoma Jerusalém em 1187, na frente oriental da grande batalha da época. Assim, a Cidade Santa acaba por permanecer sob domínio cristão por apenas cem anos, desde sua conquista pelos francos chefiados por Godofredo de Bulhões.
Outro movimento importante das peças no grande tabuleiro bélico da época se dá também no período em que nasce Santo Antônio, quando em 21 de janeiro de 1189, os reis Filipe Augusto da França e Henrique II da Inglaterra, em conjunto com o sacro imperador romano Frederico Barba-Roxa, convocam tropas para formar a Terceira Cruzada.
Essa cruzada, que irá durar três anos, acaba redundando em fracasso: Barba-Roxa morre afogado na Armênia, no ano seguinte, Ricardo Coração de Leão, que sucede a seu pai Henrique II, ainda conquista a ilha de Chipre e, junto com Filipe Augusto, toma a cidade do Acre, no litoral palestino. Logo em seguida, Filipe é atacado por uma doença e volta para a França; Ricardo chega a tomar a cidade de Jafa, mas acaba derrotado às portas de Jerusalém. Depois de perder também Acre, a cruzada é dada por encerrada. Na volta para a Inglaterra, para remate de males, Ricardo Coração de Leão se torna prisioneiro, em 1193, do sucessor de Frederico Barba-Roxa, o imperador Henrique VI; este pede resgate aos ingleses pela libertação de seu rei. É apenas um exemplo do respeito e da fidelidade às alianças que tem a maioria dos grandes líderes de qualquer época. Filipe Augusto aproveita a ocasião para retomar dos ingleses parte do território francês que se encontra sob domínio da Inglaterra.
Enquanto isso, no nordeste da Europa se estabelece – quando Fernando Martins, pelas nossas contas, tem um ano de idade – a organização dos cavaleiros teutônicos (ou alemães), com o objetivo declarado da defesa da Terra Santa. Essa ordem, no entanto, irá se destacar nos séculos seguintes menos pelas atividades religiosas e mais pelas comerciais e bélicas em sua própria região, que terão seu papel histórico na formação da Alemanha.
Do outro lado, no entanto, a situação não é menos complicada. O sultão Saladino morre em Damasco e começa a guerra civil entre os seus herdeiros pela liderança dos muçulmanos.
Como se vê, é um mundo (não muito diferente, talvez, daquele em que viverão tantas gerações futuras) em que ninguém parece poder confiar em ninguém, pelo menos entre os líderes dos povos, os senhores da guerra, e a paz é artigo raro. Se há alguma coisa visível a contrapor-se ao predomínio do belicismo, é o fato de que cresce o movimento monástico por toda a Europa. Além disso, inicia-se a construção das grandes catedrais e surgem universidades, que constituirão, em ambos os casos, monumentos de perenidade.
E, se nos detivemos ao longo de tantos parágrafos e pincelar as grandes questões históricas desse momento conturbado, é porque seu conhecimento será fundamental para a compreensão da vida e da atuação do santo que no corpo e na alma de Fernando Martins se revelará. Pois, atuando pela paz, além dele, a se por a tantas carnificinas, surgem vários homens e mulheres nessa mesma época que formarão entre os principais santos da religião católica, como São Domingos e São Francisco e Santa Clara de Assis.
Santo Antônio, além de passar por terras muçulmanas, também virá a pisar solo papal, assim como o do Império e o da França das heresias: sua vida e sua vocação serão fortemente moldadas e marcadas por todos esses conflitos.

O CAVALEIRO DESARMADO

Acredita-se que o pai destinasse o jovem adolescente ao ofício das armas. Para tal, dom Martinho de Bulhões providencia o treinamento que fará do filho um cavaleiro sem jaça nem par: tendo em vista desenvolver-lhe a habilidade física, ele contrata os melhores instrutores das artes marciais da tradição, equitação e esgrima – com isso, Fernando deve tornar-se apto a participar sem desaire de qualquer torneio. Os hábitos cortesãos também devem ter sido incutidos no jovem por um mestre das regras, juntamente com o código de honra de um bom cavaleiro – ninguém poderá reprochar-lhe o modo de comportar-se em sociedade. Tudo isso – esse tipo de educação marcial e cortesã – representa para a mentalidade geral, um passo a mais sobre a introdução às matérias do trívio e do quadrívio propiciada pela escola da sé de Lisboa, as práticas prevalecendo sobre as teorias.
Fernando certamente não se afaz aos exercícios extenuantes, em que se pratica o dia inteiro, até a exaustão, o lançamento do dardo na direção de um manequim vestido de mouro. O treino para a luta, vestido de cota de malha, com o capacete a cobrir-lhe a cabeça, tudo tão incômodo, não representa para o rapaz devoto necessariamente algo que equivalha às brincadeiras de infância, em que brincava de lutar com os amigos, com um pedaço de pau, ou investia contra as abóboras do quintal, semelhantes, para ele, às cabeças dos mouros com seus turbantes. O rapaz devoto virá a preferir outro tipo de rigores físicos.
Tampouco sente a mesma emoção da infância quando, com o pai, vai à casa de um vizinho, também homem-bom do rei, mais um dos amigos nobres de dom Martinho. Ele tem na sala um capacete que ainda guarda as marcas do machado mouro, os sabres, as lanças e os estandartes tomados ao inimigo – elementos decorativos que, o rapaz percebe agora, já não lhe excitam da mesma forma a imaginação.
Tornar-se cavaleiro, suceder o pai – seria esse o caminho considerado mais natural. Outra vocação, porém, quase desde a infância foi se delineando em seu íntimo. Fernando quer ser um cavaleiro de outro tipo, de outra ordem. Tornou-se um adolescente reservado e avesso à turbulência muito comum na idade; ganhou o gosto pelo estudo, pelo recolhimento, pelos livros. A religiosidade vem completar essa tendência.
É certo que sua vida não apresenta grandes dificuldades, é querido e tem tudo de que precisa materialmente, mas sente falta de algo mais significativo. A vida na cidade de Lisboa não mais o atrai. A partir dos quinze anos, começa a viver uma grande crise pessoal; próximo de fazer vinte, percebe que nada daquilo lhe agrada inteiramente, pois não se deixa convencer por valores do mundo das aparências. Almeja outras conquistas. Só que não anseia por elas à custa da luta física, da morte do adversário.
Seu coração pende para outro tipo de riqueza, é introspectivo, identificou-se mais com a busca da espiritualidade. Como a quase totalidade das pessoas religiosas, sonha em converter os fiéis de outra crença, mas o uso das armas não o seduz. Pode até morrer defendendo a religião, mas não em combate, não em batalha de força física. Fernando pretende ser um cruzado de outro tipo: o cruzado da palavra, arauto da paz e do convencimento pelo poder da persuasão.
A educação cristã que recebeu em casa desde a primeira infância e, em seguida, na escola da sé, a proximidade com os elementos místicos da vida, apesar de tão intensa quanto a instrução dos princípios bélicos, prevalece nele. Como Antônio diria mais tarde, em um de seus famosos sermões, Fernando não se sentia à vontade na busca de fortuna individual nem apreciava qualidades como o orgulho e a vaidade pessoal. E acrescentaria: onde a riqueza é abundante, esconde-se a lepra da luxúria. Se não resistimos à luxúria, morre tudo o que parece bom. A luxúria jamais diz: basta. Com ela vem a arrogância, a soberba, que é o princípio de todos os pecados. Assim ele evocaria mais tarde com pesar o que viria a considerar os maus hábitos da juventude, e aos quais havia fugido: a ambição, a luxúria e, sobretudo, o orgulho.
Sua ambição, seu ideal de beleza, portanto, como supusemos, estavam em outra parte. Págs. 40-42.


AO ABRIGO DE SANTO AGOSTINHO

Durante suas crises, suas indecisões, o jovem Fernando tinha vindo várias vezes buscar tranquilidade e reforço espiritual nesse local. Já está familiarizado àquele lugar alto, de onde se vê quase toda a cidade e o rio, quando se decide a pedir admissão ao claustro. É um bom termo para os cinco anos críticos decorridos sem saber ao certo o que fazer da vida. O gosto pela ordem e pelo estudo, o anseio de sentir-se mais próximo do sagrado, do divino: tudo isso significa afastar-se do mundo para requerer sua entrada como noviço para o mosteiro agostiniano de São Vicente de Fora. Págs. 47-48.

[...].

TEMPO DE CRUZADAS

Fernando Martins entra para São Vicente de Fora em 1209 ou 1210, com prováveis vinte ou vinte e um anos de idade. Longe do burburinho ligado a sua vida passada, cresce-lhe o desejo de santidade, começa a se formar o caráter que o definirá. Segundo a Legenda assídua, sua primeira biografia, escrita por volta de 1232, o jovem religioso que não quis ser cavaleiro foi para lá, “em cata de disciplina mais austera e de recolhimento mais frutuoso [...] Sua pretensão não era mudar de lugar, mas melhorar os costumes. [...] Sua memória era como biblioteca que sempre tinha ao dispor. Nela arranjava o que lia nas Divinas Escrituras e nas obras dos Santos Padres; e o que nela guardava no momento preciso lhe vinha à lembrança”. Como Santo Antão no deserto, foge para a solidão a fim de melhor ouvir a Deus.
Enquanto Fernando Martins se interna em São Vicente de Fora, em busca de paz e silêncio para estudar e praticar tranquilamente suas devoções, o mundo lá fora vive a ebulição do movimento geral da cristandade para retomar os territórios que lhe haviam sido arrebatados pela maré montante do islamismo durante os cinco séculos anteriores.
Esse movimento – que, deixando de apenas opor resistência ao avanço muçulmano, passa a atacar o inimigo nos lugares que antes eram cristãos, mas agora são seus domínios – deriva seu nome da cruz, tomada então como símbolo maior dos seguidores de Cristo, e será conhecido como Cruzadas.
A base teórica ou legal das Cruzadas é o Édito de Tessalonica, promulgado em 397, que definiu como oficialmente cristãs as terras que faziam parte do Império Romano. Portanto, a ideia inicial das Cruzadas, e seu fundamento legal, é recuperar terras que se considera indevidamente ocupadas por outras fés, principalmente a muçulmana – como a península Ibérica, mas em especial a região em que viveu o Senhor Jesus Cristo, a Terra Santa, na Palestina.
Ao entrar para o mosteiro Agostiniano, Fernando Martins passa a fazer parte de um grupo de pessoas que, por sua vez, compõe uma rede ainda maior de clérigos espalhados pelo continente. Esses clérigos compartilham informações durante as constantes viagens de estudo ou de peregrinação que empreendem. Vários dos cônegos de São Vicente de Fora já estiveram em Paris, Bolonha ou Roma, em jornadas que contribuem para a manutenção da unidade da doutrina religiosa. Se é verdade que muitas das futilidades do mundo exterior atravessam as paredes monásticas e dominam as preocupações de vários internos, também são muitas e acaloradas as discussões sobre o que acontece no ambiente lá fora, no terreno político-religioso.
As notícias das convulsões do mundo, como tantas outras que chegam pelos monges itinerantes, certamente se discutem acaloradamente nos mosteiros, a provocar as almas mais inflamadas. Alguns almejam a glória do martírio, relembrando os tempos dos primeiros cristãos sob o Império Romano, não têm medo de morrer em nome de Deus às mãos dos inimigos da cristandade para com seu próprio sangue irrigar e fortalecer a fé; outros, ao contrário, o que desejam é exterminar os infiéis, também para revigorar a fé com o sangue – só que, nesse caso, o dos adversários. E nessa dualidade as grandes religiões se parecem. Pág. 52-54.

[...]


Referência

Nuno, Fernando. Antônio: O santo do amor. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.



Link para a continuação do post: Antônio: O santo do amor (PARTE 2)

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