29 de outubro de 2025

TRECHO DO LIVRO: EDWIGES - A SANTA LIBERTÁRIA (FINAL)

Livro; Edwiges - A santa libertária; Toninho Vaz; Evangelhos
As chagas reproduziram as dores do calvário que ela cultivava como um jardim de flores. Muito antes do primeiro sinal, Edwiges surpreenderia a todos pedindo que lhe trouxessem frei Mateus, nessa época seu confessor. Ela queria receber a extrema-unção [7]. Irmã Adelaide reagiu prontamente:

Como, minha senhora, pode ferir nossos corações pedindo a extrema-unção se a senhora está bem de saúde? Esse sacramento é para aqueles que estão próximos da morte.

Edwiges respondeu com serenidade:


Caríssima Adelaide, convém considerar que com o Sacramento da Unção os espíritos cristãos armam-se com armaduras espirituais contra as forças do mal. Por isso ele deve ser recebido com suma devoção pelos fiéis. Temo que, agravando-se a doença, eu não esteja mais em condições de receber o Sacramento com a devoção que ele merece. Quero estar bem preparada para ir ao encontro do Senhor Jesus.

 A historiadora Geneviève D’Haucourt explica o ritual:

Quando a morte se aproxima, o doente prepara-se para ela como para um ato religioso, o mais importante de sua vida, visto que ele vai fixar seu destino eterno. Nessa hora fatal, o cristão na Idade Média rememora sua vida e purifica-se de todos os seus erros através de uma confissão geral. O doente chama então o notário ou o cura e faz seu testamento: “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.”

No caso de Edwiges, que já havia doado seus bens materiais ao mosteiro, havia apenas uma formalidade a cumprir de ordem espiritual: a extrema-unção. Com esta providência tomada, estaria encerrada sua missão na terra. [...]. p. 77

[...].

Quem estava no quarto participava das preces seguindo a orientação de um monge responsável pela alegoria – que deve ser entendida, neste contexto, como o método de pensar medieval. Assim, podemos relacionar como alegoria o temor ou o respeito ao crucifixo (ícone), a fé incomensurável na justiça divina e o significado das trevas como cenário do inferno. O que significa dizer que a representação do mundo para eles era toda simbólica, tudo sempre agregava um valor a mais do que apenas sua significação material e literal. Edwiges, sempre sensível, permaneceu serena durante toda a cerimônia, vestindo seu hábito branco da Ordem Cisterciense. E mais: na intimidade dos seus aposentos, como segredo exclusivo para Adelaide e a filha Gertrudes, dizia ter recebido uma visão celeste, uma revelação de que seus dias estavam contados. Ela trazia dentro de si, oculta e anestesiada pela blindagem espiritual, uma doença grave e fatal que vinha lhe consumindo as energias. Seu tratamento, prescrito e acompanhado pelos médicos, previa o uso de ervas, bálsamo, sementes e raízes aplicados em forma de infusão, óleo ou pomada. [8].

[...].

Um aspecto curioso do calvário de Edwiges, em Trebnitz, se deve à discussão prévia, encabeçada pela filha Gertrudes, sobre o local onde a mãe deveria ser sepultada. É possível mesmo que o assunto tenha sido apresentado pela própria Edwiges, que publicamente mantinha uma forte convicção: “Eu quero ser sepultada num cemitério comum.”

Talvez, para qualquer outra pessoa, este desejo explícito não pudesse ser levado a sério, mas, tratando-se de Edwiges, tal anúncio soava como uma sentença perturbadora. Afinal, todos sabiam que suas palavras nunca foram despropositados. Sempre revelavam uma intenção segunda, mais profunda, longe das falsas aparências ou da humildade cabotina. Edwiges era, por assim dizer, uma entidade em missão radical na vida. Apesar disso, haveria forte resistência da filha:

“Minha mãe, queremos lhe oferecer um lugar ao lado do sepulcro de nosso pai, Henrique. Aqui nesta igreja em casa.”

Ela recusou:

“Se for absolutamente necessário que eu seja sepultada na igreja, não coloquem meu corpo no túmulo de seu pai. Ficamos tanto tempo separados de leito que não quero estar legada a alguém de quem, por amor à castidade, resolvi ficar separada em vida.”

A filha retrucou:

“Então, mãe, mandarei sepultá-la com seu filho Henrique.”

Edwiges ponderou, messiânica:

“Não quero ninguém como companheiro de túmulo. Se for para sepultar-me na igreja, que seja diante do altar de São João Evangelista.”

Ela havia escolhido um altar da igreja de São Bartolomeu Apóstolo, onde existiam diversas sepulturas de crianças, seus netos e sobrinhos, que lhe invocavam pureza e inocência. Por fim, a filha Gertrudes sugeriu a ela, uma sepultura diante do altar de São Pedro, [...]. Por fim, exaurida, Edwiges, que tinha consciência da sua importância como líder espiritual, preferiu apenas profetizar:

“Se fizerem isso, mais tarde irão se arrepender pelo incômodo que minha sepultura vai causar.”


Em Nome do Pai

Informações colhidas posteriormente junto às freiras de Trebnitz e ao monge Jacinto indicam que Edwiges percorreu um longo calvário antes de morrer. Talvez mais de um ano, tempo suficiente para consolidar a fama do mosteiro como um lugar de peregrinação e romaria. Falava-se com entusiasmo dos milagres realizados pela santa em nome de Deus: cegos que voltavam a enxergar, mortos que ressuscitavam, aleijados que recebiam a cura e presos que ganhavam liberdade. Todos queriam vê-la, tocá-la...

Em 8 de setembro, dia da Natividade de Nossa Senhora, todas as freiras do mosteiro estavam fora para participar da solenidade. Apenas a devota Catarina ficou junto a Edwiges, quando houve o que se chamou de “aparecimento dos santos”, um convite para o “eterno banquete celestial na pátria bem-aventurada do Céu”. Catarina disse ter ouvido, dos lábios de Edwiges, as seguintes palavras:

“Bem-vindas minhas Santa Maria Madalena, Santa Catarina, Santa Tecla, Santa Úrsula...”

Foi uma conversa quase inaudível, quando Edwiges pronunciou outros nomes de santas e mártires que não foram registrados. Era como se ela estivesse recebendo uma comissão de frente celestial, encarregada de lhe dar as boas-vindas. Subitamente, da mesma forma que as luzes apareceram, elas se apagaram, e a visão terminou. Assim foi registrado.

Um fenômeno idêntico aconteceria durante uma segunda visita das irmãs Pinosa e Benedita, no dia de São Mateus, 21 de setembro. Edwiges, a certa altura conversa, pediu para elas se ajoelharam e rezarem; “ou vocês não estão vendo Santa Maria Madalena e Santa Catarina?”. p. 81.

[...].


O dia da criação

Na manhã de 15 de outubro de 1243 (no calendário bizantino, 1244), Edwiges recebeu a comunhão e pediu que lhe cobrissem a cabeça com o véu de sua sobrinha Isabel (Santa Isabel), anunciando aos presentes:

“Hoje eu vou para a casa do meu Pai”.

[...].

Perto do meio-dia, Ana seria anunciada e entraria no quarto chorando e abraçando a sogra, que tão bem compreendia e admirava. Ana era sincera nos seus sentimentos quando fez um apelo desesperado:

“A senhora não pode morrer agora. O que vaio ser da Silésia sem a sua presença? Estamos precisando da sua orientação.”

Edwiges respondeu com calma:

“De agora em diante caberá a você ser a mãe da nossa pátria.”

Nesse momento, Edwiges pareceu querer erguer-se na cama, tentando se apoiar sobre os cotovelos. Em seguida, deixou-se cair suavemente, sem muita agitação. Estava acabado. A santa havia morrido, aos 69 anos. Sua filha Gertrudes fechou-lhes os olhos. Os sinos da abadia começaram a repicar e um forte cheiro de incenso e mirra invadiu o ambiente. p. 84.

O biógrafo latino de Edwiges, autor das legendas, escreveu:

A beata Edwiges se foi deste mundo no Ano da Graça de 1243, por volta da hora das vésperas – conhecida também por hora canônica, o cair da tarde, quando Vênus (Vesper, em latim) costuma aparecer. E se transferiu assim para as delícias do Céu e para celebrar com todos o interminável repouso do sábado. 

[...]

Nas palavras do padre Montanhese, biógrafo brasileiro:

A notícia da morte da santa correu célere por todo o país. O luto era geral. Eles tinham perdido não um governante, mas sim uma mãe. Todos tinham certeza que Edwiges já estava junto a Deus, no Céu, atuando como a grande intercessora que sempre foi. O que aconteceria depois pode ser comparado a uma chuva de milagres. De todas as partes ouvia-se falar de curas miraculosas envolvendo as doenças mais perversas. Os endividados eram perdoados e salvos do perigo de morte. Houve até mesmo caos de mortos que retornaram à vida. p. 86.

O enterro aconteceria – malgrado os desejos de Edwiges – na igreja do mosteiro de Trebnitz, no mesmo salão onde estavam os restos mortais do marido Henrique e do filho Conrado. O túmulo dela ficaria à direita do altar e o de Henrique em frente. Porém, como ela havia previsto, as monjas iriam se arrepender dessa decisão. As multidões que visitavam o túmulo – e nos primeiros anos as romarias aconteceriam de forma tumultuada – acabaram com o silêncio do retiro. Em pouco tempo, Trebnitz se tornou um ponto de intensa peregrinação. [9]. Não haveria mais tranquilidade nem mesmo para a simplicidade das orações.


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7. Um dos sete sacramentos da Igreja Católica. Sacramento: sinal sagrado instituído por Jesus Cristo pra distribuição da salvação divina àqueles que, recebendo-o, fazem uma profissão de fé. Espécie de bênção aos doentes com um óleo próprio, o óleo dos enfermos. Além da extrema-unção, os outros sacramentos são: batismo, crisma (ou confirmação), eucaristia, penitência (ou confissão), ordem e matrimônio.

8. Outras ervas e sementes usadas como remédios nessas receitas: menta, louro, gengibre, limão, calêndula, camomila, Artemísia e pimentas. No caso de Edwiges, sabe-se que os médicos aplicavam nas feridas uma pomada à base de ervas, pimentas e bálsamo, sendo que as resinas eram utilizadas como amálgama para atingir a textura ideal. No caso dos expectorantes e descongestionantes, quase sempre feitos com menta, eucalipto e hortelã, o amálgama era parafina, que ajudava a moldar a massa aromática como uma bola.

9. O mosteiro de Trebnitz, depois de sobreviver a diversos incêndios e depredações ao longo dos anos – inclusive durante a Guerra dos Trina Anos, em 1648 –, foi desativado em 1810, com a morte de Dominica von Giller, sua abadessa. Parte do edifício seria vendida para dar lugar a uma fábrica de roupas. Atualmente, uma ala abriga a Casa das Irmãs de São Carlos, que administra o hospital conhecido por Trebnitz. A igreja ainda existe os túmulos de Henrique e Edwiges também.  

 

 

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