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26 de março de 2025

TRECHOS DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (3ª PARTE)

Livro; Edwiges - A santa libertária; Toninho Vaz; Evangelhos
Uma Tragédia Familiar

Disputas violentas entre parentes – incluindo pais e filhos – beiravam a banalidade na Idade Média e eram decorrência de uma desesperada luta pela posse da terra, única forma possível de poder para um senhor feudal. Atos de crueldade promovidos por príncipes poloneses resultaram em inquérito instaurado pelo papa Gregório IX, que acusava Henrique de injúria e danos morais ao bispo de Gnensen e outras autoridades eclesiásticas. Essas questões ficaram conhecidas na história como Querela das Investiduras, a maior disputa entre a Igreja e o Estado, que regulava o papel e a importância do príncipe e do bispo no comando das ações. A questão começara no século XI e atravessaria o século XIII, quando os Estados se consolidavam pelas forças militares e ousadia dos príncipes.

No caso de Henrique, ele não apenas desdenhou as admoestações do papado como desautorizou seus procuradores a abrirem qualquer processo de defesa – levando as autoridades de Roma a pedirem sua excomunhão, que seria finalmente consumada pela retumbante decisão papal. Sabe-se que Edwiges sofreu muito nesse período, pois considerava uma tragédia a exclusão de Henrique do Reino dos Céus.

Parece não haver dúvidas de que Henrique era um homem valente e determinado, que não fugia à luta quando necessário. Em 1227, durante os conflitos deflagrados pela disputa familiar entre Otto, da Alemanha, e seu filho Wladislau, o nobre Henrique – que tinha uma aliança militar com o imperador – acabou gravemente ferido, sendo salvo das lanças por um soldado de nome Peregrino de Weszemberg, que acabou morrendo pela espada inimiga. Otto foi derrotado e expulso de suas terras pelo próprio filho. Mesmo ferido, Henrique conseguiu escapar e dias depois estava curado.

Durante uma disputa entre príncipes regionais – poloneses versus pomeranos –, Henrique I acabou prisioneiro do filho Conrado. Isso acontecia porque os herdeiros, ao adquirir terras e autonomia, ganhavam também uma dose extra de responsabilidade, ambição e ousadia, fazendo com que muitas vezes os laços familiares fossem superados por interesses políticos. Assim acontecia com Conrado, que num passado recente tinha sido o favorito do pai e, agora, tornara-se seu algoz.

Determinado em aumentar seu poderio na região. Conrado decide invadir uma missa e fazer de seu pai Henrique prisioneiro. Seu destino estava marcado: o filho decide mandar o pai para a região da Mazóvia. Foi Edwiges quem corajosamente viajou horas numa carruagem para apresentar-se diante do filho em defesa do marido. Dizem os relatos que Conrado, que já tinha recebido pedidos idênticos de outras autoridades influentes, capitulou diante da própria mãe. Como um anjo, ela o ameaça com a justiça divina – o que teria feito Conrado libertar o pai imediatamente. Seu poder de argumentação recebia em certos momentos o reforço de um enérgico tom messiânico, quase divino. Nos Acta Sanctorum, esse momento ficou assim registrado:

Quando Edwiges apresentou-se diante do filho, que inspirava ferocidade, este se transformou completamente, assumindo um aspecto lamentável, de alguém pilhado em flagrante, cabisbaixo, apavorado mesmo, ouvindo a mãe e prometendo humildemente fazer tudo o que ela mandasse. p. 52

O desfecho deste episódio revela que, com sua atitude determinada, Edwiges conseguiu não apenas a libertação imediata do marido, mas a reconciliação dos príncipes. Os registros dos Acta revelam que:

Henrique, o Pai, acabou deixando para Conrado a monarquia da Polônia e a tutela dos filhos do irmão Boleslau. Todos esses tratados foram firmados por juramento solene. Edwiges conseguia restabelecer a paz entre os príncipes.

[...].


A purificação

[...].

A fama da austeridade de Edwiges ultrapassava as paredes do mosteiro, criando um uma verdadeira onda (comentários) sobre seu retiro e modo de vida, onde o jejum era uma forma importante de mortificar e purificar o corpo e o espírito, como registram os Acta:

Observava o jejum todos os dias do ano, com exceção dos domingos e principais dias festivos, quando chegava a tomar duas refeições. Durante quarenta anos se absteve do consumo de carne e gorduras. Uma vez, seu irmão dom Egberto, bispo de Brambemberg, com quem ela mantinha boas relações, censurou-a por causa da severidade do regime. Dizia que ela não podia sacrificar sua vida a tal ponto. Ela, entretanto, se recusou a atender às ponderações do irmão dizendo que, com a ajuda de Deus, pretendia levar a cabo aquelas práticas de purificação que adotara exatamente por amor a Ele.

Certa vez, quando estava doente e fraca, Edwiges foi censurada pelo marido por só beber água morna nas refeições, recusando o vinho, que já nessa época era considerado saudável por suas propriedades medicinais. Contam os Acta:

Henrique ficou indignado, primeiro porque julgava aquele radicalismo realmente exagerado; e, segundo, porque a mentalidade da época atribuía à falta de vinho o frequente mal-estar que acometia a maioria das mulheres. Dizem os relatos que certo dia Henrique I chegou de surpresa à mesa onde Edwiges estava tomando a refeição, pegou a bilha que estava à frente dela (com água) e levou-a à boca. Afirmam as testemunhas que Henrique provou o esplêndido sabor de um vinho fino, reagindo com severidade ao delator, um servo do mosteiro de nome Chevalislau, que jurava ter colocado água na bilha, como fazia todos os dias. Era mais um milagre de Edwiges, agora transformando água em vinho. No final, ela ainda consolou o delator, que ajoelhado a seus pés pedia perdão e jurava inocência: “Minha Santa Edwiges, eu tinha a melhor das intenções, pois temia pela sua saúde...” Este episódio revela o prodígio de Edwiges, que assim fortalecia sua devoção.

Do ponto de vista da solidariedade, a devoção de Edwiges, aliada à sua riqueza pessoal, permitiram que durante duas décadas ela pudesse construir uma grandiosa obra social, erguendo e colocando para funcionar vários hospitais e mosteiros. Este capítulo vai tratar apenas das obras inteiramente executadas pelo casal, deixando de lado a recuperação e a restauração de hospitais e igrejas menores – que somam mais de uma dezena. As ações assistenciais de Edwiges visavam ao conforto do corpo e da alma dos necessitados. p. 55

[...], o primeiro mosteiro construído por Henrique e Edwiges, depois de Trebnitz, seria a Casa Saganense (na aldeia de Sagano), em 1207, onde antes existia a abadia de Santa Maria de Arena. [...]. Em seguida, veio o mosteiro de Camencz (ou Kamenza), cujas obras começaram em 1207 e terminaram em 1216. [...]. No decorrer dos anos, muitos monges de diferentes ordens passaram por ali: os Cônegos Regulares saíram de Camencz em 1222 e foram substituídos pelos Cistercienses, que ali permanecem até os dias de hoje.

A quarta obra de importância construída na Silésia pelo casal Henrique e Edwiges seria o hospital e Albergue dos Estrangeiros, em Vlatislávia (como os poloneses chamavam Breslau). Eles atendiam a um pedido de ajuda de dom Witoslau, abade do mosteiro dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho. Foi o próprio Henrique, o Barbado, quem lançou a pedra fundamental e financiou a construção do hospital, que tinha capacidade para atender sessenta pessoas. Toda a administração humana, digamos, do hospital era de responsabilidade de Edwiges, que orientava enfermeiros e serventes, tratando pessoalmente dos doentes como na casa de Lázaro, ela dizia. [...]. Em seguida, fazendo uma conexão com o que acontecia em Assis, na Itália, Edwiges planejou e executou a construção do mosteiro de Goldberg (monte áureo), que a seu convite seria administrado pelos frades menores ou franciscanos. O mosteiro nascia apoiado financeiramente pela Fundação do Monte Áureo, que seria inaugurado entre 1219 e 1220. [...]:

A divina Edwiges consagrou esse lugar aos estudos da doutrina e da religião antes dos anos 300. Com grandes gastos, mandou buscar frades franciscanos em Assis, uma cidade na região da Úmbria, na Itália, onde um homem religioso chamado Francisco reunira um pequeno grupo de pobres. Estes frades, também conhecidos como mendicantes, foram instalados primeiro na aldeia de Monte Áureo, onde foi criada uma escola para propagar o Evangelho na língua local.

[...]

Outras iniciativas de Edwiges, incluídas na categoria “obras assistenciais”, se seguiram com a construção do convento Henricoviense, que ficou pronto em 1227, e seria administrado pelos monges Cistercienses. Essa obra vinha anexada ao Instituto Eclesiástico Henricoviense, uma forma jurídica criada para captar recursos oficiais. [...]. (p. 58). A sétima e última obra de Edwiges, a construção do mosteiro de Boleslávia (antiga Bunzlau), em 1234, administrado pelos Monges Pregadores, consolidava uma das maiores iniciativas sociais da Idade Média. Pouco depois, esse mosteiro seria atacado, destruído e os monges mortos, inaugurando um período de fúria e violência que devastaria grande parte do território europeu. Eram os mongóis arrombando os portões dos castelos e abadias.

 

Uma vida exemplar

Ano de 1238. Apesar de longo tempo passado em frentes de batalha, Henrique I, o Barbado, iria morrer de doença e não de valentia, como era de se supor. Um pouco antes, Edwiges havia conseguido (com a ajuda dos filhos religiosos) uma absolvição papal para o marido, alegando que sua obra de caridade deveria neutralizar os motivos da excomunhão. Era, como se dizia no direito canônico, uma “questão rescindível”, que permitiria a Henrique recorrer da decisão. E assim foi feito. Agora, quando estava na região da Crosna, Henrique fora acometido de um mal súbito – uma doença não identificada, talvez infecção seguida de febre – e faleceu, longe de casa. Quando Edwiges chegou, Henrique já estava morto, cercado de servos de uma enfermaria que se lamuriavam diante do cadáver do patrono [3]. “Senhora, até o último instante seu esposo continuou chamando pelo seu nome”.

Por iniciativa de Edwiges, o marido seria também sepultado no mosteiro de Trebnitz, ao lado do filho Conrado. Trebnitz era, sem dúvida, o mais rico e bonito entre todos os mosteiros que havia na Silésia – e não eram poucos. Em seu túmulo está esculpido o epitáfio:

Tento chorar aqui, oh, duque Henrique, honra da Silésia. Aqui jaz ele, como um alicerce deste imenso fundamento (o mosteiro), pleno de virtudes: asilo dos necessitados, escola de costumes, castigo dos culpados. Reza, sejas tu quem fores, tu que daqui a pouco tiveres a felicidade de encontrar este lugar bom para o descanso, reza!

A morte do marido foi determinante pra Edwiges radicalizar uma postura de devoção ao espírito, elevando suas virtudes aos patamares clássicos da santidade. O filho Henrique II, o favorito de Edwiges, seria agora o herdeiro político do pai. As exéquias pela morte de Henrique I (uma mistura de homem religioso e senhor feudal) motivaram testemunhos eloquentes das freiras de Trebnitz, segundo Acta:

Enquanto todas choravam inconsoladas pela perda do excepcional protetor e patrono [4], como era visto o fundador de Trebnitz, Edwiges, sem derramar uma lágrima, se apresentou ante as irmãs censurando-as pela fraqueza de coração. Dirigia-lhes palavras de conforto para amenizar a tristeza. Não que ela nada sentisse pela morte do marido – que em vida tanto amara –, mas porque sempre se curvava diante da vontade divina. Ela também avaliava que, próxima de outras monjas, deveria ser um exemplo de constância e paciência. p. 60

Apesar disso, ela nunca aceitou oficialmente o título de religiosa ou monja – com reconhecimento pelo bispo –, preferindo trabalhar na condição de leiga. Argumentava que o voto de pobreza iria impedi-la de manter o patrimônio e, consequentemente, de continuar ajudando os pobres e necessitados. Ela nada queria para si, mas sabia muito bem como administrar seu patrimônio.  


A vida no Mosteiro

Houve um momento na vida de Edwiges em que toda a sua atenção estava voltada aos pobres e necessitados. Sua fama como beata milagrosa atraia a curiosidade de peregrinos que passavam pela Silésia – quase sempre a caminho de santuários franceses e espanhóis. Santiago de Compostela, na região da Galícia, era considerado um lugar místico para os católicos romanos, desde que no século IX anunciou-se a descoberta dos ossos do apóstolo São Tiago – James em inglês e Santiago em espanhol – naquelas plagas. A romaria de fiéis seguindo a estrela-guia passou a ser contínua e sistemática, até tornar-se atração turística [5]. Ao longo do sinuoso trajeto pelo território europeu, infestado de tribos nômades e selvagens, os peregrinos podiam contar, eventualmente, com a proteção dos Cavaleiros Templários.

O papa, entre 1227 e 1241, era Gregório IX, criador do Tribunal Eclesiástico da Inquisição, instituição que prendia, julgava e condenava os hereges. Foi Gregório quem proclamou santos Francisco de Assis, Domingos de Gusmão (Ordem dos Dominicanos), todos contemporâneos de Edwiges e mendicantes. [...]. O papa Gregório também se notabilizou pela luta travada durante anos contra a arrogância do imperador Frederico II e seus explícitos interesses pecuniários. p. 66. [...]. Fora Gregório também quem, alguns anos antes, acusara Henrique I, o Barbado, de violar as imunidades eclesiásticas em seu ducado, perseguindo e taxando as terras da Igreja. [...].

___________________

3. Patrono era o provedor do mosteiro ou abadia. Era o chefe – caput mansi –, como se refere um auto dos arquivos clunisianos.

4. O historiador Steven Runciman, em A História das Cruzadas, registra: “Depois de conquistar Kiev, na Ucrânia, parte do exército mongol seguiu para a Polônia, ao norte, pilhando Sandomir e Cracóvia. Houve uma batalha em Wahlsdadt, quando as tropas do duque Henrique seriam desbaratadas. Após devastar a Silésia, os mongóis foram para o sul, atravessando a Morávia até a Hungria”.

5. A passagem bíblica do Evangelho Segundo Marcos destaca aquela que seria a primeira peregrinação no mundo cristão: a dos três Reis Magos seguindo a estrela cadente até o recém-nascido menino Jesus. Assim que Baltasar, Melquior e Gaspar chegaram à manjedoura, em Jerusalém, no dia 6 de janeiro do primeiro ano da era cristã, ofereceram ao recém-nascido ouro, incenso e mirra.  


18 de janeiro de 2025

O pecado da luxúria – masturbação, pornografia e seus males

 

O pecado da luxúria – masturbação, pornografia e seus males; pornografia; luxúria; livros; download


Introdução: O texto ajudará a todos que estão precisando de libertação espiritual dos vícios contra a castidade. No final do artigo, deixarei dois livros linkados para download, sobre os métodos psicoterapêuticos usados para vencer os vícios da pornografia.


ALGUMAS PESSOAS, POR IGNORÂNCIA, vêm confundindo o significado da palavra "luxúria", imaginando que se trataria da qualidade de alguém que vive no luxo. O significado verdadeiro do termo, porém, nada tem a ver com "luxo". Luxúria é a corrupção do próprio corpo, a lascívia, a sensualidade exacerbada, com uma tendência para o abuso do prazer sexual.

O ato sexual saudável não pode ser dissociado da relação estável, amorosa e santificada entre um homem e uma mulher (que é a definição correta do termo 'casal'), e nem da reprodução humana, do levar adiante as gerações. Usar o sexo somente para diversão, como se fosse uma forma de lazer, fatalmente trará consequências negativas para a vida da pessoa que o pratica e para as vidas dos seus próximos.

Quando a Igreja diz que devemos usar o sexo somente dentro do casamento, não é para reprimir nem privar ninguém da sua liberdade. Essa não é uma postura castradora contra o jovem, que quer descobrir as boas coisas da vida e desfrutar delas alegremente, sem culpas. O que a Igreja faz é, ao contrário, nos ajudar a encontrar a verdadeira e perfeita liberdade prometida pelo Cristo. “Se o Filho do Homem vos libertar, sereis verdadeiramente livres” (João 8, 36). Acontece que ser livre não é fazer tudo aquilo que queremos, do jeito que queremos e na hora em que quisermos. Ser livre é ser senhor de si, é saber e poder dominar os próprios desejos e inclinações, quando nos levam para caminhos que vão nos gerar problemas, dores e sofrimentos. Nós somos ainda imperfeitos, e em muitos aspectos somos como crianças engatinhando, aprendendo a viver. Por isso, o Senhor diz: “Se não estiverdes em Mim, nada podereis fazer” (João 15, 5).

Assim, tudo aquilo a que nos entregamos sem medidas, sem nos educarmos, pode nos escravizar. Mesmo as coisas boas podem se transformar em vícios que nos privam da liberdade que Deus nos dá, e o sexo aí se inclui. Na realidade, a prática sexual desordenada tem um potencial tremendo para se tornar um dos piores vícios que podem existir, escravizando-nos cruelmente. Se não for combatida, pode levar à animalização do ser humano, e muitos casos desse tipo foram relatados como alerta em testemunhos impressionantes. Esse é o caso de Joseph Sciambra, que está relacionado à diabólica indústria da pornografia, como veremos a seguir.


Pornografia: um capítulo à parte

Muito se pergunta se a masturbação é um pecado mortal ou venial. O Catecismo atual parece indicar que se trata de um pecado relativamente leve, algo que provoca muita confusão e que sem dúvida tem induzido muitos jovens a esse vício terrível. Porque há uma questão fundamental envolvida no ato da masturbação que poucas vezes é abordada, e é esta: de qual recurso a pessoa se serve para se masturbar?

A resposta à pergunta feita, quase sempre, é a mesma: para se masturbar, recorre-se à pornografia. As duas coisas – masturbação e pornografia –, quase sempre vêm juntas. E se o ato da masturbação em si pode não ser considerado um pecado mortal, já o consumo de pornografia é, sem dúvida, um pecado grave, por várias razões. Primeiro, porque quando um homem consome pornografia, inevitavelmente ele cobiça intensamente a(s) mulher(es) que está(ão) atuando naquele filme, ou posando naquelas imagens. Eis aí um pecado grave, que vai contra três Mandamentos divinos (6º, 9º e 10º). Em segundo lugar, aquele que acessa um site pornográfico está, queira ou não, incentivando e ajudando aquele veículo a prosperar, com a sua visita, porque é de acessos que essas plataformas sobrevivem.
Mas os males da pornografia vão ainda muito além. Contaremos aqui a emblemática história de Joseph Sciambra, uma verdadeira jornada rumo ao Inferno deste conhecido ator pornográfico homossexual norte-americano, que por graça divina se converteu à Fé católica. Em seu livro "Swallowed by Satan" ['Tragado por Satanás'], ele relata como Nosso Senhor o salvou "da pornografia, da homossexualidade e do ocultismo" (palavras dele). Disponibilizamos a seguir um breve resumo da sua história, publicado no site do Padre Paulo Ricardo.

Tudo começou no norte da Califórnia, onde Joseph nasceu, em 1969. Enquanto o movimento homossexual criava uma espécie de "bairro gay" no distrito de Castro, San Francisco, o rapaz crescia folheando revistas pornográficas. Embora fosse mandado para colégios católicos desde o jardim de infância, a educação liberal que recebia naqueles recentes anos pós-Concílio Vaticano II não tinha nada a ver com a verdadeira fé da Igreja. Sciambra cresceu sem fé: nem sequer sabia quem era Jesus Cristo.
Nessa situação trágica, já viciado em pornografia, Joseph foi atrás de sexo mais "emocionante". À procura de descargas de dopamina cada vez maiores, passou a consumir material homossexual, apenas porque era diferente, muitas vezes mais radical que o sexo normal. Esse é, na verdade, um roteiro muito comum entre os dependentes de pornografia. Como o cérebro da pessoa vai ficando "dormente" aos conteúdos ditos "softcore" (pornografia mais leve), o adicto busca drogas cada vez mais pesadas: da nudez e do sexo heterossexual, passa ao sexo contrário à natureza, chegando até as relações violentas e repugnantes, com fetiches absolutamente monstruosos. Um abismo atrai outro abismo, e coisas que são extremamente repulsivas para qualquer pessoa normal vão se tornando aceitáveis e até atraentes para o viciado.

Com 19 anos de idade, Joseph passou a frequentar o distrito de Castro. No convívio com um homem mais velho que se tornara seu amante, começa a filmar suas performances sexuais, e a partir daí vai caindo mais e mais fundo no mundo da pornografia, agora como ator. Como, em suas palavras, o ser humano é incapaz de não acreditar em nada, Sciambra mergulhou no ocultismo: do esoterismo new age, chegou ao satanismo. Gravando cenas sexuais cada vez mais extremas e perigosas, porém, ele foi acometido por sérios problemas médicos, até adoecer e, por fim, chegar à beira da morte. Em uma "experiência de quase-morte" (near-death experience), Joseph se vê às portas do Inferno, escoltado por dois demônios. Desesperado, ele afinal clama pelo auxílio de Deus. Assim, ganhou uma nova oportunidade e voltou à vida.
Depois desse acontecimento e de uma longa jornada de conversão, Sciambra refez o caminho rumo à Igreja Católica. Desta vez, passou a estudar a sua verdadeira doutrina e não o arremedo inventado pelo Vaticano II. Em seu apostolado, passou a compartilhar a sua história, sobre como "desceu aos infernos" e, agora, leva uma vida de Fé e castidade. Hoje, o rapaz que passou boa parte de sua juventude em busca de parceiros sexuais, tem em São José o seu modelo de pureza e masculinidade.
No vídeo intitulado "Dead Gay Porn Stars Memorial", disponibilizado abaixo, Joseph Sciambra faz memória de um grande número de atores pornográficos homossexuais vitimados pela AIDS e de outros tantos que cometeram suicídio ou morreram por overdose de drogas diversas.

Na internet há muitos outros vídeos semelhantes, revelando o fim terrível de muitas pornstars ('estrelas do pornô) e o segredo sujo por trás dessa indústria de moer carne humana. Pesquisas comprovam, por exemplo, que 75% dos atores pornográficos são dependentes químicos e 88% das imagens encenadas por eles são verbalização de violência. Também são conhecidas várias histórias de atrizes pornográficas que, tendo conseguido sair deste mundo – no qual eram tratadas realmente como objetos ou animais –, trazem até hoje as dolorosas lembranças de seu passado, que nunca poderá ser totalmente apagado de sua psique. Os produtores desses filmes, preocupados apenas em ganhar dinheiro, contratam médicos que só querem saber de melhorar o desempenho sexual dos atores, enquanto sua saúde definha, muitas vezes até a morte.

Esse vídeo (assim como outros do mesmo tipo) nos dá ocasião para uma meditação. Ao olhar para aquelas faces jovens, de olhares tristes, como que mortos em vida, pergunte-se onde estão agora e em que estado de alma morreram. Ainda pior, todavia, pode ser o efeito que o seu "trabalho" causou nas vidas das milhares de pessoas que assistiram os seus filmes. Quantas tragédias custaram apenas um clique? Um clique que ceifa vidas humanas, alimenta a cruel e impiedosa indústria pornográfica e, sobretudo, lança almas – tanto as de quem produz quanto as de quem os consome – na perdição eterna.





Mesmo em vida, a pornografia deixa sequelas emocionais seríssimas, de modo que se pode dizer que realmente mata a capacidade humana de amar. Olhando para o ser humano, é possível notar algo que o distingue de todos os animais: a capacidade que tem de se privar voluntariamente de algo que desejam, por saber que lhe será nocivo ou por um bem maior. Os animais podem ser contrariados – quando, por exemplo, um macho deseja uma fêmea, mas outro, mais forte, o impede de acasalar –, mas não são capazes de se privar de alguma coisa voluntariamente, pelo bem do outro, como o homem é capaz.
Com o vício, essa capacidade humana fica tremendamente comprometida. A pessoa que vê pornografia e se masturba com frequência perde a própria força de vontade. Na medida em que cresce a dependência, pessoas chegam a se masturbar sem sequer sentir prazer, por puro impulso vicioso. Como, para proteger o organismo, os receptores dos neurônios bloqueiam a passagem de dopamina, cada ato sexual é cada vez menos satisfatório. É por isso que, depois de cada ato, os jovens ficam extremamente nervosos: já que não conseguiram o prazer fácil que desejavam, irritam-se. Há vezes em que essa ira fica contida, transformando-se em uma espécie de tristeza – trata-se da acídia, sobre a qual já falamos.

Fechadas em si mesmas e transformadas por uma visão completamente distorcida da sexualidade – as atrizes têm corpos esculturais e estão sempre dispostas ao ato; os atores sempre ostentam membros sexuais de tamanho muito acima da média comum; as práticas entre eles são sempre extremas e desprovidas de qualquer afeto –, as pessoas que consomem pornografia chegam a se tornar incapazes de uma relação sadia. O relacionamento conjugal é profundamente abalado. Aos esposos adictos, seguem-se esposas tristes e inseguras. As mulheres veem que não podem ter a beleza artificial e falsa das atrizes pornográficas. Muitos maridos, por sua vez, viciados na ilusão inventada pela indústria pornográfica, passam a sofrer de problemas como impotência e disfunção, porque também não se podem comparar aos verdadeiros garanhões humanos dos filmes.
A pornografia realmente mata o amor e desumaniza o ser humano. Que tenhamos, pois a coragem de assumi-la como a grave doença que é, e buscar a restauração.


Castidade e vida sexual saudável

O Sexto Mandamento de Deus trata dos pecados contra a castidade, que "significa a integração correta da sexualidade na pessoa e, com isso, a unidade interior do homem em seu ser corporal e espiritual" (CIC 2337). Ainda segundo o Catecismo, "todos os batizados são chamados a viver a castidade", cada um dentro do seu estado de vida. (CIC 2348)
O prazer sexual em si não é algo condenável, como muitos ainda imaginam, desde que seja vivido em harmonia com as suas finalidades: procriação e união. Isso quer dizer que aos casais, unidos em matrimônio e abertos à vida, é perfeitamente natural desfrutar dos prazeres da relação sexual. Somente quando esse prazer é dissociado de seu objetivo primeiro, sendo buscado como um fim em si mesmo, torna-se moralmente desordenado. A masturbação e a pornografia inserem-se nesse contexto. São, portanto, ofensas à castidade.
Já a masturbação é definida pelo Catecismo da Igreja como "a excitação voluntária dos órgãos genitais, a fim de conseguir um prazer venéreo. Na linha da Tradição constante, tanto o Magistério da Igreja quanto o senso moral dos fiéis afirmaram sem hesitação que a masturbação é um ato intrínseca e gravemente desordenado" (CIC 2352).


A consequência mais séria

Além de tudo, quando se usa e abusa do sexo indiscriminadamente, cedo ou tarde pode-se acabar gerando uma criança, e pior, provavelmente uma criança indesejada – e uma criança é para sempre. Justamente porque uma criança é para sempre, o relacionamento de duas pessoas que compartilham intimidades sexuais também deve ser para sempre. É simples assim. Afinal, toda criança tem o direito de ter um pai e uma mãe responsáveis. Por isso é que precisamos saber usar do sexo com uma pessoa que amemos profundamente, e com quem tenhamos intimidade, cumplicidade e estabilidade: nosso(a) esposo(a). "E serão os dois uma só carne; e assim já não serão dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem" (Mt 10, 8-9).

Vemos na sociedade humana global a família cada vez mais desagregada, e por quê? Em boa parte, justamente por causa do pecado da luxúria; por vermos o sexo como um tipo de lazer, um prazer individual, egoísta, uma diversão que serve para "desestressar" e que não exige responsabilidade nenhuma. Mas não foi assim que Deus planejou. Fato é que todas as vezes que vamos buscar sexo somente por prazer, voltamos um pouco piores do que fomos. Todas as vezes que uma pessoa faz sexo contra a estabilidade que deve ter, dentro da união matrimonial (que é a Vontade de Deus para nós), fica um sentimento depressivo de perda, de tristeza, de uma espécie de morte ou a sensação de que algo bom foi perdido, como um cristal que se quebra. Com o sexo gratuito cria-se uma ilusão, e a ilusão, claro, nunca corresponde às expectativas. Sempre se sai decepcionado, a alma vai se tornando a cada vez um pouco mais manchada.


Vencer a Luxúria

Para vencer a luxúria –, o desregramento de procurar a felicidade no sexo –, só há um jeito: cair na realidade. E cair na realidade significa não se deixar usar e levar por ilusões. O estilo de sexo trazido pela pornografia é claramente falso, fantasioso, artificial. Deturpa a dignidade humana até as últimas consequências. Satanás é o pai da mentira e o maior inimigo da humanidade, e o que ele diz? “Entregue-se, faça sem medidas e você vai ser feliz!”; mas quando você o escuta e faz como ele diz, não fica feliz, não alcança a plenitude que desejava e imaginava, ao contrário: tudo que acontece é um afastar-se de Deus e um tornar-se cada vez mais dependente, depressivo, privado da liberdade, do domínio sobre o próprio corpo.

O principal órgão sexual do ser humano é o cérebro. Quanto mais nos entregamos à nossa imaginação, às fantasias desmedidas, mais nos perdemos, mais nos tornamos escravos dos nossos próprios desejos. Como sair desse triste estado mental?
Através do contato diário, concreto e amoroso com Deus é que conseguimos reverter essa situação, ir além dessa tendência que se parece com a lei da gravidade: sempre nos puxa para baixo. Reze diariamente, vá a Igreja com frequência, ocupe sua mente com as coisas santas, o serviço ao próximo (sua paróquia com certeza está precisando de voluntários para diversos trabalhos e pastorais)...
Ajude o seu cérebro a se livrar das ilusões, aproximando-se cada vez mais de Deus, que é a Verdade, e da sua Igreja: quando surgir um desejo ou um ímpeto para a luxúria, reze ou vá praticar um ato de caridade. Implore a Virgem Santíssima que o liberte, e também a São José, seu castíssimo esposo e nosso pai espiritual. Sem dúvida é mais fácil falar do que fazer, mas assim é que se liberta a alma do vício da luxúria.








Referência

Blog: O fiel católico – FLSP: https://www.ofielcatolico.com.br/2008/02/o-pecado-da-luxuria.html




22 de novembro de 2024

TRECHOS DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (2ª PARTE)

 

livros; Santa Edwiges; Evangelho; parte 2
As virtudes de Edwiges

No primeiro dia de sol, ajudado pela irmã Adelaide, Henrique levou a mulher para conhecer os povoados vizinhos de Glogan e Loewenberg, onde ela encontraria, entre as ostentações dos nobres, uma quantidade assustadora de miseráveis perambulando pelas proximidades dos castelos. Todos famintos e debilitados.

Assim que aprendeu a se comunicar em polonês – começando pelas traduções das orações do Padre-nosso e da Ave-maria –, Edwiges costumava sair do castelo de Breslau com uma pequena comitiva (a cunhada Adelaide, que tinha a mesma idade, estava sempre junto) para visitar as choupanas vizinhas e avaliar as condições de vida de seus moradores. Edwiges estava engendrando, com o apoio luxuoso das finanças do marido e da própria economia, uma forma objetiva de assistência social, levando alimentos, agasalhos e esperança aos necessitados.

Sabe-se que o tom de formalidade predominava como norma nas relações conjugais da Idade Média. Marido e mulher eram duas entidades separadas, algumas vezes unidas pelos mesmos interesses e crenças. A relação sexual, por exemplo, era entendida como uma concessão de Deus visando à procriação. Era, portanto, algo formal. A castidade, nesse contexto, seria um apreço especial ao amor divino, transformado em renúncia aos prazeres da carne. Diante dessa conjugação de valores, Edwiges e Henrique decidiram, em comum acordo, criar algumas regras de conduta íntima. Por “comum acordo” entenda-se uma imposição dela que Henrique, por força de circunstâncias até mesmo políticas, acabou aceitando. O “acordo” tinha como primeira regra a abstinência sexual durante a gravidez e nos quarenta dias após o parto. O mesmo comportamento deveria ser observado durante a Quaresma, nas vigílias das grandes solenidades cristãs e aos domingos, por ser o dia do Senhor. Págs. 34-35.

Apesar dessas medidas restritivas, que falam muito da falta de afeto e do excesso de formalidade entre os cônjuges. Edwiges seria mãe aos 13 anos. Foi uma experiência frustrada, na verdade, pois o bebê – que seria batizado como o nome dela – viveu apenas três meses, de fevereiro a abril. Um ano depois chegava Ignês (ou Sofia, como aparece em alguns documentos), também morta prematuramente. Nessa época, a maioria dos recém-nascidos não passava dos primeiros meses e poucos dos sobreviventes chegavam à adolescência. As crianças sucumbiam às febres, gripes, diarreia e outras infecções, que em pouco tempo se tornavam graves e fatais. Não havia antissépticos e apenas algumas plantas serviam como remédio.

Henrique, que tanto esperava pelo primeiro filho, não se conformava com a falta de sorte e, revoltado, mantinha um comportamento agressivo com a mulher. Edwiges rezava na esperança de poder dar um herdeiro ao marido. Vestia-se com extrema simplicidade e fazia caridade em hospitais e asilos. Tentava livrar das grades os miseráveis, muitas vezes resgatando suas dívidas com os agiotas. Ela estava apenas começando a construir, com gestos simples e objetivos, aquela que seria considerada – no futuro – uma grande obra social. Foi nesse contexto que surgiu uma nova gravidez, a terceira, ainda incapaz de trazer esperança ou otimismo ao desalentado Henrique.

Dessa vez, porém, Edwiges resolveria passar a gravidez longe do clima conturbado da casa, refugiando-se no castelo de Laenhaus, onde certo dia assistiu a uma cena chocante: alguns servos arrastavam um homem pelo pátio, amarrado a uma corda. Era um devedor de impostos em estado de inadimplência com o burgomestre – como era chamado o funcionário encarregado de arrecadar os dízimos. O pobre homem, todo esfolado, implorava clemência e prometia resolver o problema em questão de horas, caso fosse libertado. O episódio chegou ao fim com a interferência de Edwiges, que pagou 2 marcos de prata pela liberdade do camponês. Apesar de nobre, ela sabia que a vida desses camponeses não era nada fácil. Além do trabalho pesado, estavam sujeitos a diversos impostos e taxas que pagavam ao senhor do feudo. Moravam em pequenas e desconfortáveis casas, muitas vezes de um cômodo e chão de terra batida. Mas havia um alento, no momento em que eles começaram a ser protegidos por Edwiges.

Semanas depois, numa noite de outono de 1191, os sinos repicaram na catedral de Breslau: Edwiges, aos 17 anos, dava à luz um menino forte e sadio, que seria batizado como o nome do pai, Henrique II. O nascimento do primeiro filho começava a dar contornos de família ao núcleo do casal. A maternidade deixava Edwiges mais bela e madura. Uma maturidade que seria acentuada com a morte do pai, Bertholdo, em 1204. Logo depois, viria um outro filho, Conrado, para reconstituir de maneira trágica, num futuro próximo, a história bíblica de Esaú e Jacob, sobre a desavença entre dois irmãos. Neste sentido, os Acta Sanctorum dedicam um capítulo inteiro a analisar as origens desse dissídio. Existem fortes evidências de que, apesar de o primogênito ser considerado o herdeiro natural da fortuna do pai, acontecia de Conrado – conhecido como Crespo, o favorito de Henrique – ficar com as honras de sucedê-lo. A despeito das regras tradicionalmente estabelecidas, ele foi o eleito. Em contrapartida, Henrique II receberia a cumplicidade e o apoio da mãe. p. 36-37.



A primeira obra

A ideia de construir um mosteiro em Trebnitz, tornando concreto um antigo sonho de Edwiges, surgiria após uma caçada nos pântanos da Silésia, quando Henrique (agora conhecido com o Barbado, influenciado pelo estilo dos monges) correu risco de vida ao embrenhar-se de maneira imprudente na floresta. Ele e o cavalo ficaram presos num atoleiro, e a cada movimento feito ne tentativa de escapar, afundavam-se mais. Durante a noite fria, reconhecendo-se em risco de morte e muito longe de casa, Henrique fez a promessa pensando em Edwiges: “Se eu sobreviver a isso, vou realizar o sonho dela”. Diante da gravidade da situação, a fé de Henrique ganhou contornos de oração. Foi quando algo estranho aconteceu – ele diria depois que um “vulto” teria saltado sobre o lodaçal, tomando as rédeas da situação, afastando o cavalo para um terreno seco. De qualquer maneira, tudo foi muito rápido. Quando Henrique voltou-se para agradecer, não encontrou ninguém, apenas a escuridão. Qualquer que seja a interpretação desse episódio, pelo lado místico ou casual, o fato é que, na volta a Breslau, com o dia amanhecendo, seu estado era lamentável. Apesar disso, Henrique procurou Edwiges para dizer:

- De hoje em diante vou prestar mais atenção em você. Tudo que eu puder fazer para realizar suas obras, eu farei.

Esse episódio, em última análise, revela o prestígio de Edwiges como força espiritual. Mais tarde, Henrique diria: “Naquela noite eu pedi por um milagre. E ele aconteceu”. A construção do mosteiro em Trebnitz, que consumiu seis anos entre planejamento e trabalhos forçados, finalmente chegou ao fim em 1203.

Era uma obra monumental e cara, pois tinha as paredes e parte do teto revestidas de chumbo. O edifício havia sido construído no mesmo lugar onde Henrique sofrera o acidente no pântano. Era o primeiro monastério exclusivamente para mulheres de se chamaria mosteiro de Trebnitz [1]. A restrição ao sexo feminino foi um pedido expresso de Henrique. Numa carta datada de 1208, ele explica: “Existem na minha terra três claustros, de três ordens diferentes, todas com representantes do sexo masculino, que podem se recolher para cuidar da salvação de suas almas. Mas, para as mulheres, não existe um claustro. As representantes do sexo feminino também têm o direito de se recolher para expiar seus pecados”.

[...].

Dizem os relatos dos Acta Sanctorum que durante o período de construção de Trebnitz, nenhum condenado à morte pelas barras dos tribunais foi executado. Por sugestão de Edwiges, todos os castigados pela pena máxima receberam indultos e foram deslocados para trabalhar na obra. Ela conseguiu tirar do cadafalso, às vésperas da morte, pessoas condenadas por dívidas ou pequenos furtos. Suas visitas aos presídios eram regulares. Ela levava comida, agasalhos e providenciava a limpeza das roupas sujas. Como as prisões eram escuras, deixava velas e tochas para que os lugares fossem iluminados. Pobres, enfermos e encarcerados estavam descobrindo o caminho do mosteiro de Trebnitz onde, a partir de agora, poderiam contar com o plantão permanente de Edwiges.

Os núcleos das abadias medievais se parecem com pequenas cidades. Em torno delas eram construídas igrejas, bibliotecas e oficinas para a produção e conservação de ferramentas e carroças, estrabarias e cocheiras. O edifício principal estava quase sempre localizado no centro de uma grande propriedade, onde se cultivava trigo, cevada, centeio e cuidava-se de videiras. Em espaços separados da casa, eram criados porcos, galinhas, patos, vacas e cavalos. Além do trabalho pesado, que acontecia até o pôr-do-sol, boa parte do tempo era dedicada à oração e ao canto sacro.

A enfermaria de um mosteiro era um lugar especial e a doença – contagiosa em particular -, uma marca do pecado. As pessoas atingidas pelo estigma da lepra (mal de Hansen), por exemplo, deveriam ser afastadas até a purgação. Ficavam isoladas nas florestas e eram frequentemente molestadas quando apareciam em local público. Quando muito, eram recolhidas por uma embarcação conhecida como Stultifera Navi e levadas para uma ilha deserta. Acreditava-se, então, que as doenças se espalhavam pelo mau hálito que, por sua vez, expressava o resultado dos “pecados da alma”. Na visão de Edwiges, essa situação de isolamento era infamante e representava uma excrescência do ser humano. p. 39.

[...]

O amor sublime

No palácio, Henrique e Conrado já eram meninos crescidos quando outros filhos vieram: Boleslau, Ignês, Sofia e Gertrudes, que foram batizados com os nomes de avós e tias. Os Acta Sanctorum registraram uma controvérsia sobre a ordem correta de nascimento dessas crianças. Em alguns documentos, Gertrudes aparece como a primogênita, seguida por Henrique II. É certo, porém, que após o parto do sexto filho, em 1208, o casal decidira formalizar, ajoelhados diante do bispo Lourenço, os solenes votos de castidade, jurando manter-se em estado de abstinência sexual até o fim da vida. era o que se chamava de “uma vida de continência”. Henrique tinha 42 anos e Edwiges 36. A cerimônia formal, oficiada no domingo da Paixão de 1209, seria acompanhada por um coral de meninos cantando Magnificat, [2], enchendo a catedral de Breslau com sons e acordes majestosos. Sobre essa situação, os Acta Sanctorum registraram o grau de cerimônia entre eles, a partir desse momento:

Por estas razões, Edwiges procurava evitar companhia e as conversas com o marido, para não ficar próxima a ele. Só o procurava quando tinha algum assunto importante a tratar, assunto que dizia respeito às obras de piedade, negócios religiosos ou auxílio aos miseráveis. E mesmo assim, em público ou na igreja, na presença de todos. Era claro que para ela o relacionamento não se oferecia à libidinagem. Quando seu marido estava doente, ela não o visitava sozinha, mas com sua nora Ana (mulher de Henrique) ou outras mulheres.

É fácil perceber que ao educar os filhos na fé cristã, incutindo-lhes um forte sentimento de piedade e apontando-lhes o caminho das virtudes. Edwiges transformava sua casa numa verdadeira igreja. Esse registro dos Acta nos permite conhecer melhor essa devoção:

Durante toda a vida, Edwiges tratou de guardar a maior honestidade em suas palavras e ações, quer nas conversas com Deus ou perante os homens. Ela sempre tratou de conservar a família sob cuidados diretos, principalmente as mulheres. Dos camareiros e outros empregados exigia disciplina e correção. Não queria intimidade com delatores, aqueles que sempre têm duas palavras, como se fossem duas almas que interferem entre si, a alma que vê e a alma que ouve, como o veneno e a mordida de uma serpente. E considerava este tipo de gente instrumento do demônio. p. 42.


___________________

1.Trebnitz – gíria que significa “nada” ou “não preciso de nada”. Uma referência aos votos de abstinência e pobreza. Assim, sempre que perguntavam às freiras do mosteiro se elas precisavam de alguma coisa, elas respondiam apenas: Trebnitz.

2. Canto religioso em forma de hino falando do encontro da Virgem Maria, mãe de Cristo, com sua prima Isabel. Faz parte da obra o Evangelho Segundo Lucas, terceiro livro do Novo Testamento.


Continuação da leitura: TRECHOS DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (3ª PARTE)

17 de outubro de 2024

TRECHOS DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (1ª PARTE)


Livro; Edwiges - A santa libertária; Autor; Toninho Vaz; hagiografia

Capítulo 1

Os milagres da fé

[...].

Quando Edwiges nasceu, em 1174, em Andesh, na região hoje conhecida como Bavária, o mundo estava em ebulição. Para alguns historiadores, a evolução ocorrida nessa época, quando tem início a formação dos Estados europeus (decomposição feudal) e a expansão do comércio e do cristianismo, só pode ser comparada ao processo desencadeado, séculos depois, pela Revolução Industrial e tecnológica. A antiga organização econômica, com pequenas cidades, industrias dispersas e mercados locais, começa a dar lugar a um sistema com outros industriais densamente povoados, produção em grande escala e comércio de âmbito mundial. A Europa se preparava, então, para viver o que alguns historiadores modernos chamam de “a Renascença do século XIII”. p.14

Enquanto a igreja alertava para “o pecado da usura e do lucro excessivo”, a Europa estava condenada a conhecer, em pouco tempo, a figura do mercador ou “intermediário” nas transações comerciais. Em temos históricos, era o surgimento da burguesia como extrato social ativo producente.

No aspecto religioso, o mundo cristão na Idade Média era uma chama viva ameaçando a soberania muçulmana no Oriente, consequência das Sete Cruzadas que tinham como objetivo primário resgatar a cidade de Jerusalém (desde 1174 nas mãos de Saladino, líder muçulmano) e restabelecer a ordem depois do Império Romano. Mesmo em nome de Jesus, e apesar do aspecto contraditório dessa iniciativa, foi grande o derramamento de sangue durante quase duzentos anos.

Ao contrário dos mártires surgidos nos primeiros anos do cristianismo, produtos do período conhecido como de “caça aos cristãos”, Edwiges não se debatia contra o estigma da discriminação religiosa. Sua dor tinha origem no próprio sofrimento pela perda do marido e dos filhos – e na solidariedade aos pobres e desvalidos. Era o que os não-cristãos chamavam de carma (ou Karman, em sânscrito) – sistema cósmico de justiça e definidor das forças que geram o destino. Mulher rica, Edwiges dedicava sua vida a construir hospitais, conventos e manicômios, edificando uma grande obra social, sempre em harmonia com os propósitos do esposo, Henrique I, duque da Silésia, uma mistura equilibrada de cristão e tirano. p.15.

As invasões mongólicas e as batalhas entre os príncipes (na disputa de poder e terras) aconteceram quando Edwiges era adulta e podem ser apontadas como a causa imediata do seu martírio. Enquanto assistia com amargura à morte do marido e dos filhos nos campos de batalha, a beata amenizaria sua dor abraçando a causa dos miseráveis. Para melhor conduzir sua fé, isolou-se no mosteiro de Trebnitz, da Ordem Cistercienses, que durante muito tempo seria administrado por sua filha caçula Gertrudes.

[...].


Capítulo 2

A menina de ouro

[...].

É certo que Edwiges nasceu em berço nobre. Seu pai, Bertholdo III, um católico fervoroso, ostentava vários títulos nobiliárquicos: era duque de Merânia, conde o Tirol e príncipe da Coríntia, além de bisneto de Frederico I, o Barba-roxa, que por sua vez era neto do imperador Otto, o patriarca. O poderoso Barba-roxa foi, durante quarenta anos, a mais importante peça do xadrez imperial germânico, com poderes semelhantes na Itália, onde o acumulou as funções – entre 1155-1190 – com o Sagrado Império Romano.

A mãe de Edwiges, Ignês Rochlethz, de família oriental, também católica, era filha de Dedon V, conde de Rochlethz e marquês de Luzyce (ou Landesberch), também de grandes riquezas e poderes. O nome Andesh, que designa a família de Bertholdo e o castelo na Baviera, aparece pela primeira vez em documentos por volta de 1080.

Quando Edwiges nasceu, em dia e mês desconhecidos de 1174, já encontrou no mundo sete irmãos – quatro homens e três mulheres. Sua chegada foi o desfecho de uma longa semana de expectativa no Castelo de Andesh. Agora, finalmente, a princesa Ignês entrava em trabalho de parto. Havia um clima de excitação no ar. As criadas providenciavam tudo que médicos e parteiras solicitavam, deslizando rápidas pelos corredores. O marido Bertholdo, apesar de experiente, demostrava nervosismo. Os Acta Sanctorum registraram assim esta passagem:

Foram horas de espera. Quando finalmente a porta dos aposentos da princesa se abriu, a parteira-chefe apareceu com o rosto iluminado pela alegria. Houve uma agitação geral. Ela perfilou-se e anunciou, solene:

- A princesa Ignês acaba de ter uma criança, que passa bem.

A mãe também está bem. É uma menina!

Quando a criança foi depositada nos braços da mãe, ganhou um sinal-da-cruz na testa e um beijo na face rosada. p. 19.

Dias depois da cerimônia de batismo, a alegria da família de Bertholdo era compartilhada com a sociedade de Andesh e das regiões vizinhas, numa festa que contou com a presença destacada do arcebispo, uma das maiores autoridades da região. O ponto algo foi o banquete, quando se consumiu muita carne de caça e vinho. As damas de honra e senhoras da nobreza comentavam:

- A criança vai se chamar Edwiges.

[...].


Um retrato de época

A essa altura do século XII, os ensinos católicos representavam a própria vanguarda da elite europeia. A criação da universidade de Paris, em 1150, pelos abades de Saint-Germain-des-Prés, subordinada diretamente ao papa, representava o triunfo da Igreja como centro irradiador de cultura. A iniciativa teve como consequência a fundação da universidade de Oxford, 15 anos depois, por estudantes e professores ingleses que haviam passado pela universidade de Paris. A Igreja se havia transformado em suporte e garantia de uma sociedade da qual ela própria era primeira beneficiária: tudo era cristandade.

Do ponto de vista da educação, era a febre do saber, o privilégio das elites, o poder da informação. Uma febre que atingiria até mesmo a pequena Edwiges, ainda em fase de alfabetização, que passou a considerar a possibilidade de permanecer para sempre no convento de Kitzingen, estudando e consagrando sua vida a Deus. A madre Petrussa, sua principal monitora, quando ouviu a confidência prontamente sugeriu uma reflexão mais profunda, ponderando: “Entregar-se ao serviço de Jesus é uma bela causa, porém, somente Deus sabe qual o melhor lugar para você servi-lo”. É certo, porém, que a partir desses dias – e por toda a adolescência – Edwiges acalentaria o sonho de viver para sempre num mosteiro. p.17.

A rotina no convento e os estudos das obras sagradas, que se intensificaram após a primeira comunhão, fizeram de Edwiges uma menina encantadora, que a todos cativava com sua vivacidade e inteligência. Certa vez, como recebesse regularmente a visita da família, ela comunicou ao pai Bertholdo, laconicamente, em tom de descoberta:

- Papai, aqui me ensinaram que os pobres verdadeiros são os preferidos de Deus.


E assim, na hesitação e na incerteza próprias da idade, ecoou em seus ouvidos o anúncio das Escrituras que diz que Deus está presente nos campos, nas florestas e que seu discurso é voltado para os simples. Desde cedo, levando tudo ao pé da letra, Edwiges começou a procurar do lado de fora do palácio os campos que Deus prestigia com sua presença. E, nisso, ela era obstinada.

Todos comentavam que Edwiges, mesmo sendo uma menina, pensava como uma adulta. Suas virtudes cristãs, manifestadas precocemente como resultado dos exercícios de purificação da alma (auto de piedade), podem e devem ser interpretadas como uma imitação de Deus, algo exemplar enquanto manifestação divina. Ou, como registram os Acta Sanctorum, “ela sempre procurava a pureza da vida inocente, evitando a leviandade e a insolência próprias da idade”.

 Foi na abadia de Kitzingen que Edwiges teria recebido uma revelação divina, por intermédio da irmã Romundes, já velha, cega e doente, que lhe confidenciou:

- O Senhor me revelou que, ao contrário do que você imagina, não será com as grinaldas celestiais das esposas de Cristo que você será coroada, mas com coroa terrena, adornada de ouro e pedras preciosas. E muito pesada, por causa de sua responsabilidade. Lembre-se que Deus estará ao seu lado para aliviar o peso, mas você será uma princesa de verdade.


Edwiges deixou os aposentos da irmã Romundes bastante intrigada, chocada mesmo, acreditando ter ouvido uma sentença capaz de lhe determinar o rumo do próprio futuro. Tudo ficaria mais claro, semanas depois, quando a irmã Berta lhe comunicou que seu pai estava vindo para buscá-la, era hora de voltar para casa. Chegara ao fim um longo e rico período de recolhimento e estudos. Do lado de fora, além dos muros da abadia, o que aguardava Edwiges era um mundo mergulhado em guerras e fanatismo. p. 29. [...].


Capítulo 3

Sinal dos tempos

 O casamento, como era visto e praticado na Idade Média, pode ser simbolizado por um jogo de cartas marcadas. Ou seja, enquanto instituição, o casamento estava a serviço de diversos interesses, inclusive da procriação e do amor. Mas, não foram estes certamente os sentimentos que aproximaram a pequena Edwiges do jovem polonês Henrique I, nessa época apenas duque da Silésia (mais tarde ele seria príncipe da Polônia, sucedendo seu pai, Boleslau). Havia interesses estratégicos nessa união, que simbolizou uma aliança de pacificação na fronteira entre os dois países – as culturas teutônicas e eslava viviam em choque e os casamentos funcionavam como uma espécie conciliação, trégua entre os nobres que defendiam seus patrimônios. Foi Bertholdo quem comunicou à filha, com alguma solenidade, que seu noivo, um jovem de família polonesa recém-cristianizada, estava a caminho de Andesh para conhece-la – e que não seria difícil para ela “simpatizar” como um rapaz com tantas virtudes: valente, forte e rico.

Henrique chegou acompanhado de alguns cavaleiros da sua guarda e foi recebido com festa no palácio. Sua alegria foi maior quando percebeu que Edwiges – além de rica – era bela e formosa. Entre os dotes da moça havia um quesito particularmente importante para o jovem duque, que investia em sua nova prática religiosa: ela era católica fervorosa. E, como havia uma certa urgência nas decisões a serem tomadas, o noivado foi formalizado e concluído em questão de dias, pois tudo havia sido decidido previamente. págs. 31-32.

quando o casamento foi celebrado, em 1186, por Godofredo de Heifenstein, bispo de Wesburgo, Henrique tinha 18 anos e Edwiges, 12. Eles estavam particularmente formosos nesse dia – Henrique com seu traje de nobre, espada reluzente na cintura, e Edwiges no melhor vestido, confeccionado durante dias pelas melhores costureiras. Na cabeça, uma grinalda ornamentada com pedras preciosas em forma de coroa (porém, não era uma coroa), de formato baixo, mais parecida com uma grinalda.

Os convidados para a cerimônia em Andesh foram escolhidos a dedo e representavam a fina flor das aristocracias alemã e polonesa. [...]. Esses mesmos convidados, todos da nobreza, eram testemunhas do empenho das duas famílias em estabelecer uma “união de forças” contra a invasão dos bárbaros, que perseguiam os proprietários de terras e saqueavam suas mansões. O fato de estarem combatendo, na condição de aliados, um inimigo comum ajudava a dissipar antigas mazelas e desavenças entre os príncipes. Em tempo de guerra, era necessário adotar e reconsiderar as estratégias – e o casamento era uma delas.

Para Edwiges, a possibilidade de se afastar da família, depois da experiência de seis anos no mosteiro de Kitzingen, não seria mais um grande sofrimento. Ela estava experiente e podia encarar com alguma naturalidade o fato de, logo após o casamento, ter que se mudar para a Silésia, na Polônia, onde seu jovem marido era o senhor. Dias depois, quando as condições do tempo permitiram, uma pequena comitiva uma pequena comitiva deixava o castelo de Andesh, em carruagens, seguindo em direção ao leste. Uma violenta tempestade de neve, porém, iria intercepta-los no meio do caminho. Eles ficaram abrigados num castelo pertencente ao pai de Henrique, o nobre Boleslau.

O imprevisto iria retardar em alguns dias a chegada do casal ao castelo de Breslau, onde seriam recebidos pelo repicar de sinos e as boas vindas do bispo Siroslau. Depois da bênção na catedral, todos rezaram pedindo que o nobre Henrique I, agora adulto e no poder, tivesse serenidade para dirigir os destinos da pátria, ou seja, da Silésia. p. 33.

[...].

15 de agosto de 2024

Livros Apócrifos de Enoque e Vida e Milagres de São Bento - Download

 

livros de Enoque e São Bento; Download




30 de janeiro de 2024

TRECHOS SELECIONADOS DE ALGUNS CAPÍTULOS: Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl (última parte)

Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl; livros; Evangelhos; Logoterapia; Jesus
Realizando valores atitudinais
 
O enfermo de Betesda (cf. Jo 5,2-15)

Em Jerusalém, perto da porta das Ovelhas, existe uma piscina rodeada por cinco corredores cobertos. Em hebraico a piscina chamava-se Betesda. Muitos doentes ficavam aí deitados: eram cegos, coxos e paralíticos, esperando que a água se movesse (porque um anjo descia de vez em quando e movimentava a água da piscina. O primeiro doente que entrasse na piscina, depois que a água fosse movida, ficava curado de qualquer doença que tivesse).
Aí ficava um homem que estava doente havia trinta e oito anos. Jesus viu o homem deitado e ficou sabendo que estava doente havia muito tempo. Então lhe perguntou: "Você quer ficar curado?"
O doente respondeu: "Senhor, não tenho ninguém que me leve à piscina quando a água está se movendo. Quando vou chegando, outro já entrou na minha frente."
Jesus disse: "Levante-se, pegue sua cama e ande". No mesmo instante, o homem ficou curado, pegou sua cama e começou a andar. Era um dia de sábado. Por isso, as autoridades dos judeus disseram ao homem que tinha sido curado: "Hoje é dia de sábado. A lei não permite que você carregue a cama."
Ele respondeu: "Aquele homem que me curou disse: 'Pegue sua cama e ande'."
Então os dirigentes dos judeus lhe perguntaram: "Quem foi que disse a você para pegar a cama e andar?" O homem que tinha sido curado não sabia quem era, porque Jesus tinha desaparecido no meio das pessoas que estavam reunidas nesse lugar.
Mais tarde, Jesus encontrou aquele homem no Templo e lhe disse: "Você ficou curado. Não peque de novo, para que não lhe aconteça alguma coisa pior."
Então o homem saiu e disse às autoridades dos judeus que tinha sido Jesus quem o havia curado.


A cura do enfermo de Betesda é uma história com inúmeras facetas, mas sua mensagem fundamental remeta a uma nova visão da doença. Enquanto em nossa cultura a tendência é ater-nos aos sintomas, Jesus destacou principalmente a atitude a assumir ante a doença. Na sua visão, a essência da saúde está menos na ausência de sintomas (como nossa cultura tende a defini-la) do que num estado interior de plenitude do qual a saúde física é simples consequência. Esse estado de espírito é independente das condições orgânicas e também independe da ausência de sofrimento. Na verdade, o próprio sofrimento pode contribuir para uma sensação interior de completude e paz. A nossa cultura procura evitar o sofrimento a todo custo, mas a fé do Novo Testamento, desenvolvendo-se a partir da crucificação e da ressurreição, afirma sistematicamente que o sofrimento pode dar origem a um processo incessante de redenção.

Tanto o sofrimento quanto o prazer fazem parte da vida. Corretamente compreendido, o sofrimento contribui muito mais com a vida do que o prazer. Em um dos poemas, Walt Whitman reflete a contribuição das forças de resistência presentes na vida:

Aprendeste lições apenas dos que te admiram, dos que te tratam bem e te abriram caminho? Não aprendeste grandes lições dos que te enfrentaram e disputavam a passagem contigo?

Deste modo semelhante, Robert Browning escreve:

Então, aceita toda rejeição
Que torna áspera a suavidade da terra,
Todo aguilhão que obriga não a deter-se e sentar,
Mas a prosseguir!

Também Frankl reserva um bom espaço ao sofrimento. Também para ele, como para Jung, a tentativa de evitar o sofrimento é uma espécie de padrão neurótico. Frankl escreve:

O sofrimento e as dificuldades fazem parte da vida do mesmo modo que o destino e a morte. Nenhum deles pode ser subtraído à vida sem suprimir-lhe o sentido. Remover as dificuldades, a morte, o destino e o sofrimento significaria despojar a vida de sua forma e estrutura. A vida só adquire forma e estrutura sob os golpes do destino, no paroxismo do sofrimento.

[...]. O cristianismo sempre se empenhou em afastar o sofrimento humano, como comprovam os milhares de hospitais construídos sob auspícios cristãos em todo mundo, mas a saúde física é apenas parte desse esforço. A preocupação maior é com as atitudes, não com os sintomas. De modo semelhante, a abordagem de Frankl dá mais atenção à atitude do que às condições, princípio que se aplica de modo especial aos sintomas físicos. [...]. p. 117. Enquanto a ênfase mais comum no mundo terapêutico hoje parece estar na investigação da relação entre fatores causais e expressão sintomática, a logoterapia questiona a necessidade de sempre encontrar a causa no passado e destaca a importância de trabalhar com as atitudes no presente; a logoterapia acredita que muitos sintomas desaparecem quando há mudança de atitude. [...]. p. 118.

[...].

É importante observar que quando a atenção se volta para as atitudes, não existe situação que não possa ser resolvida de uma forma ou de outra. Frankl gosta de citar as palavras de Goethe: “Não existe situação difícil que não possamos superar, seja agindo ou suportando”. Frankl está convencido de que sempre pode dar alguma ajuda a quem o procura. “Todos podem ser ajudados, se não diretamente, por técnicas psicanalíticas, indiretamente, recebendo orientação para mudar de atitude”. Certamente, deve ter sido com esse espírito que Jesus abordou o enfermo de Betesda. Embora o homem estivesse doente trinta e oito longos anos, não havia motivo para acreditar que sua situação, ou sua atitude, não pudesse mudar.

É evidente que, sozinho, esse homem teria sido incapaz de efetuar qualquer mudança em sua vida. Como a maioria das pessoas, ele se fixava nas condições limitadoras que o envolviam, não nas possibilidades criativas. Para ele, saúde significava apenas reversão dos sintomas físicos da doença. No entanto, ele devia ter alguma coisa que o distinguia dos demais que lá estavam. A história sugere que ele ainda estava tentando. É perfeitamente concebível que Jesus o tenha escolhido porque ele não havia desistido; aparentemente, ele não se resignara completamente como os benefícios secundários da doença. Jesus levantou a questão toda do sentido da sua doença para ele.

A doença não deixa de ter suas compensações. Na verdade, alguns não querem curar-se. É muito possível que o enfermo de Betesda tivesse assumido uma profissão bastante interessante e talvez até mesmo vantajosa, a profissão da doença cujo exercício lhe atraía considerável simpatia e atenção. Lembro-me de um homem que estava totalmente empolgado fazendo pesquisas numa biblioteca pública. Ele mesmo se atribuíra essa tarefa porque o medo de cruzar as ruas praticamente o impossibilitava de assumir um emprego rentável. Ele se ressentia de qualquer esforço para resolver o problema (e, naturalmente, que o obrigasse a trabalhar). Sua resposta à pergunta de Jesus, pelo menos inconscientemente, era: “Não, eu não quero ser curado”. O fato é que ele perdera a coragem de governar sua vida e por isso se recolhera na doença. Fora derrotado pela vida. O que ele realmente necessitava era de ajuda para mobilizar o poder desafiador do espírito humano; ele precisava de ajuda para ousar acreditar que podia encontrar sentido enfrentando a vida, em vez de afastar-se do envolvimento ativo e recolher-se na passividade da vida. p. 120.

[...].

Às vezes, se faz necessária a intervenção direta de uma personalidade forte para mobilizar valores atitudinais. Com o enfermo de Betesda, o estímulo de Jesus consistiu num desafio direto: “Levanta-te, toma o teu leito e anda”, pouco depois seguido pela recomendação “Não peques mais, para que não te suceda algo ainda pior!” (isto é, não foge mais da vida). Quem quer que tenha conhecido em vida o impacto de uma pessoa forte e amorosa que fala com autoridade pode avaliar a resposta imediata do enfermo a Jesus. E se a experiência pessoal do leitor não supre essa demonstração, testemunho suficiente é a história da transformação de uma mulher como Elizabeth Barrett: por intervenção do jovem Robert Browning, ela não só se recuperou de uma doença totalmente incapacitante, mas também passou a desfrutar de vigorosa saúde.


Recuperando a dignidade humana
O endemoninhado geraseno (cf. Mc 5,1-20)

Chegaram à outra margem do mar, à região dos gerasenos. Logo que Jesus desceu do barco, veio ao seu encontro, saído dos túmulos, um homem possesso de um espírito maligno. Tinha nos túmulos a sua morada, e ninguém conseguia prendê-lo, nem mesmo com uma corrente, pois já fora preso muitas vezes com grilhões e correntes, e despedaçara os grilhões e quebrara as correntes; ninguém era capaz de o dominar. Andava sempre, dia e noite, entre os túmulos e pelos montes, a gritar e a ferir-se com pedras. Avistando Jesus ao longe, correu, prostrou-se diante dele e disse em alta voz: “Que tens a ver comigo, ó Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te, por Deus, que não me atormentes!” Efetivamente, Jesus dizia: “Sai desse homem, espírito maligno”.
Em seguida, perguntou-lhe: “Qual é o teu nome?” Respondeu: “O meu nome é Legião, porque somos muitos”. E suplicava-lhe insistentemente que não o expulsasse daquela região.
Ora, ali próximo do monte, andava a pastar uma grande vara de porcos. E os espíritos malignos suplicaram a Jesus: “Manda-nos para os porcos, para entrarmos neles”. Jesus consentiu. Então, os espíritos malignos saíram do homem e entraram nos porcos, e a vara, cerca de uns dois mil, precipitou-se do alto no mar e ali se afogou.
Os guardas dos porcos fugiram e levaram a notícia à cidade e aos campos. As pessoas foram ver o que se passara. Ao chegarem junto de Jesus, viram o possesso sentado, vestido e em perfeito juízo, ele que estivera possuído de uma legião; e ficaram cheias de temor. As testemunhas do acontecimento narraram-lhes o que tinha sucedido ao possesso e o que se passara com os porcos. Então, pediram a Jesus que se retirasse do seu território.
Jesus voltou para o barco e o homem que fora possesso suplicou-lhe que o deixasse andar com Ele. Não lho permitiu. Disse-lhe antes: “Vai para tua casa, para junto dos teus, e conta-lhes tudo o que o Senhor fez por ti e como teve misericórdia de ti”. Ele retirou-se, começou a apregoar na Decápole o que Jesus fizera por ele, e todos se maravilhavam.

O propósito que Jesus tinha em sua mente no caso do endemoninhado era recuperar o senso de dignidade humana. A redescoberta da dignidade do homem é uma das principais conquistas dos nossos tempos. A pensadores existencialistas como Frankl deve-se o mérito de sustentar que, sem desmerecer as contribuições da corrente psicológica segundo o qual o homem é um animal regido pelo instinto, a verdadeira essência do homem está exatamente nas características que o distinguem do animal. Como diz Frankl, concordando com Max Scheler, um animal tem um ambiente, mas o homem tem um mundo. O homem abordado na forma mais adequada de psicoterapia é o homem que possui uma consciência, o homem que toma decisões livres, o homem que aceita responsabilidade pessoal. em suma, é o homem da imagem bíblica, feito “pouco menos do que os anjos, coroado de glória e beleza” (Sl 8,5).

No momento em que é despojado de sua dignidade, o homem adoece. É entre os aposentados que encontramos uma das evidências mais clara dessa verdade. Vivendo numa cultura que tende a identificar importância pessoal com capacidade produtiva, as pessoas aposentadas se sentem inúteis e, consequentemente, esbulhadas de sua dignidade. Com um mínimo de reconhecimento que restitua a dignidade, é surpreendente ver como o organismo físico reage com nova vitalidade que faz o acamado levantar ou que libera o ocupante prematuro da cadeira de rodas. Ou pense no delinquente que teve seu sentido de dignidade espezinhado por uma sociedade indiferente que procura reconhecimento em atitudes antissociais, dirigindo sua raiva contra seus semelhantes. Ou considere a doença que não é orgânica nem social, mas psíquica, a doença da psicose. Aqui, de novo, a dignidade de um ser humano foi ofendida, seu senso de adequação pessoal foi solapado, sua liberdade de ser único foi reprimida. Agora sua raiva não se volta para fora, para o mundo externo, mas contra ele mesmo. Indignado consigo mesmo, em guerra consigo mesmo, ele sente apenas o embate das forças não resolvidas digladiando-se em seu ser, e perde de vista a unidade essencial inerente à dignidade. O único nome que lhe parece fazer sentido é “Legião, porque somos muitos” (Mc 5,9).

[...]. Observei muitas vezes em pacientes mentais a transformação do que parecia agressão raivosa em receptividade ansiosa quando se compreendeu a raiva como medo e se a tratou como tal. Ao se demonstrar claramente que não havia necessidade de ter medo, pedidos de ajuda substituíam o acesso de raiva. [...]. É isso que deve ter acontecido com o endemoninhado geraseno, que teve seus desvarios enfurecidos totalmente abrandados pela abordagem paciente e compreensiva (e por isso corajosa) de Jesus. p. 130.

A mudança que pode ocorrer numa pessoa psicótica na presença de um terapeuta verdadeiro é muito bem ilustrada por Carroll Wise ao observar o psiquiatra Harry Stack Sullivan atuando. Sullivan visitava o Worcester State Hospital, no momento em que um paciente esquizofrênico era apresentado ao corpo clínico. O médico que fazia a apresentação não conseguia estimular o paciente a comunicar-se. Com um dar de ombros resignado, ele se virou para Sullivan, sugerindo que ele fizesse alguma coisa. Wise descreve o que aconteceu:

O primeiro gesto de Sullivan foi aproximar sua cadeira da cadeira do paciente e inclinar-se para a frente, de modo a olhar diretamente para o paciente de forma amigável e calorosa. Para surpresa de todos, o paciente respondia a cada pregunta e comentário feitos pelo Dr. Sullivan. Durante meia hora ou mais eles ficaram conversando, aparentemente alheios à presença de outras pessoas.

É possível que o segredo do sucesso de Sullivan esteja registrado no início do comentário de Wise, o ato de aproximar a cadeira e inclinar-se para a frente. Assim agindo, Sullivan estava dizendo: “Você está diante de uma pessoa com quem vale a pena conversar”. Lembro-me claramente de uma jovem de dezoito anos que, paciente num hospital psiquiátrico, era a personificação da infelicidade. Abordando-a certo dia, como capelão do hospital, procurei iniciar a conversa, mas ela me repeliu irritada.: “Vai embora! Não quero falar contigo!” E para não haver dúvidas, virou a cadeira de frente para a parede. Meu primeiro impulso foi sair, mais então, lembrando que ela estava doente, também virei minha cadeira, fiquei ao lado dela olhando para a parede vazia e comecei a falar. Meia hora depois, quando me levantei para sair, ela pegou o meu braço, me segurou pela manga do casaco e disse: “Não vá embora. Não me deixe sozinha”. A explosão de raiva inicial foi deflagrada pelo medo de não ser aceita, pelo medo de que ninguém quisesse falar com ela.

A história do endemoninhado geraseno parece ser autêntica. Ao perguntar “Qual é o teu nome?”, Jesus estava realmente fazendo o tipo de pergunta que um terapeuta moderno faria. Leslie Weatherhead traduz a pergunta assim: “ ‘Qual é o teu nome?’ equivale à pergunta que um terapeuta moderno faria: ‘Como tudo isso começou? Que poder é esse que te domina?’”. Pode ser muito bem ser que Jesus, procurando isolar-se nas regiões inóspitas dos gerasenos, tenha passado a maior parte da noite analisando com esse homem digno de piedade a história de sua vida segundo os padrões da psicoterapia contemporânea. Weatherhead, por exemplo, acredita que o endemoninhado pode ter sido ajudado a trazer à tona emoções reprimidas havia muito tempo, talvez relacionadas com atrocidades cometidas pelos legionários romanos. Como muitos militares que, em nossa época, sofrem de traumas de guerra, uma catarse emocional violenta às vezes resulta em cura total. p. 132.

Quer os fatores causais da doença tenham sido realmente expostos ou não, a cena final que mostra o “endemoninhado” recuperado para um estado de normalidade, sentado falando com Jesus, sugere a retomada para os relacionamentos interpessoais. Aqui, em Jesus, estava um homem com quem ele podia falar livremente sobre seus sentimentos mais íntimos; aqui estava uma aceitação dele mesmo nas profundezas do seu ser, profundezas que ele não conseguia contemplar sozinho.

Para o endemoninhado, foi importante Jesus mostrar que não o temia. As pessoas tinham medo dele, tanto quando ele estava doente como mais tarde, quando havia recuperado a sanidade. Em seu medo, elas o haviam banido da cidade; e quando ele melhorou, elas ainda tinham dúvida e hesitavam em aceitá-lo. Temeroso dos impulsos que se agitavam descontrolados em seu interior, ele não podia ser ajudado por aqueles que também o temiam, mas somente por alguém imune ao medo, alguém que podia compreendê-lo sem deixar-se levar por ele. E isso Jesus podia fazer, pois ele conhecia as profundezas do homem, o potencial para o bem e para o mal, a intensidade de amores e ódios, a mistura de brandura e hostilidade, a luta entre o egoísmo e altruísmo. [...].

Foi como se Jesus lhe dissesse: “Você não é responsável por seus sentimentos, eles fazem parte da doença que não consegue controlar. Mas você é responsável por sua atitude com relação a eles”. Essa é a abordagem adotada por Frankl. Ele acredita que mesmo o esquizofrênico conserva um resíduo de liberdade para enfrentar a doença.

As próprias manifestações da psicose escondem uma pessoa espiritual real, imune à doença mental. A doença só inibe a possibilidade de comunicar-se com o mundo externo e de auto expressar-se; o núcleo do homem se mantém indestrutível. O esquizofrênico, do mesmo modo que o maníaco-depressivo, conserva um remanescente de liberdade com que pode enfrentar a doença e realizar-se, não só apesar dela, mas por causa dela.

É por isso que Frankl pôde dizer a um jovem artista esquizofrênico:

Não se fixe em perguntas em torno de que eventos patológicos podem estar presentes e de que espécie. Você é uma mente que luta espiritualmente, que cria artisticamente. Além desse ponto está a doença. Deixa-a conosco para que o curemos dela. Não se preocupe com sentimentos estranhos e com a questão do que possam significar. Ignore-os até que o livremos deles. Dedique-se às coisas grandes e maravilhosas que você deve criar.

Com efeito, ao dizer que a atitude diante da vida é a área a se trabalhar, mesmo como o psicótico, Frankl salienta um ponto de vista que Anton Boisen esteve sustentando por décadas. Boise vê os transtornos mentais agudos, inclusive o seu próprio, como sinais de uma luta interior para entender o sentido da vida de modo pessoal. assim, episódios psicóticos agudos, mais do que ser meramente indicadores de transtornos doentios da personalidade, podem ser evidências de uma luta orientada para um renascimento, um esforço para assimilar aspectos da personalidade até então não assimilados num todo unificado e significativo. É como se o reconhecimento de tendências irreconciliáveis exigisse uma interrupção total nos padrões de vida normais até que alguma solução satisfatória seja encontrada.

Se a vida não faz sentido, se parece não haver sentido numa existência pessoal, então a doença emocional preenche o vazio. Frankl tratou um jovem judeu de dezessete anos, estudante do Talmude, que fora vítima das perseguições nazistas, seguidas de dois anos e meio de internação num hospital psiquiátrico. Depois de receber alta, o jovem não conseguia reintegrar-se em nenhum padrão norma de vida, culpando a Deus por fazê-lo diferente. Frankl ajudou-o a ver sua situação sob nova luz.

Quem sabe se não foi bom para você, pois você precisava aproximar-se de si mesmo e finalmente encontrar-se. Você não era antes mais desleixado no seu modo de viver? Agora você se tornou uma personalidade mais séria e ponderada. É inconcebível que, ao longo de dois anos e meio de confinamento, Deus quisesse impor-lhe uma tarefa; talvez o confinamento fosse sua atribuição para aquele período da sua vida.... O estudo do Talmude será mais fácil de agora em diante, mas, apesar dessa facilidade, você penetrará mais profundamente em seu sentido... Pois agora você foi purificado como o ouro e a prata... Através das lágrimas derramadas, a escória foi removida do seu velho eu.

A explicação de Frankl para o tratamento desse jovem estudante foi motivada por um comentário de um psiquiatra visitante. Esse observou que, ao sair do consultório, o garoto estava diferente; ele definitivamente mudara durante a entrevista. O médico observou ainda que Frankl havia tocado o ponto nevrálgico e ajudara o jovem a encontrar um propósito e a ver sua situação em termos de propósito. Em resposta, Dr. Frankl disse:

Eu elevei sua autoestima, não abordando sua triste situação, mas oferecendo um vislumbre do possível sentido que esse jovem precisava realizar a despeito de sua doença mental e dos seus resíduos. Eu não analisei tanto os muros que o separavam da vida e do mundo externo. Também não me preocupei com a origem desses muros, isto é, a psicose, a psicogênese e a psicodinâmica; antes, tentei provocar o paciente a romper esses muros, ajudando-o a transcende-los, e finalmente a satisfazer as exigências de uma vida própria significativa. p. 135.

[...]. Citando outro paciente, um homem cujo ciúme alcançava dimensões paranoicas tamanhas que os amigos temiam que ele pudesse matar a esposa, Frankl observa que quando mulher adoeceu o ciumento marido de repente passou a dedicar-se a ela, cuidando dela com todo carinho. Frankl então comenta:

O que uma pessoa faz com uma psicose, quer ela se submeta e ceda ao que as ilusões psicóticas e as alucinações sussurram ao seu ouvido, por assim dizer, ou que passos ela dá e em que direção sob a influência de uma psicose – tudo isso depende básica e unicamente do núcleo espiritual da personalidade envolvida.

Não é segredo que situações conflitantes são resolvidas quando se faz referência à dimensão espiritual (noética). Mesmo na psicose, uma orientação ao mundo de valores pode exercer uma influência controladora sobre o comportamento. Frankl fala de um homem esquizofrênico de sessenta anos que ouvira vozes durante décadas e que era considerado idiota por todos os que o cercavam. Foi observado, porém, que embora estivesse em geral muito agitado, ele reassumia o controle quando cantava com a irmã num coral. Quando o Dr. Frankl lhe perguntou por que ele se controlava, esperando ouvir que era por causa da irmã a que ele muito amava, o paciente respondeu: “Por amor a Deus!”. Mesmo na doença, ele preservava a consciência da influência de Deus sobre sua vida.

Não foi por acaso que Jesus advertiu o jovem que fora considerado endemoninhado a ver sua vida sob a luz da misericórdia de Deus para com ele. Vemos continuamente no relato do Evangelho como os problemas do homem são considerados resolvidos quando vistos de uma perspectiva sobrenatural. A abordagem logoterapêutica tem por objetivo mais do que uma mudança dos padrões de comportamento: ela é uma reorientação total a uma vida de um espectro mais amplo. Ela consiste em introduzir o conceito de relacionamento num mundo mais amplo do que o mundo em que o homem científico normalmente vive. É ver o homem da perspectiva mais ampla possível. p. 137.

[...].

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