quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Antônio: O santo do amor (Parte 1)

Antônio: Livros; Antônio: O santo do amor parte 1; Fernando Nuno
UMA VOCAÇÃO EM APURO (COMEÇO DE 1220; INVERNO)

E só então me pergunto: Que estou fazendo aqui?
Que faço nesta terra inóspita e insalubre, em que sou estrangeiro, em que o solo duro do deserto e as dunas de areia escaldante começam logo à frente?
Contemplei a Deus, e Ele me contempla. Ouvi o chamado do Senhor. E vim. Ele me trouxe até aqui.
O som das cornetas dos encantadores de serpentes me chega através dos finos orifícios que dão para a Djemaâ, por onde quase não entra luz nem o ar necessário para respirar, mas que parecem amplificar, tantas vezes quantos são eles, os ruídos lá de fora, lá de cima. Da pra aqui ao lado, ouço ainda a modulação da voz dos contadores de histórias misturada aos sons cantados dos vendedores de água e de haxixe, apenas pressinto os confusos ruídos dos dromedários que chegam do deserto ao fundo, além. Sinto fiapos de odores, das comidas que preparam e vendem na Djemaâ, das flores, da água de rosas da pequena vendedora sentada ali fora bem perto, junto às frestas do porão.
Quero morrer de amor por Aquele que morreu de amor por todos os outros homens e mulheres deste mundo que pertence a Ele próprio, pois que além de homem é Deus. Que me dessem a morte por tanto Vos amar, que me torturassem em nome do amor divino que frutificaria na conversão dos ímpios; mas acabar assim, estendido sobre uma tábua áspera, ignorado por aqueles que deviam me perseguir e conhecido apenas pela doença intratável que, parece, irá dar cabo de mim? Queria tanto morrer por Vós, mas a que serve isto agora, qual é Vosso plano, Senhor?
De algo que está aqui dentro saltam as dúvidas, as perguntas, mas sobretudo a resposta necessária que se forma entre os abalos causados pelo mal-estar da doença. Ardo em febre, perco a consciência, recobro os sentidos amparados pelos braços de frei Filipino e frei Leão a oferecer-me o odre de água tépida, o calor os sufoca tanto quanto a mim.
Sinto que posso morrer, mas não na forma que desejava. Longe das ânsias do martírio pela fé, do sacrifício do meu corpo dado em oferenda a um homem como eu mas que também é Deus.
Está cumprida minha missão? Para isto me chamastes? Aceito o jugo que me impusestes, seja feita a Vossa vontade.
Aqui prostrado na tábua rija sobre o solo duro, sem mesmo uma enxerga que me sirva de colchão, a delirar numa língua absurda para os habitantes desta terra estrangeira de que é tão difícil aprender os costumes, vestido com o roto roupão cinzento dos que professam a mesma regra, sinto-me esvair rapidamente, sinto a tristeza dos companheiros assustados.
Pelas pequenas aberturas por onde entram os finos feixes de luz a iluminar o ar abafado e pestilento do porão, penetra agora também, como a pairar sobre a massa de ruídos e de cheiros, o canto do muezim a chamar para a oração aquela gente de outra fé.
Pai, em Vossas mãos entrego meu corpo e minha alma. Alegre estou porque posso ir para junto de Vós. Seja feita a Vossa vontade...
O sonho de morrer em nome do Senhor às mãos dos inimigos, glória almejada por tantos fiéis nesses séculos de furor religioso, está cada vez mais distante para o jovem frade português que atravessou o mar apenas para encontrar o fim de sua breve vida em Mrakch, a cidade que dá nome ao país de que é centro e que depois será conhecida como Marrakech.
Seu corpo frágil está subjugado pela doença, solar ou alimentar que seja. Nos breves intervalos de lucidez, ele começa a se perguntar se é essa realmente a vontade de Deus, se a glória divina, para se manifestar em todo o esplendor e ser ainda mais engrandecida, realmente precisa do sacrifício de sua carne e de seu sangue. Ter chegado ao coração da terra inimiga lhe parece agora, nos raros momentos em que consegue pensar, haver sido jornada vã. Os infiéis agem como se não se dessem conta do perigo que ele e seus companheiros representam, ao que tudo indica consideram inexpressiva e insignificante a sua presença, ou mesmo inexistente.
Que missão, portanto, Deus lhe confiaria, se não essa, do martírio? A morte inglória pela doença? Não haveria coisas mais importantes a fazer, outras missões que ele sequer imaginava, em lugares que nem supunha um dia vir a pisar?

O jovem frade delira. Num lapso de consciência, diz apenas:

- ... Seja feita a Vossa vontade!

Em seguida, balbucia mais algumas palavras que parecem sem sentido, escuta a voz de frei Filipino, companheiro de missão, que o chama pelo nome. Mas o cérebro febril parece ouvir ainda, confundido os apelos do amigo com os de outra voz vinda de algum lugar distante no tempo e no espaço, uma voz querida de mulher a chamar alguém, um menino. As ideias se dissolvem, sobram apenas os nomes, e ele mistura os nomes, os nomes apenas:

- Antônio!

- Fernando! 


OS NOMES FAZEM OS MITOS, OS MITOS FAZEM OS NOMES

Esse menino, que um dia viria a ser conhecido como um dos mais populares e queridos símbolos da cristandade sob o nome de Santo Antônio, chamou-se Fernando Martins de Bulhões e Taveira de Azevedo. Nome comprido, um tanto incomum numa época em que as outras pessoas quase todas só têm um nome próprio, além de um outro, o patronímico, que diz de quem é filho o seu portador. Poderá até nem haver tido tantos nomes, mas foi o maior que ficou para a História e para os livros.
Quando nasce o menino, os pais, Martinho e Teresa, dão-lhe o nome germânico de Fernando. No início do século V, quase oitocentos anos antes da história que estamos contando, os povos chamados “bárbaros” tinham invadido o que restava da parte ocidental do Império Romano. Desses grupos germânicos a conquistar a península Ibérica – e que explicam a maior parte da incidência de pessoas de cabelos e olhos claros até hoje em Portugal e Espanha –, foram os visigodos que prevaleceram, estabelecendo um reino que durou pouco mais de trezentos anos, até a invasão dos árabes, nos século VIII.
Ao tempo em que se inicia a história que estamos contando, decorridos mais de cinco séculos de ocupação muçulmana e começado o processo da Reconquista da península pelos reinos cristãos, a população tomava grande gosto nos nomes próprios de origem germânica, como os terminados em “ando” e “berto”. Fernando, nome que significa guerreiro audaz, pareceu ao pai cavaleiro e à mãe devota – guerra e devoção iam de mãos dadas nesses tempos de Cruzadas – bastante apropriado para o filho. Além do mais, era também o nome de um tio, irmão de Teresa e padre, dos primeiros, da catedral lisboeta ainda em final de construção. Mas talvez nem fosse o significado o importante, e sim o fato de que os nomes preferidos remontavam, como já sabemos, ao reino cristão anterior à ocupação mulçumana, o visigodo, e assim se revestiam do orgulho de pertencer a uma estirpe ibérica pré-moura. Os mouros eram a tribo de árabes (ou de povos arabizados) que, vinda da África, mais especificamente da Mauritânia (daí o nome de mauros, ou mouros, e daí a palavra “moreno” para se referir à pele menos clara), havia conquistado as terras ibéricas aos visigodos.
Ao nome de Fernando seguia-se o patronímico, Martins (que em outros lugares se poderia escrever Martin’s), ou seja, “Martim”, filho de Martim. Ou Martinho – afinal, nesta época em que tão poucos leem e escrevem e até os reis são analfabetos, os nomes flutuam ao sabor de quem os pronuncia. Por isso tanto dá também que tenhamos “Fernão” ou “Fernando”. Como se faz registro escrito das cerimônias religiosas, sendo os clérigos dos conventos quase as únicas pessoas que sabem ler e escrever letras, e como o registro se dá em latim, lá se encontra, nos assentamentos da ordem franciscana, a forma “Fernandus Martini” – consignada quando este menino Fernando Martins, que por enquanto mora e brinca em frente à sé de Lisboa, vier a se tornar, já adulto, seguidor da regra e do exemplo de Francisco de Assis.
Depois, uma vez que nos encontramos entre pessoas de importância na sociedade medieval, além do patronímico Martins, o pai legará a este menino algo não tão comum na época, isto é, um sobrenome próprio, a saber, Bolhom, e, por consequência, o menino se chama Fernando Martins de Bulhões (pois Bolhom, assim como Bulhão, é uma das formas medievais de Bulhões).
Aqui começa o mito a mesclar-se à verdade, sem que possamos deslindar e separar um da outra, de tal modo os séculos e as crenças construídas ao longo deles atravessam e fundem ambas as coisas.
O nome Bulhões vem de Bouillon, a região da Flandres de onde saiu o nobre Godofredo na Primeira Cruzada para tornar-se em 1099 rei de Jerusalém, o santo lugar em que pregou e morreu - e ressuscitou - Jesus Cristo Nosso Senhor.

[...].

O MUNDO TAMBÉM CONSPIRA PARA FORMAR SANTOS

As décadas de 11190 e de 1200 assistem a vários acontecimentos marcantes – não fossem também aquelas em que, na infância, se moldaram os anseios que norteariam a vida do santo mais popular dos países latinos.
Transcendendo as décadas, o mundo europeu vive conflitos que estão na raiz mesma do mundo moderno. Por um lado, o que opõe os cristãos à maré montante do islamismo, traçando uma linha fronteiriça entre duas forças que passa pelo interior da península Ibérica e se estende pelo Mediterrâneo, com eventuais reentrâncias muçulmanas no continente europeu e cristãs no Oriente Próximo.
Dentro do cristianismo, ocorre outra série de conflitos: o primeiro, mais genérico, que opõe a cristandade ocidental católica à oriental ortodoxa. Esse desentendimento ocasionará, durante a adolescência de Fernando Martins, como veremos, a invasão e o saque da capital ortodoxa – Bizâncio, ou Constantinopla – por forças católicas que na verdade supunha-se deverem confrontar o domínio do islã, geograficamente um pouco mais adiante.
Ao mesmo tempo, no interior do mundo católico, assiste-se ao conflito de poder pela supremacia material (ou temporal) entre o papa e o imperador do Sacro Império Romano, que ocupa a porção central do continente (essencialmente a Alemanha, a Áustria e o norte da Itália). O imperador pretende nomear não apenas bispos de seu território como também fazer ou destituir o próprio papa. Já o pontífice de Roma acredita estar num plano de ordens superior ao do Império: Inocêncio III (o papa que virá a aprovar as atividades da ordem franciscana, em que Santo Antônio irá se destacar) declara que não pode correr o risco de coroar um imperador ímpio ou assassino, ou sem condições mentais de exercer o poder.
Por esse lado, vários reis se colocam em estado de sujeição ao papa: soberanos de países distantes entre si como Portugal e a Dinamarca, a Inglaterra e a Hungria, se declaram vassalos do sumo pontífice e lhe enviam tributos.
Outro conflito de grandes dimensões já se prenuncia, entre Inglaterra e França. Em 1152, a duquesa da vasta região da Aquitânia. Alienor (ou Eleonora), tivera anulado seu casamento com o rei da França Luís VII. Já no mesmo ano, ela se casara com o rei inglês Henrique II, levando como dote seu ducado. Essa situação, pela qual o rei da Inglaterra se tornava senhor feudal de uma parcela substancial da França, viria a provocar rusgas intermitentes entre os dois reinos durante séculos. Os ingleses chegarão a dominar quase metade do que virá, séculos mais tarde, a constituir o território francês, e dali a duzentos anos os dois países se encontrarão (ou desencontrarão) em meio à calamitosa Guerra dos Cem Anos.
Não menos importante que essas dissensões é a das seitas heréticas, proliferam durante o período. Por conta dela ocorrerão grandes sanguinolências, que Fernando Martins, quando se tornar frade, tentará suprimir ou minorar com o poder de sua palavra coerente e firme. A atuação pela palavra estará na essência de sua santidade.

A INFÂNCIA EM MUNDO TURBULENTO

Está, assim, posto o quadro em que se desenvolve a infância de Fernando Martins de Bulhões, talhado para se tornar Santo Antônio.
Nasce num país jovem, Portugal, tornado independente apenas cinquenta anos, mais ou menos, antes de seu nascimento, que ocorre em... Não fizemos ainda a data, aí há outra controvérsia.
Seguindo antiga tradição, convencionou-se datar o nascimento do santo do dia festivo da Assunção de Maria, 15 de agosto, devido à intensa devoção que ele teve pela Virgem. Outra tradição firmada pelo tempo dá 1195 como ano de seu nascimento. Assim, em 1995 comemorou-se oficialmente o oitavo centenário de Santo Antônio. No entanto, como essa data não se acerta totalmente bem com a cronologia de sua vida, estudiosos apontam para distintos anos, a partir de 1188.
As medições antropométricas feitas em sua ossada, em 1981, levaram à conclusão de que tratava dos restos de um homem que havia pouco passara dos quarenta anos. Creditaremos, portanto, com boa dose de confiabilidade, a 1189 ser o ano do nascimento de Fernando Martins, ou Santo Antônio.
Com o tempo, como vimos, firmou-se também a fluida crença de que Martinho de Bulhões, seu pai, teria sido prefeito de Lisboa, burguês comerciante rico ou nobre cavaleiro. Seja como for, podemos concluir que seja um fidalgo, que mora com a mulher, Maria Teresa Taveira, e os quatro filhos numa bela casa bem em frente à antiga igreja que os mouros tornaram mesquita e que dom Afonso Henriques resolveu transformar em catedral da cidade, mandando construir torres que lhe acentuam o aspecto de fortificação. Nessa catedral é batizado o menino Fernando Martins, e ainda oito séculos depois a pia batismal em que ele se tornou cristão será venerada e visitada por uma multidão de fiéis.
Levando a estudar, pelo tio padre Fernando, na escola episcopal que a mando de dom Afonso Henriques o bispo de Hastings instalara junto à sé, Fernando Martins aprende a ler na época, tendo como colegas filhos de outros cavaleiros ou homens-bons do reino que vivem na cidade que é o posto avançado do reino. O primeiro conjunto de disciplinas estudadas é uma introdução ao trívio, composto pelas três artes liberais – a gramatica, a retórica e a dialética –, e depois, já bem entrados os alunos na adolescência, é que se envolvem nos princípios das artes liberais complementares – a aritmética, a geometria, a música e a astronomia –, as matérias que constituem o quadrívio. Nas décadas seguintes, com o desenvolvimento progressivo das primeiras universidades, o trívio e o quadrívio virão a constituir, na plenitude, o currículo acadêmico básico.
Aos quinze anos, concluída essa parte da educação, julga-se que seu pai o encaminha para as artes da cavalaria. Poucos têm recursos para possuir um cavalo, e dom Martinho está entre esses. Acima de tudo, o país precisa de soldados. O inimigo está logo ali, do outro lado do Tejo, ameaçador e voltando a flexionar os músculos.
No mesmo ano em que o primeiro rei português tomou Lisboa ao império almorávida, essa dinastia moura sofria importante derrota. Um outro grupo muçulmano, o do almôadas, tendo declarado a “guerra santa” aos almorávidas, conquistou justamente a capital de seu império, a cidade de Marrocos, ou Marrakech.
Com a troca de dinastia, os mouros tornam a ameaçar o que agora é território português: os almôadas vão gradualmente tomando os restos do império almorávida no norte da África e em parte da península Ibérica. Em Portugal, retomam territórios no Alentejo e chegam a fazer investidas bem ao norte de Lisboa, deixando bastante temerosos os que vivem na cidade. E atacam em várias frentes: em 1203, quando Fernando tem seus catorze anos, chegam a conquistar as ilhas Baleares, onde fica Maiorca, ao lado da Catalunha.
Enquanto isso, em Portugal, com a morte de dom Afonso Henriques, seu filho Sancho o sucedera em 1185, o que poderia revitalizar também o ânimo dos ibéricos envolvidos na Reconquista. No entanto, dom Sancho I não tem o mesmo impulso belicoso do pai e, preferindo manter a paz a se aventurar a novas conquistas de território, procura consolidar as instituições do jovem reino. Mesmo assim, o novo rei enfrentará a fase mais difícil desse combate. Antes de mais nada, pacifica as relações com os reinos cristãos vizinhos, Leão e Castela (que, como vimos, trezentos anos depois, já unidos, formarão o que hoje conhecemos como Espanha ao se juntarem, por sua vez, ao reino de Aragão). O rei português percebe que a paz entre os defensores da cruz é indispensável para enfrentar a ofensiva moura renovada. Com efeito, a situação de seu pequeno reino tornava-se delicada: os ataques muçulmanos a regiões ao norte de Lisboa haviam ocorrido em 1190 e 1191, na época do nascimento de Fernando Martins.
Como parte dessa nova maré montante do islamismo, um ex-escravo que se tornou valoroso líder guerreio, de nome Saladino, retoma Jerusalém em 1187, na frente oriental da grande batalha da época. Assim, a Cidade Santa acaba por permanecer sob domínio cristão por apenas cem anos, desde sua conquista pelos francos chefiados por Godofredo de Bulhões.
Outro movimento importante das peças no grande tabuleiro bélico da época se dá também no período em que nasce Santo Antônio, quando em 21 de janeiro de 1189, os reis Filipe Augusto da França e Henrique II da Inglaterra, em conjunto com o sacro imperador romano Frederico Barba-Roxa, convocam tropas para formar a Terceira Cruzada.
Essa cruzada, que irá durar três anos, acaba redundando em fracasso: Barba-Roxa morre afogado na Armênia, no ano seguinte, Ricardo Coração de Leão, que sucede a seu pai Henrique II, ainda conquista a ilha de Chipre e, junto com Filipe Augusto, toma a cidade do Acre, no litoral palestino. Logo em seguida, Filipe é atacado por uma doença e volta para a França; Ricardo chega a tomar a cidade de Jafa, mas acaba derrotado às portas de Jerusalém. Depois de perder também Acre, a cruzada é dada por encerrada. Na volta para a Inglaterra, para remate de males, Ricardo Coração de Leão se torna prisioneiro, em 1193, do sucessor de Frederico Barba-Roxa, o imperador Henrique VI; este pede resgate aos ingleses pela libertação de seu rei. É apenas um exemplo do respeito e da fidelidade às alianças que tem a maioria dos grandes líderes de qualquer época. Filipe Augusto aproveita a ocasião para retomar dos ingleses parte do território francês que se encontra sob domínio da Inglaterra.
Enquanto isso, no nordeste da Europa se estabelece – quando Fernando Martins, pelas nossas contas, tem um ano de idade – a organização dos cavaleiros teutônicos (ou alemães), com o objetivo declarado da defesa da Terra Santa. Essa ordem, no entanto, irá se destacar nos séculos seguintes menos pelas atividades religiosas e mais pelas comerciais e bélicas em sua própria região, que terão seu papel histórico na formação da Alemanha.
Do outro lado, no entanto, a situação não é menos complicada. O sultão Saladino morre em Damasco e começa a guerra civil entre os seus herdeiros pela liderança dos muçulmanos.
Como se vê, é um mundo (não muito diferente, talvez, daquele em que viverão tantas gerações futuras) em que ninguém parece poder confiar em ninguém, pelo menos entre os líderes dos povos, os senhores da guerra, e a paz é artigo raro. Se há alguma coisa visível a contrapor-se ao predomínio do belicismo, é o fato de que cresce o movimento monástico por toda a Europa. Além disso, inicia-se a construção das grandes catedrais e surgem universidades, que constituirão, em ambos os casos, monumentos de perenidade.
E, se nos detivemos ao longo de tantos parágrafos e pincelar as grandes questões históricas desse momento conturbado, é porque seu conhecimento será fundamental para a compreensão da vida e da atuação do santo que no corpo e na alma de Fernando Martins se revelará. Pois, atuando pela paz, além dele, a se por a tantas carnificinas, surgem vários homens e mulheres nessa mesma época que formarão entre os principais santos da religião católica, como São Domingos e São Francisco e Santa Clara de Assis.
Santo Antônio, além de passar por terras muçulmanas, também virá a pisar solo papal, assim como o do Império e o da França das heresias: sua vida e sua vocação serão fortemente moldadas e marcadas por todos esses conflitos.

O CAVALEIRO DESARMADO

Acredita-se que o pai destinasse o jovem adolescente ao ofício das armas. Para tal, dom Martinho de Bulhões providencia o treinamento que fará do filho um cavaleiro sem jaça nem par: tendo em vista desenvolver-lhe a habilidade física, ele contrata os melhores instrutores das artes marciais da tradição, equitação e esgrima – com isso, Fernando deve tornar-se apto a participar sem desaire de qualquer torneio. Os hábitos cortesãos também devem ter sido incutidos no jovem por um mestre das regras, juntamente com o código de honra de um bom cavaleiro – ninguém poderá reprochar-lhe o modo de comportar-se em sociedade. Tudo isso – esse tipo de educação marcial e cortesã – representa para a mentalidade geral, um passo a mais sobre a introdução às matérias do trívio e do quadrívio propiciada pela escola da sé de Lisboa, as práticas prevalecendo sobre as teorias.
Fernando certamente não se afaz aos exercícios extenuantes, em que se pratica o dia inteiro, até a exaustão, o lançamento do dardo na direção de um manequim vestido de mouro. O treino para a luta, vestido de cota de malha, com o capacete a cobrir-lhe a cabeça, tudo tão incômodo, não representa para o rapaz devoto necessariamente algo que equivalha às brincadeiras de infância, em que brincava de lutar com os amigos, com um pedaço de pau, ou investia contra as abóboras do quintal, semelhantes, para ele, às cabeças dos mouros com seus turbantes. O rapaz devoto virá a preferir outro tipo de rigores físicos.
Tampouco sente a mesma emoção da infância quando, com o pai, vai à casa de um vizinho, também homem-bom do rei, mais um dos amigos nobres de dom Martinho. Ele tem na sala um capacete que ainda guarda as marcas do machado mouro, os sabres, as lanças e os estandartes tomados ao inimigo – elementos decorativos que, o rapaz percebe agora, já não lhe excitam da mesma forma a imaginação.
Tornar-se cavaleiro, suceder o pai – seria esse o caminho considerado mais natural. Outra vocação, porém, quase desde a infância foi se delineando em seu íntimo. Fernando quer ser um cavaleiro de outro tipo, de outra ordem. Tornou-se um adolescente reservado e avesso à turbulência muito comum na idade; ganhou o gosto pelo estudo, pelo recolhimento, pelos livros. A religiosidade vem completar essa tendência.
É certo que sua vida não apresenta grandes dificuldades, é querido e tem tudo de que precisa materialmente, mas sente falta de algo mais significativo. A vida na cidade de Lisboa não mais o atrai. A partir dos quinze anos, começa a viver uma grande crise pessoal; próximo de fazer vinte, percebe que nada daquilo lhe agrada inteiramente, pois não se deixa convencer por valores do mundo das aparências. Almeja outras conquistas. Só que não anseia por elas à custa da luta física, da morte do adversário.
Seu coração pende para outro tipo de riqueza, é introspectivo, identificou-se mais com a busca da espiritualidade. Como a quase totalidade das pessoas religiosas, sonha em converter os fiéis de outra crença, mas o uso das armas não o seduz. Pode até morrer defendendo a religião, mas não em combate, não em batalha de força física. Fernando pretende ser um cruzado de outro tipo: o cruzado da palavra, arauto da paz e do convencimento pelo poder da persuasão.
A educação cristã que recebeu em casa desde a primeira infância e, em seguida, na escola da sé, a proximidade com os elementos místicos da vida, apesar de tão intensa quanto a instrução dos princípios bélicos, prevalece nele. Como Antônio diria mais tarde, em um de seus famosos sermões, Fernando não se sentia à vontade na busca de fortuna individual nem apreciava qualidades como o orgulho e a vaidade pessoal. E acrescentaria: onde a riqueza é abundante, esconde-se a lepra da luxúria. Se não resistimos à luxúria, morre tudo o que parece bom. A luxúria jamais diz: basta. Com ela vem a arrogância, a soberba, que é o princípio de todos os pecados. Assim ele evocaria mais tarde com pesar o que viria a considerar os maus hábitos da juventude, e aos quais havia fugido: a ambição, a luxúria e, sobretudo, o orgulho.
Sua ambição, seu ideal de beleza, portanto, como supusemos, estavam em outra parte. Págs. 40-42.


AO ABRIGO DE SANTO AGOSTINHO

Durante suas crises, suas indecisões, o jovem Fernando tinha vindo várias vezes buscar tranquilidade e reforço espiritual nesse local. Já está familiarizado àquele lugar alto, de onde se vê quase toda a cidade e o rio, quando se decide a pedir admissão ao claustro. É um bom termo para os cinco anos críticos decorridos sem saber ao certo o que fazer da vida. O gosto pela ordem e pelo estudo, o anseio de sentir-se mais próximo do sagrado, do divino: tudo isso significa afastar-se do mundo para requerer sua entrada como noviço para o mosteiro agostiniano de São Vicente de Fora. Págs. 47-48.

[...].

TEMPO DE CRUZADAS

Fernando Martins entra para São Vicente de Fora em 1209 ou 1210, com prováveis vinte ou vinte e um anos de idade. Longe do burburinho ligado a sua vida passada, cresce-lhe o desejo de santidade, começa a se formar o caráter que o definirá. Segundo a Legenda assídua, sua primeira biografia, escrita por volta de 1232, o jovem religioso que não quis ser cavaleiro foi para lá, “em cata de disciplina mais austera e de recolhimento mais frutuoso [...] Sua pretensão não era mudar de lugar, mas melhorar os costumes. [...] Sua memória era como biblioteca que sempre tinha ao dispor. Nela arranjava o que lia nas Divinas Escrituras e nas obras dos Santos Padres; e o que nela guardava no momento preciso lhe vinha à lembrança”. Como Santo Antão no deserto, foge para a solidão a fim de melhor ouvir a Deus.
Enquanto Fernando Martins se interna em São Vicente de Fora, em busca de paz e silêncio para estudar e praticar tranquilamente suas devoções, o mundo lá fora vive a ebulição do movimento geral da cristandade para retomar os territórios que lhe haviam sido arrebatados pela maré montante do islamismo durante os cinco séculos anteriores.
Esse movimento – que, deixando de apenas opor resistência ao avanço muçulmano, passa a atacar o inimigo nos lugares que antes eram cristãos, mas agora são seus domínios – deriva seu nome da cruz, tomada então como símbolo maior dos seguidores de Cristo, e será conhecido como Cruzadas.
A base teórica ou legal das Cruzadas é o Édito de Tessalonica, promulgado em 397, que definiu como oficialmente cristãs as terras que faziam parte do Império Romano. Portanto, a ideia inicial das Cruzadas, e seu fundamento legal, é recuperar terras que se considera indevidamente ocupadas por outras fés, principalmente a muçulmana – como a península Ibérica, mas em especial a região em que viveu o Senhor Jesus Cristo, a Terra Santa, na Palestina.
Ao entrar para o mosteiro Agostiniano, Fernando Martins passa a fazer parte de um grupo de pessoas que, por sua vez, compõe uma rede ainda maior de clérigos espalhados pelo continente. Esses clérigos compartilham informações durante as constantes viagens de estudo ou de peregrinação que empreendem. Vários dos cônegos de São Vicente de Fora já estiveram em Paris, Bolonha ou Roma, em jornadas que contribuem para a manutenção da unidade da doutrina religiosa. Se é verdade que muitas das futilidades do mundo exterior atravessam as paredes monásticas e dominam as preocupações de vários internos, também são muitas e acaloradas as discussões sobre o que acontece no ambiente lá fora, no terreno político-religioso.
As notícias das convulsões do mundo, como tantas outras que chegam pelos monges itinerantes, certamente se discutem acaloradamente nos mosteiros, a provocar as almas mais inflamadas. Alguns almejam a glória do martírio, relembrando os tempos dos primeiros cristãos sob o Império Romano, não têm medo de morrer em nome de Deus às mãos dos inimigos da cristandade para com seu próprio sangue irrigar e fortalecer a fé; outros, ao contrário, o que desejam é exterminar os infiéis, também para revigorar a fé com o sangue – só que, nesse caso, o dos adversários. E nessa dualidade as grandes religiões se parecem. Pág. 52-54.

[...]


Referência

Nuno, Fernando. Antônio: O santo do amor. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.



Link para a continuação do post: Antônio: O santo do amor (PARTE 2)

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