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segunda-feira, 3 de abril de 2023

TRECHOS SELECIONADOS DE ALGUNS CAPÍTULOS: Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl (2ª Parte)

 

Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl; livro; Jesus
3. Preenchendo o vazio existencial

A MULHER SAMARITANA (cf. Jo 4,4-27)

Tinha de atravessar a Samaria.
Chegou, pois, a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto do terreno que Jacó tinha dado ao seu filho José. Ficava ali o poço de Jacó. Então Jesus, cansado da caminhada, sentou-se, sem mais, na borda do poço. Era por volta do meio-dia. Entretanto, chegou certa mulher samaritana para tirar água. Disse-lhe Jesus: “Dá-me de beber”. Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos. Disse-lhe então a samaritana: “Como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber a mim que sou samaritana? “É que os judeus não se dão bem com os samaritanos. Respondeu-lhe Jesus: “Se conhecesses o dom que Deus tem para dar e quem é que te diz: 'dá-me de beber', tu é que lhe pedirias, e Ele havia de dar-te água viva!” Disse-lhe a mulher: “Senhor, não tens sequer um balde e o poço é fundo... Onde consegues, então, a água viva? Porventura és mais do que o nosso patriarca Jacob, que nos deu este poço donde beberam ele, os seus filhos e os seus rebanhos?” Replicou-lhe Jesus: “Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede; Mas, quem beber da água que Eu lhe der, nunca mais terá sede: a água que Eu lhe der há de tornar-se nele em fonte de água que dá a vida eterna”. Disse-lhe a mulher: “Senhor, dá-me dessa água, para eu não ter sede, nem ter de vir cá tirá-la”. Respondeu-lhe Jesus: “Vai, chama o teu marido e volta cá”.
A mulher retorquiu-lhe: “Eu não tenho marido”. Declarou-lhe Jesus: “Disseste bem: 'não tenho marido',
Pois tiveste cinco e o que tens agora não é teu marido. Nisto falaste verdade”. Disse-lhe a mulher: “Senhor, vejo que és um profeta! Os nossos antepassados adoraram a Deus neste monte, e vós dizeis que o lugar onde se deve adorar está em Jerusalém”. Jesus declarou-lhe: “Mulher, acredita em mim: chegou a hora em que, nem neste monte, nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. Mas chega a hora, e é já em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são assim os adoradores que o Pai pretende. Deus é espírito; por isso, os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade”. Disse-lhe a mulher: “Eu sei que o Messias, que é chamado Cristo, está para vir. Quando vier, há de fazer-nos saber todas as coisas”. Jesus respondeu-lhe: “Sou Eu, que estou a falar contigo”. Nisto chegaram os seus discípulos e ficaram admirados de Ele estar a falar com uma mulher. Mas nenhum perguntou: 'Que procuras?', ou: 'De que estás a falar com ela?'


A história da mulher samaritana junto ao poço é a história de toda pessoa cuja vida se caracteriza por um vazio interior, por um vácuo espiritual. Para Frankl, a necessidade humana primordial é preencher esse vazio, encontrar um sentido pessoal para a vida. Todas as demais necessidades, seja a de satisfazer a fome ou de saciar o apetite sexual, seja a de alcançar status ou poder são secundárias com relação à busca fundamental de sentido.

A partir do momento em que o homem encontra e se agarra ao sentido da vida, sua capacidade de suportar tribulações se torna praticamente infinita. Durante os anos que passou nos campos de concentração, Frankl observou que aqueles que não conseguiam sobreviver aos rigores da vida confinada eram, em geral, os que haviam perdido toda consciência de um sentido da vida. “O prisioneiro que perdia sua fé no futuro – o seu futuro – estava condenado”. A afirmação de Nietzsche corrobora a convicção de Frankl: “Quem tem um porquê viver pode suportar quase qualquer como”. p. 58.

[...].

Muitos casos de longevidade podem ser atribuídos a uma forte consciência do sentido da vida. O grande poeta alemão Goethe viveu apenas dois meses após completar a segunda metade da sua obra-prima, Fausto, morrendo aos oitenta e três anos. Escrevendo sobre ele, Frankl diz: “Eu diria que, biologicamente, ele viveu os últimos sete anos de sua vida além dos seus recursos. Seus dias já estavam contados, mas ele viveu até concluir sua obra e realizar o seu sentido de vida”. Praticamente todos nós conhecemos o definhamento físico que pode afetar um homem aparentemente saudável depois da aposentadoria. Sem trabalho, sem o sentido que uma missão a cumprir proporciona, praticamente não há motivo para continuar vivendo. p. 59.

 

Sem dúvida, objetivos secundários se tornam às vezes objetivos principais. A fome, por exemplo, pode transformar-se numa necessidade absoluta. Mas Frankl esclarece que um objetivo secundário só se torna principal nos casos em que a busca de sentido deixa de ser o ponto de referência ou é abandonada. Refutando o argumento freudiano de que, sob condições de miséria, o instinto não satisfeito assume a precedência sobre todos os demais, Frankl diz: “Nos campos de concentração, testemunhamos o contrário; vimos que, diante de uma situação idêntica, um homem degenerava enquanto outro alcançava praticamente um estado de santidade”. Objetivos secundários se tornam objetivos principais quando a busca de sentido foi abandonada, deixando um vazio em seu lugar. Na tentativa de preencher o vazio, objetivos inapropriados para o homem assumem a prioridade. Essa era a situação da mulher samaritana junto ao poço de Jacó. Págs. 59 – 60.

A samaritana apresenta um quadro vívido do que Frankl chama de vazio existencial. A rotina monótona e sem sentido da sua vida está expressa graficamente no apelo espontâneo que ela dirigiu a Jesus quando ele rompeu suas defesas externas: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem tenha de vir mais aqui para tirá-la”. O sentido mias exato do texto grego poderia ser expresso assim: “Dá-me dessa água para que eu não precise mais vir, dia após dia, e fazer esse trabalho penoso e maçante de tirar água na rotina sem sentido da existência cotidiana”. O ritual dos afazeres diários só lhe trazia aborrecimentos e enfado porque ela perdera toda consciência de sentido em sua vida.

Todo terapeuta contemporâneo pode atestar que a experiência do vazio existencial é bem comum. Num comentário de grande perspicácia, a psicóloga Edith Weiss-Kopf-Joelson diz que a psicanálise atual não tem uma classificação clara para o “vazio existencial”. Ela observa que, na época de Freud, os padrões neuróticos classificavam-se em categorias bem distintas: histeria (transformar problemas emocionais em sintomas físicos), obsessões e compulsões (tornar-se obsessivo com uma ideia ou sentir-se compelido a praticar um determinado ato) e fobias (medos descabidos ou infundados). Atualmente, porém, os sintomas mais comuns não se enquadram em nenhuma dessas síndromes, mas se caracterizam por uma sensação de vazio, por uma sensação de falta de sentido, pela monotonia da vida cotidiana e pela instabilidade dos valores. Págs. 60 – 61.  

A exemplo de Frankl, devemos observar que essa sensação de estar perdido no universo não é uma doença em sentido patológico (isto é, anormal). O vazio existencial não descreve tanto uma doença, mas uma condição que muitas vezes está presente onde não existe nenhuma patologia. Evidentemente, o vazio existencial pode também estar onde há doença, e, nesses casos, deve ser detectado e tratado simultaneamente a outros sintomas de caráter mais anormal. Mas de modo geral, a sensação de falta de finalidade na vida é uma característica de quem está física e mentalmente bem, mas espiritualmente doente. Recusar-se a admitir o vazio existencial pelo que ele realmente é, uma perda da consciência de sentido, e querer tratá-lo sem referência ao mundo dos valores é cair na falácia comum do psicologismo que considera questões de valor apenas como mecanismos de defesa secundários e não como preocupações conscientes absolutamente legítimas. Uma das pacientes de Frankl comentou, certa vez, como seu interesse pela vida espiritual fora ridicularizado por terapeutas ao longo dos anos:

Por que tenho vergonha de tudo o que diz respeito à religião? Por que tudo me parece constrangedor e motivo de zombaria? Bem, eu sei exatamente por que me envergonho das minhas necessidades religiosas. O princípio básico do tratamento psicológico a que me submeti durante 27 anos, adotado por outros médicos e clínicas, sempre foi que esses anseios espirituais são especulações absurdas, próprias de solteironas; só o que se vê e ouve é importante, todo o resto é bobagem, criado por traumas, ou é apenas uma fuga para a doença (para escapar da vida). Assim, quando eu falava da minha necessidade de Deus, sempre temia que voltassem a me prender com a camisa de força. Todos os tratamentos até agora fracassaram. p. 62.

[...].

A abordagem direta de Jesus à mulher samaritana e sua imoralidade nos lembra que alguns problemas humanos simplesmente resultam de ações irresponsáveis e não devem ser explicados por interpretações psicodinâmicas. p. 63. [...]. Mostrar a essa mulher a inutilidade que representa procurar a felicidade através da satisfação do prazer sexual foi um aspecto importante do ministério de Jesus voltado a ela. Sabendo que ela tentara preencher o vazio existencial com a busca de prazer, Jesus não hesitou em levantar o problema. Como no caso do filho pródigo, se Jesus podia ajudá-la a tomar consciência, ela poderia tomar consciência de que a realização pessoal através da busca do prazer é invariavelmente um beco sem saída. O prazer não resulta da sua busca, mas da satisfação de preencher o lugar responsável que cabe a cada um na vida. p. 64.

[...].

[...]. Diferentemente da resposta a que ela estava habituada, Jesus não reagiu defensivamente. Ele aceitou a mulher e sua atitude defensiva sem revidar na mesma moeda. Ele se recusou a rejeitá-la como ela o rejeitou; mas também não permitiu que ela ditasse os termos da relação entre eles. Recusando-se a afastar-se dela e da sua situação difícil, ele no entanto, acolheu o tema da conversa que lhe foi oferecido, redirecionou-o para uma área de relevância pessoal para ela e relacionou a necessidade dela à dimensão mais ampla que incluía Deus. A implicação era muito clara; o único caminho para uma vida com sentido verdadeiro para ela (“água viva”) era esclarecer o problema moral que impossibilitava um relacionamento verdadeiro tanto com seus semelhantes como com Deus. Págs. 65 – 66.

[...].

[...]. A aceitação de um comportamento destrutivo é apenas “pseudopermissividade” e, na realidade, opõe-se aos seus melhores interesses do aconselhado. A reação da samaritana soa verdadeira. Em vez de rejeitar o confronto posto por Jesus, ela aplaude sua profunda compreensão da situação de vida dela, inclusive esquecendo-se de terminar a tarefa que a levava até o poço, retirar água, em consequência de sua aflição perante o novo e severo que foi obrigada a dirigir a si mesma. A melhor prova possível da eficácia do ministério de Jesus para ela é o convite que ela faz aos habitantes do lugar a irem ao encontro de Jesus. Ela queria ajuda para chegar a outros aspectos da sua vida que não tinham sentido. Ela precisava de ajuda para aprender que a vida, orientada a diferentes objetivos, podia adquirir sentido. Págs. 66 – 67.

 

4. Realizando o “eu” no compromisso responsável

O FARISEU SIMÃO (cf. Lc 7, 36-50)

Um fariseu convidou-o para comer consigo. Entrou em casa do fariseu, e pôs-se à mesa.
Ora certa mulher, conhecida naquela cidade como pecadora, ao saber que Ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume.
Colocando-se por detrás dele e chorando, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas; enxugava-os com os cabelos e beijava-os, ungindo-os com perfume.
Vendo isto, o fariseu que o convidara disse para consigo: “Se este homem fosse profeta, saberia quem é e de que espécie é a mulher que lhe está a tocar, porque é uma pecadora!” Então, Jesus disse-lhe: “Simão, tenho uma coisa para te dizer”. “Fala, Mestre” - respondeu ele.
“Um credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos denários e o outro cinquenta. Não tendo eles com que pagar, perdoou aos dois. Qual deles o amará mais?”
Simão respondeu: “Aquele a quem perdoou mais, creio eu”. Jesus disse-lhe: “Julgaste bem”. E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: “Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; ela, porém, banhou-me os pés com as suas lágrimas e enxugou-os com os seus cabelos. Não me deste um ósculo; mas ela, desde que entrou, não deixou de beijar-me os pés.
Não me ungiste a cabeça com óleo, e ela ungiu-me os pés com perfume. Por isso, digo-te que lhe são perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas àquele a quem pouco se perdoa pouco ama”. Depois, disse à mulher: “Os teus pecados estão perdoados”. Começaram, então, os convivas a dizer entre si: “Quem é este que até perdoa os pecados?” E Jesus disse à mulher: “A tua fé te salvou. Vai em paz”.

O fariseu Simão é um bom exemplo de um homem que nunca chegou a um entendimento, de fato, consigo mesmo. Complacente em sua moralidade, não via a necessidade do perdão em sua própria vida, e, por isso, como destaca a parábola nesse incidente, pouco conhecia a respeito do amor. Jesus expôs a questão de forma bem suscinta: “Aquele a quem pouco foi perdoado mostra pouco amor”. Empenhado em realizar-se através da obediência literal à lei religiosa, Simão estava demasiadamente envolvido na busca do seu próprio modo de viver correto, para abrir espaço em sua vida a outras pessoas. Nem Jesus nem a mulher que fora pecadora receberam mais do que uma atenção superficial, pois ele estava inteiramente voltado à realização de si mesmo através da lei.

Há, sem dúvida, uma escola de pensamento para a qual a realização do eu é o objetivo supremo da existência humana, o que em certo sento é verdade. As pessoas mais felizes são aquelas que realizaram suas potencialidades. Já vimos como uma vida não vivida, como capacidade não desenvolvidas podem tornar-se destrutivas. Admitimos a validade da posição que enfatiza a necessidade de tirar proveito máximo das capacidades de que fomos dotados, e concordamos com a visão segundo a qual o desenvolvimento de personalidade multifacetada é uma das formas mais apropriadas de extrair o máximo da vida. [...]. p. 82.

Dá-se muito ênfase, no mundo terapêutico, ao processo que consiste em desembaraçar os fios emaranhados que resultam em conflitos internos, impedindo assim a realização do eu. Muito se pode dizer a favor do princípio da homeostase, que consiste em atender aos apelos conflitantes do id, do ego, e do superego, de modo que a personalidade não se fragmente em consequência de distúrbios internos, mas consiga funcionar sem conflitos indevidos. Quando Sullivan fala da euforia como objetivo da vida, está se referindo a esse estado livre de tensões em que o ego, supostamente, está livre para seguir qualquer direção escolhida sem ser detido por problemas pessoais não resolvidos ou por necessidades neuróticos não satisfeitas. O conceito de paz de espírito tem o mesmo objetivo de eliminar as ansiedades quem mantêm a personalidade desestruturada e incapaz de mover-se em qualquer sentido. Págs. 82 – 83.

[...]. Com efeito, o sentido mias completo de paz de espírito só é, em geral, vivido após o cumprimento bem-sucedido de uma missão, uma missão que orientou o seu executor para longe dele mesmo e em direção a alguma outra coisa maior do que ele mesmo. A verdadeira paz de espírito provém não de uma situação distensa, mas da finalização de uma tarefa geradora de tensões. Contrariamente ao modo de pensar popular predominante, o estado distenso de tranquilidade e prazer leva com mais frequência à frustração de um vazio existencial do que a uma paz de espírito verdadeira. De modo similar, a autorrealização, como objetivo em si mesma, raramente é alcançada. Frankl observa que “a tensão neurótica depois da ‘felicidade’ no amor leva, precisamente por causa da tensão envolvida, à ‘infelicidade’”. Desse modo, é raro alcançar-se a autorrealização quando procurada diretamente; como a felicidade, ela surge como subproduto. [...].

Simão, como os fariseus que ele representava, era um bom homem, no sentido geralmente aceito do termo. De fato, em sua observância estrita da lei, era tão bom a ponto de não simpatizar com outros que eram menos rígidos em suas práticas religiosas. Sua preocupação com sua própria moralidade, transformada em fim em si mesma, cegava-o para o objetivo que poderia tê-lo ajudado de fato a realizar suas potencialidades. Preocupado em tentar evitar o pecado, ele não simpatizava com os que não eram fortes como ele. Sua condenação tácita, mas evidente, da mulher pecadora denunciou um descontentamento básico em sua vida, uma insatisfação que nascia da falta de relacionamentos com as pessoas. A situação desagradável em que se viu envolvido foi semelhante à vivida mais tarde por Saulo de Tarso, que só conseguiu desembaraçar-se dela efetuando uma mudança radical em seu modo de viver. Págs. 84 – 85.

O problema com que Simão se deparou é o que qualquer pessoa enfrenta quando se deixa absorver pelo pensamento sobre si mesma. A preocupação com o próprio progresso, a sensibilidade exacerbada com relação ao próprio avanço impede a pessoa de efetuar o progresso desejado. Veja, por exemplo, como a atenção voltada ao desejo de dormir dificulta pegar-se no sono, ou como a determinação de manter-se desperto estimula o sono. Ou observe como o artista demasiado consciente da produção artística que está criando descobre que essa autoconsciência dificulta seu melhor desempenho.

[...].

[...]. Frankl diz muito claramente: “O interesse primordial do homem não está na realização do seu eu, mas na realização de valores e na realização das potencialidades de sentido, que devem ser encontradas no mundo e não dentro de si mesmo ou dentro da própria psique como um sistema fechado”. A sensação da verdadeira realização procede não dos esforços mais vigorosos por autorrealização, mas do contato mais significativo como o mundo objetivo, externo. Entende-se melhor esse contato com o mundo exterior em termos de responsabilidade pessoal. p. 86. [...]. Frankl aplica frequentemente o princípio da ampliação de interesses. Ao escrever para uma enfermeira que se desesperava porque sua doença a impedia de realizar o trabalho que tanto a satisfazia, ele relata:


Procurei ajudá-la a compreender que trabalhar oito, dez ou sabe Deus quantas horas por dia não é lá grande coisa. Muitas pessoas fazem isso. Mas ser tão ansioso por trabalhar como ela era e ser incapaz de trabalhar, e mesmo assim não desesperar seria um feito que poucos conseguiriam realizar. E então perguntou-lhe: “Na realidade, você não está sendo injusta com todos os milhares de pessoas doentes a quem você dedicou sua vida como enfermeira? Você não está sendo injusta agindo, agora, como se a vida de uma pessoa doente ou incurável – isto é, de alguém incapaz de trabalhar – não tivesse sentido?”. Eu disse: “Se você se desespera nessa situação, você se comporta como se o sentido da nossa vida consistisse em ter condições de trabalhar nisso ou naquilo muitas horas por dia, mas agindo desse modo você tira de todas as pessoas doentes e incuráveis o direito de viver e a justificativa da existência delas”. Págs. 89 – 90.


Ao trabalhar com um grupo de pessoas com mais de 65 anos, é corriqueiro descobrir que todos os tipos de doenças preenchem rapidamente o vácuo de horas vazias depois da aposentadoria, a não ser que novos interesses sejam descobertos ou que antigos sejam retomados. Na fé cristã, o conceito de compromisso sempre foi primordial. A pessoa encontra sua vida não se apegando a ela, não a guardando com ciúme, mas dando-a livremente, perdendo-a no interesse de outros. E o paradoxo exposto por Jesus se revela inevitavelmente verdadeiro: “Aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” (Mt 16,25).

[...].

É esse interesse por valores mais fundamentais que caracteriza a logoterapia de Frankl. O aspecto mais distintivo da logoterapia está em sua insistência numa responsabilidade pessoal que significa muito mais do que o desenvolvimento do potencial pessoal; é um senso de responsabilidade que reconhece diferentes valores e escolhe uma relação com os valores mais elevados. Nessa ênfase, Frankl sublinha a abordagem característica de Jesus.

Não há passagem melhor do que esta, do encontro de Simão com Jesus, para identificar o método peculiar com que Jesus interpelava os fariseus. Registros em outras passagens mostram com clareza que Jesus denunciava abertamente o modo de vida farisaico: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que limpais o exterior do copo e do prato, mas por dentro estais cheios de rapina e de intemperança!” (Mt 23,25). Não obstante, esse encontro com Simão é mais coerente com o teor geral do ministério de Jesus. Ele usou a circunstância imediata, do momento, para expor o problema na vida de Simão, apresentando a Simão, com delicadeza, mas também com firmeza, os fatos do seu comportamento. Primeiro, Jesus deixou que Simão julgasse a si mesmo, em seguida, Jesus apresentou sua visão. E para a mulher pecadora tanto na casa de Simão como na praça do templo, suas palavras foram as mesmas: “O teu arrependimento purifica o teu passado. Encara o futuro com novas forças, não mais movida pela compulsão a pecar, mas livre para viver uma vida de responsabilidade e de compromisso”. Págs. 91 – 92.


Link para a continuação do post: TRECHOS SELECIONADOS DE ALGUNS CAPÍTULOS: Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl (3ª Parte)



quarta-feira, 15 de março de 2023

TRECHOS SELECIONADOS DE ALGUNS CAPÍTULOS: Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl (1ª Parte)

 

Jesus e a Logoterapia: O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl; livro; Jesus; Evangelho; Logoterapia

1. PRESCRUTANDO A PSICOLOGIA DAS ALTURAS 


A TENTAÇÃO DE JESUS (cf. Lc 4, 1-13)

Cheio do Espírito Santo, Jesus retirou-se do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, onde esteve durante quarenta dias, e era tentado pelo diabo. Não comeu nada durante esses dias e, quando eles terminaram, sentiu fome. Disse-lhe o diabo: “Se és Filho de Deus, diz a esta pedra que se transforme em pão”. Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: Nem só de pão vive o homem”. Levando-o a um lugar alto, o diabo mostrou-lhe, num instante, todos os reinos do universo e disse-lhe: “Dar-te-ei todo este poderio e a sua glória, porque me foi entregue e dou-o a quem me aprouver. Se te prostrares diante de mim, tudo será teu”. Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto”. Em seguida, conduziu-o a Jerusalém, colocou-o sobre o pináculo do templo e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo, pois está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu respeito, a fim de que eles te guardem; E também: Hão de levar-te nas suas mãos, com receio de que firas o teu pé nalguma pedra”. Disse-lhe Jesus: “Não tentarás ao Senhor, teu Deus”. Tendo esgotado toda a espécie de tentação, o diabo retirou-se de junto dele, até um certo tempo.

 

O relato das tentações de Jesus nos oferece uma descrição clássica da luta interna que se trava na alma de cada homem. A experiência da tentação não só ilustra os princípios que Jesus escolheu para reger sua vida; ela também revela as escolhas básicas com que cada homem se depara à medida que deixa o abrigo da família e entra na arena da vida. Estabelecidas algumas diretrizes fundamentais nas principais áreas de escolha, as decisões cotidianas passam a depender de princípios, não de caprichos pessoais. Definidos previamente os princípios básicos segundo os quais viverá sua vida, o indivíduo não precisa mais se angustiar com cada decisão nem deixar sua conduta à mercê do puro acaso. Com efeito, característica distintiva da maturidade é a recusa a agir puramente ao sabor da ocasião; a decisão atinente a cada ato é tomada em referência a um princípio.

Uma insistência básica da fé cristã é que o homem é livre para tomar suas decisões conscientemente. Sem desconsiderar a influência de fatores inconscientes em operação na vida da pessoa, o cristianismo afirma, contudo, de modo inequívoco, que o resultado final da aventura do homem na vida depende de sua resposta pessoal. Sejam quais forem as experiências nefastas que o acometam, o fator decisivo não está nas condições, mas na resposta pessoal a essas condições. O psiquiatra Viktor E. Frankl descreve o homem religioso como aquele que diz “sim” à vida, como o homem que, apesar de tudo o que a vida lhe impõe, ainda encara sua existência com a convicção básica de que vale a pena viver. Págs. 17 - 18.

 

[...].

 

Seguramente, a visão de vida centrada em Deus foi agudamente contestada pelo reducionismo de uma visão científica que reduz tudo às suas origens primordiais e às suas formas mais primitivas. Mas a tarefa mesma da religião é mergulhar abaixo do nível dos fatos e explorar as dimensões mais profundas da vida. Um dos principais méritos de se estudar o registro bíblico é que nele, de modos simbólicos, as experiências mais profundas do homem, incluindo seus esforços para abrir canais entre ele próprio e o mundo sobrenatural, são apresentadas em forma gráfica. A imagem bíblica persistente do homem respondendo ao apelo de Deus é o modo dramático de dizer que a consciência é mais do que uma advertência introjetada dos pais; é também o homem se prontificar a realizar o potencial pleno para o qual foi criado. Como diz Frankl, “A consciência é a voz da transcendência; o homem ouve a voz, mas não a origina”. Págs. 19 - 20.

 

[...].

 

[...]. As tentações de Jesus ilustram vividamente que o princípio unificador das muitas facetas da sua personalidade foi o fato de ele relacionar todas as questões da vida à dimensão que incluía Deus. Quando procuramos compreender a origem do seu poder, descobrimos que ele estava em sua intimidade com Deus. Quando procuramos compreender a paciência do seu ministério, descobrimos que ela estava em sua constante busca de Deus. Quando procuramos compreender a coragem da sua fraqueza, descobrimos que ela estava em sua consciência da presença do Espírito de Deus em sua vida. Ainda mais do que isso, porém, a experiência das tentações deixa claro para nós o caminho pelo qual ele chegou ao senso inabalável de direção que caracterizou todo o seu ministério. p. 21.

 

A primeira tentação que assediou Jesus, e que importuna a todos nós, foi a de deixar prevalecer o princípio do prazer, a tentação de satisfazer os desejos sensuais imediatos sem levar em consideração objetivos de longo prazo. Para ver como essa tentação é comum, basta apenas lembrar como a fome extrema tende a anular todos os outros interesses, como uma dor aguda tende a dissipar todas as outras preocupações, como extremos inesperados de temperatura tendem a reduzir a eficiência humana. A tendência comum é satisfazer as solicitações urgentes do corpo para livrar-se da fome (física ou sexual), da dor ou do frio. No entanto, provas as mais diversas demonstram, de forma cristalina, que a lei da autopreservação não é a única que vigora entre os homens. Onde há compromisso com uma missão de vida, onde existe lealdade a um valor supremo, ali se revela falsa a perspectiva que insiste em sustentar que todos os valores superiores dependem da satisfação prévia dos impulsos mais primitivos.

 [...].

Quando Frankl afirma que nos campos havia “muitos exemplos – frequentemente heroicos – que provavam que mesmo nos campos os homens... não precisavam se submeter às leis internas aparentemente onipotentes da deformação psíquica”, ele está salientando o que Dorothy Thompson escreveu depois de visitar Dachau e de estudar os históricos de vida dos internos: “Os que continuavam sendo homens, em condições da mais desumana brutalidade, serviam a uma imagem e a um ideal muito superiores às realizações mais elevadas do homem”. Frankl descreve como a falta de vínculos como valores espirituais resultava na manifestação de características bestiais:


O responsável último pelo estado do eu interior do prisioneiro não eram tanto as causas psicofísicas enumeradas, e sim o resultado de uma decisão livre. Observações psicológicas dos prisioneiros mostram que apenas os que permitiam que sua lealdade interior ao seu eu moral e espiritual diminuísse acabavam caindo vítimas das influências aviltantes do campo. Conquanto a hipótese freudiana da onipresença do princípio do prazer apresente evidências óbvias que lhe dão sustentação em alguns casos, ela é apenas uma hipótese, e ainda uma hipótese baseada em evidências seletivas. O homem simplesmente não vive de pão apenas; nem sua necessidade de pão precisa ser satisfeita antes que ele atenda às necessidades de outros. Na verdade o preceito “Primeiro sobreviver, depois filosofar” perdeu sua validade nos campos. Frankl é muito claro ao dizer que “o que valia no campo era exatamente o contrário;... filosofar antes, morrer depois”. Quando o modo de viver do homem inclui invariavelmente a Deus, a expectativa futura assume maior importância do que o desejo imediato. Pág. 23.


[...].

Assim, a primeira decisão que Jesus tomou foi a de renunciar à gratificação imediata em proveito de objetivos futuros mais valiosos. Ele definiria sua linha de ação não de acordo como o que parecia impor-se como o melhor para ele no momento, mas segundo o que os objetivos de longo prazo exigiam, conforme vistos à luz da vontade de Deus para ele. Nem sempre lhe era fácil ver a vontade de Deus, fato que fica muito claro na oração angustiante no Jardim do Getsêmani, cujas palavras finais são, “Contudo, não a minha vontade, mas a tua seja feita!” (Lc 22,42).

A segunda tentação enfrentada por Jesus e com a qual todos nos defrontamos é a de deixar que o princípio do poder predomine; colocar a ambição pessoal por posição e prestígio acima de tudo. Essa tendência chega a ser tão imperiosa que Alfred Adler viu nela a motivação básica da vida. Ao enfatizar a importância da autoestima, vários analistas da cultura (Sullivan, Horney, Fromm) demonstram como é comum as pessoas lutarem por posições elevadas movidas pela ânsia de poder. Ninguém está totalmente livre da tentação de aproveitar-se de outros para fortalecer sua posição. 

Não há como negar a necessidade de uma autoestima saudável. Como a psicanálise nos ajudou a compreender, é óbvio que antes de amar o próximo precisamos amar a nós mesmos “apropriadamente”. Uma relação positiva como o próximo brota de um sentimento positivo a respeito do próprio eu. Estamos começando a entender que, em vez de condenar uma pessoa por uma atitude sua repreensível, precisamos compreender que o que ela precisa realmente é descobrir um valor maior em si mesma. É lamentável constatar que, em nossa sociedade impessoal, muitas pessoas com baixa autoestima só encontram aceitação de fato numa relação formal com um terapeuta, da qual extraem uma avaliação mais positiva de si mesmas.

 [...]. Por fim, alcança-se a posição, não correndo atrás dela, mas merecendo-a. Quando buscamos o poder diretamente, seja curvando-nos diante do diabo ou dando o lugar de honra aos objetivos demoníacos da riqueza, da posição ou da fama, o resultado é evidente. A ânsia de poder leva à subserviência ao demônio. Em termos de lealdades divididas, é alto demais o custo da submissão dos padrões superiores aos inferiores, da repressão dos relacionamentos pessoais para proveito do sucesso organizacional. Em última análise, como salienta Frankl repetidamente, a ânsia de poder nunca é satisfeita diretamente, e só encontra sua realização como subproduto. A autoestima nasce de “avaliações refletidas” positivas dos que foram ajudados. Essa é a resposta que Jesus dá ao diabo e que é mais especificada no decorrer do seu ministério: a posição de honra cabe a quem serve. (ver especificamente Jo 13, 3-16). [...].

A terceira tentação, sofrida por Jesus e também por nós, é a de eximir-se da responsabilidade pessoal. Mas insidiosa do que as duas anteriores, essa tentação assumiu proporções alarmantes, especialmente na cultura estadunidense, que é tão absolutamente dominada pelo determinismo psicológico e sociológico. Sem dúvida, a forma específica que a tentação assume para nós tem pouco a ver com lançar-se do pináculo do templo, mas o princípio é igualmente válido. Para nós, a tendência específica é justificar o nosso comportamento presente considerando-o consequência de um trauma lamentável sofrido na infância, de um relacionamento conturbado com os pais ou da pouca atenção recebida. p. 26

 A psicologia profunda nos ajudou a perceber que só podemos compreender o presente em termos do passado. O que agora precisamos, no entanto, é dar-nos conta de que o futuro não depende do passado, mas é moldado por nossa decisão consciente no “agora”. [...]. O homem é responsável por suas escolhas. De fato, o traço mais característico do ser humano é a responsabilidade. Além de todas as influências condicionantes, a vida do homem desenrola-se à medida que ele exerce sua liberdade de tomar decisões conscientes. Jesus não transferia para Deus, para seus pais ou para terceiros a responsabilidade que, por direito, lhe cabia. Ele exerceu se direito humano de aceitar a responsabilidade pelas consequências de suas ações, e ao fazê-lo ele também definiu o padrão para a nossa vida. Págs. 26 - 27.

[...]. No geral, o mundo terapêutico mantém-se indiferente com relação ao modo como o paciente vê sua vida. A insistência de Frankl em se assumir responsabilidade pelo que se é e pelo que se pode vir a ser, então, é uma mudança oportuna com relação a grande parte do determinismo que o mundo da terapia ensinou, [...]. É necessário, então, que uma psicologia das profundezas seja suplementada com uma psicologia das alturas que não desconsidere as dimensões abismais escuras do ser do homem, mas que também reconheça as altitudes que ele pode alcançar. Sem por um momento sequer reduzir a importância do esforço de Freud de trazer à tona as forças demoníacas que se ocultam no inconsciente, eu gostaria de dizer, ecoando Frankl, que existe também um inconsciente espiritual e que o homem só encontra sua orientação básica para a vida à medida que se entende com essas duas dimensões. [...]. Com muita propriedade, Frankl assim se expressa: em vez de dizer que “o homem é um animal sublimado, podemos demonstrar que ele esconde dentro de si um anjo reprimido”.

É na atmosfera de uma psicologia das alturas que termina a experiência das tentações. De que forma melhor o resultado poderia ser registrado do que dizendo que “os anjos de Deus se aproximaram e puseram-se a servi-lo” (Mt 4,11)? Quando foram tomadas decisões fundamentais sobre uma orientação de vida, quando foi escolhida uma direção que mantém a vida da pessoa aberta a Deus e, por consequência, aos valores supremos da vida, uma sensação de contentamento sereno preenche o coração, uma sensação tão diferente da angústia da luta espiritual quanto são os anjos diferentes do diabo. p. 29.

 

 2. ACIONANDO O PODER DESAFIADOR DO ESPÍRITO HUMANO 


ZAQUEU (cf. Lc 19, 1-10)

Tendo entrado em Jericó, Jesus atravessava a cidade.

Vivia ali um homem rico, chamado Zaqueu, que era chefe de cobradores de impostos. Procurava ver Jesus e não podia, por causa da multidão, pois era de pequena estatura. Correndo à frente, subiu a um sicómoro para o ver, porque Ele devia passar por ali.

Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe: Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casaEle desceu imediatamente e acolheu Jesus, cheio de alegria. Ao verem aquilo, murmuravam todos entre si, dizendo que tinha ido hospedar-se em casa de um pecador.

Zaqueu, de pé, disse ao Senhor: Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais.

Jesus disse-lhe: Hoje veio a salvação a esta casa, porque ele também é um filho de Abraão; pois, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido.


De todos os relatos sobre os encontros de Jesus com seus contemporâneos, nenhum é mais límpido e minucioso do que o episódio envolvendo Zaqueu. Deparamo-nos com a história atemporal de uma luta por posição que resultou em alienação pessoal e em afastamento da comunidade. E nos deparamos com uma amostra de como a pessoa alienada pode reintegrar-se à comunidade. De muitas formas, Zaqueu tipifica o homem contemporâneo de maneira muito mais decisiva do que talvez queiramos admitir. A sensação de alienação ou isolamento é normalmente percebida como marca característica da vida urbana contemporânea; basta consultar as estatísticas relativas ao número de pessoas que moram sozinhas em um ou dois cômodos para perceber como isso é verdade. [...]. Págs. 31 - 32.

[...].

Vendo Zaqueu sob essa luz, como um homem excluído dos relacionamentos, impelido à posição do inimigo por sempre deparar-se com a rejeição em suas tentativas de alcançar uma posição adequada na comunidade, começamos a entender o verdadeiro significado do episódio do Evangelho.  Sim, Zaqueu é descrito como uma pessoa de estatura baixa, fato que ele procura compensar subindo na árvore. Num sentido mais profundo, porém, ele estava no “alto de uma árvore”, ou seja, não conseguia encontrar as pessoas no nível do chão, numa relação face a face. [...]. p. 35.

Uma contribuição importante da psicologia profunda consiste em revelar a relação existente entre causa e efeito. Todo comportamento pressupõe um motivo, e esse motivo muitas vezes oculto no início, pode ser descoberto. A explicação da sequência causa-efeito tanto no nível consciente como inconsciente contribuiu imensamente para uma efetiva compreensão do homem. Por exemplo, aceitar, como aceita Harry Stack Sullivan, que cada indivíduo desenvolve sua “operação de segurança” específica, suas próprias formas de defesa do seu senso de autoestima e de seus sentimentos de significado pessoal, é começar a entender que a ação, apesar de inexplicável, está imbuída de um propósito. No caso de Zaqueu, o motivo pra assumir a odiada posição de coletor de impostos, para se tornar um lacaio do inimigo estrangeiro, passa a fazer sentido à luz do conceito de “operação de segurança”. Não conseguindo atuar de modo significativo no seio da própria comunidade, sendo levada a se sentir alienada e isolada da comunidade, a pessoa encontrará uma posição de prestígio em formas opostas à comunidade que a rejeitou inicialmente. Págs. 35 - 36.

 [...]. A pessoa se torna seletivamente desatenta às oportunidades de tentar alguma outra alternativa. Daí que a operação de segurança tende a se tornar cada vez mais o método habitual de reação. Como o padrão habitual de comportamento foi originalmente uma manobra de defesa e proteção, arriscar uma mudança é expor o eu, tornar-se vulnerável à angústia pessoal. Daí que a mudança de comportamento originalmente escolhida como mecanismo de defesa se torna cada vez mais difícil. Assim Zaqueu, tentando proteger uma autoestima vacilante, abandona seu próprio povo e resolveu arriscar-se com os odiados conquistadores. Mas ele não era feliz. Preso em sua própria operação de segurança, ainda alimentava a esperança de poder mudar sua situação de algum modo. Incapaz de ir ao encontro de Jesus, que despertara sua curiosidade, ele só podia tentar vê-lo a distância. [...]. p. 36.

[...].

O próprio Zaqueu podia mudar. Criticado como “colaboracionista”, traidor da própria comunidade, envolvido em transações desonestas e ardilosas, embaraçado em emaranhados físicos, psicológicos e sociológicos, não obstante ele podia mudar. [...]. É a partir do mundo da psiquiatria que redescobrimos a chave para a mudança tão vividamente demonstrada nesse encontro de Jesus com Zaqueu. Mais importante do que qualquer teoria, mais básica do qualquer técnica, mais significativa do que qualquer ensinamento é a relação de pessoa a pessoa existente entre dois indivíduos. Quer seja interpretada em termos de transferência e contratransferência ou de aumento da autoestima através de avaliações refletidas positivas ou de percepção mais realista do eu conforme refletida e definida por um terapeuta empático, a chave para a mudança está claramente na qualidade do relacionamento com outra pessoa. Além da aceitação compreensiva implícita em todo aconselhamento responsável, com fator que torna a relação eficaz está claramente demonstrado no incidente de Zaqueu: Jesus se arrisca de modo tão sincero e verdadeiro que Zaqueu encontra coragem para assumir o risco de mudar a si mesmo. Págs. 40 - 41. 

[...]

[...]. Para “enfrentar” a crítica da multidão, Jesus se põe na relação íntima de um convidado à casa de Zaqueu. Nesse simples ato, ele põe de lado toda prerrogativa de autoridade e se torna aquele em quem Zaqueu confia para cuidar de sua necessidade humana de renovação e de sua necessidade espiritual de companhia. Ignorando totalmente a multidão, ele demonstra, nesse modo ativo e específico, sua aceitação do forasteiro. A transformação que se segue é apenas o resultado esperado da aceitação demonstrada nessa grande profundidade. O convite de Jesus supunha que essa mudança podia ocorrer. Não era uma aceitação que se baseava na mudança, mas que antecipava a mudança. [...]. A máxima de Goethe, seguidamente citada por Frankl, diz muito claramente: “Considerando as pessoas como elas são, nós a pioramos. Tratando-as como se fossem o que deveriam ser, as ajudamos a se tornar o que são capazes de ser”. Era assim, invariavelmente, que Jesus agia com as pessoas. Págs. 42 - 43. 

[...].

[...] a promessa de reparação pelos males praticados deixa claro que o primeiro passo para uma mudança já foi dado, a aceitação da responsabilidade pessoal para moldar padrões de relações futuras. Que a mudança se completou está implícito nas palavras finais de Jesus. Salvação significa uma nova espécie de relação que inclui o humano e o sobrenatural. A salvação (ou “Saúde” na tradução de Tyndale) só pode ser completa quando as relações são positivas tanto na dimensão humana, de homem para homem, quanto na dimensão sobre-humana, de homem para Deus. Uma mudança só é verdadeira quando chega a todos os níveis, conciliando o homem não só com seus semelhantes, mas também com Deus. p. 43. [...].


Link para a continuação do post: TRECHOS SELECIONADOS DE ALGUNS CAPÍTULOS: Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl (2ª Parte)


domingo, 7 de abril de 2019

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: VIRTUDES TEOLOGAIS

Virtudes Teologais
EXPOSTA JÁ A TEORIA GERAL sobre as virtudes cristãs ou infusas e a correspondente aos dons do Espírito Santo, que as complementam elevando-as à sua máxima perfeição, vamos estudar agora cada uma das principais virtudes em seus três grupos fundamentais: teologais, cardeais, e derivadas destas últimas.
Comecemos, naturalmente, pelas virtudes teologais, que são, de longe, as mais importantes de todas as virtudes infusas.
Como se sabe, as virtudes teologais são unicamente três: fé, esperança e caridade. São as virtudes mais importantes da vida cristã, base e fundamento de todas as demais. Seu ofício é unir-nos intimamente a Deus como Verdade infinita (a fé), como suprema Bem-aventurança para nós mesmos (a esperança) e como sumo Bem em si mesmo (a caridade). São as únicas que estão em relação imediata com Deus, todas as demais se referem imediatamente a coisas distintas de Deus. Daí a suprema excelência das virtudes teologais sobre todas as demais.

I. A VIRTUDE DA FÉ
1. NOÇÃO

Em geral, se entende por fé o assentimento ou aceitação de um testemunho pela autoridade de que o dá. Se quem dá esse testemunho é um homem e cremos nele pela confiança que merece enquanto pessoa, temos fé humana; se quem dá esse testemunho é Deus e cremos n’Ele por sua autoridade divina, que não pode enganar-se nem nos enganar, temos a fé divina. Esta última é a primeira virtude teologal que estamos examinando.
Segundo estas noções, a fé teologal ou sobrenatural pode ser definida mais detalhadamente com a seguinte definição do Concílio Vaticano I:
“A Igreja a professa (a fé) como virtude sobrenatural, pela qual, sob inspiração de Deus e com a ajuda da graça, cremos ser verdade o que ele revela, não devido à verdade intrínseca das coisas conhecidas pela luz natural da razão, mas em virtude da autoridade do próprio Deus revelante, o qual não pode enganar-se nem enganar” (D 1789/ DH 3008).
Estudemos palavra por palavra esta magnífica definição, que nos dará um conhecimento cabal e muito completo do que é a virtude teologal da fé.
Virtude sobrenatural, quer dizer, infusa por Deus em nossa alma (entendimento), que rebaixa e transcende infinitamente toda a ordem natural, e seria impossível, por isso mesmo, adquiri-la somente pelas forças naturais.
Pela qual, sob inspiração de Deus e com ajuda da graça. Seria de todo impossível a fé sem a prévia noção e ajuda da graça; porque sendo, como acabamos de dizer, uma virtude sobrenatural que rebaixa e transcende infinitamente toda a ordem natural, o homem não poderia alcançá-la jamais abandonado às suas próprias forças naturais; é absolutamente necessário que a graça o mova e ajude a produzir o ato sobrenatural da fé. De onde seguem claramente duas coisas muito importantes: a) que a fé é um dom de Deus, totalmente gratuito e imerecido por parte dos do homem
e b) que os argumentos apologéticos que demonstram a credibilidade da religião católica podem nos conduzir até as portas da fé, mas não podem nos dar a fé, que em si mesma é uma realidade sobrenatural, que só pode ser efeito da livre doação de Deus mediante sua divina graça.
Cremos. É o ato próprio da fé. A fé não vê nada, se limita a crê-lo pela autoridade de quem dá o testemunho. Como se diz em teologia, a fé é de non visis, e aquele que exigisse a clara visão ou evidência intrínseca das verdades da fé demonstram não ter a menor ideia da natureza mesma da fé. A fé é incompatível com a visão, e por isso desaparecerá absolutamente no Céu ao ser substituída pela visão beatífica de Deus; o mesmo se dá neste mundo quando desaparece a fé humana em relação à existência de uma cidade, no mesmo instante em que pela primeira vez pisamos em seu solo.
Ser verdade, quer dizer, estamos firmemente convencidos e seguros da verdade de tudo quanto Deus se dignou revelar.
O que Ele revela. É o objeto material da fé, constituído por todo o conjunto das verdades reveladas.
Não devido à verdade intrínseca das coisas conhecidas pela luz natural da razão. Deixaria de ser fé sobrenatural caso se visse sua verdade intrínseca pela luz natural da razão. Sequer na fé humana se dá a visão de sua verdade intrínseca, pois é totalmente incompatível com a noção mesma da fé, fundada não na razão, mas no testemunho alheio.
Mas em virtude da autoridade do próprio Deus revelante. É o objeto formal, ou motivo da fé sobrenatural, que a específica e diferencia infinitamente de qualquer outra classe de fé.
O qual não pode enganar-se nem enganar. Em virtude dessa dupla impossibilidade, o assentimento sobrenatural da fé é firme e certo. Não há certeza física, nem matemática, nem metafísica que possa superar a certeza objetiva da fé sobrenatural. É a maior e mais absoluta de todas as certezas, já que todas as demais se fundam na aptidão natural de nosso entendimento para conhecer a verdade (ou seja, em algo puramente criado e finito), enquanto que a certeza da fé sobrenatural se funda na Verdade mesma de Deus, que é incriada e infinita. Impossível chegar a uma certeza maior.

[...].

II. A VIRTUDE DA ESPERANÇA
1. NOÇÃO

A esperança pode ser definida como “uma virtude teologal infundida por Deus na vontade, pela qual confiamos com plena certeza alcançar a vida eterna e os meios necessários para chegar a ela, apoiados no auxílio onipotente de Deus”.
Expliquemos um pouco a definição palavra por palavra.
a) É uma virtude teologal, porque – assim como a fé e a caridade – tem por objetivo o próprio Deus, que será nossa bem-aventurança eterna.
b) Infundida por Deus na vontade, pois seu ato próprio é certo movimento do apetite racional para o bem, que é o objetivo da vontade.
c) Pela qual confiamos com plena certeza. A esperança tende com absoluta certeza para seu objeto, não porque possamos saber com certeza que alcançaremos de fato a salvação eterna – a não ser por uma especial revelação de Deus (D 805/DH 1540) –, e sim porque podemos e devemos ter certeza de que, apoiados na onipotência auxiliadora de Deus (motivo formal quo da esperança), não pode antepor-se a nós nenhum obstáculo insuperável para a salvação.
d) Alcançar a vida eterna. É o objeto material primário da esperança. O objeto formal é o próprio Deus, enquanto bem-aventurança objetiva do homem, conotando a bem-aventurança subjetiva ou visão beatífica.
e) E os meios necessários para chegar a ela. É o objeto material secundário. Abarca todos os meios necessários para a salvação (graça, sacramentos, auxílios) e mesmo os bens naturais enquanto possam nos ser úteis para consegui-la.
f) Apoiados no auxilio onipotente de Deus. Esse é o objeto formal quo, ou seja, o motivo da esperança cristã: a onipotência auxiliadora de Deus, conotando a misericórdia e a fidelidade de Deus a suas promessas.
Não obstante, ainda que a potência auxiliadora de Deus seja o único motivo formal de nossa fé, podemos também, de algum modo, colocar nossa esperança em algumas outras coisas secundárias ou instrumentais que operam sob a ação principal de Deus. Tais são a humanidade adorável de Cristo que foi instrumento utilizado por Deus para nossa redenção; a Santíssima Virgem Maria, a quem invocamos na Salve Rainha com o doce nome de esperança nossa, e de quem esperamos que nos alcance de Deus a graça soberana da perseverança final; a intercessão dos anjos bem-aventurados do Céu; as orações dos justos na Terra, etc.

[...].

III. A VIRTUDE DA CARIDADE
1. NOÇÃO

A natureza íntima de uma coisa nos é dada a conhecer por sua definição, caso esteja bem feita. Vamos dar, em primeiro lugar, a definição completa e detalhada da virtude da caridade e, em seguida, examinaremos atentamente, palavra por palavra, cada um de seus elementos constitutivos. A definição soa assim:
A caridade é uma virtude teologal única, infundida por Deus na vontade, pela qual o justo ama a Deus por si mesmo com amor de amizade sobre todas as coisas, e a si mesmo e ao próximo por amor a Deus.
2
A caridade... A palavra caridade pode ser tomada em diversos sentidos. Pode ter, entre outros, os seguintes significados:a) O amor essencial com que Deus se ama a si mesmo e a todas as coisas por si mesmo. Se identifica, de certo modo, com a natureza mesma de Deus, segundo a sublime expressão de São João: “Deus é amor: quem permanece no amor, permanece em Deus, e Deus permanece nele” (1Jo 4,16).
b) O amor pessoal no seio da Trindade Beatíssima, ou seja, o Espírito Santo em pessoa. Nesse sentido o usa a liturgia no hino de Pentecostes: “Fons vivus, ignis, caritas...”.
c) O amor de Deus em relação ao homem, principalmente na ordem sobrenatural, segundo Jeremias: “Eu te amo com amor de eternidade (in caritate perpetua)” (Jr 31,3), e São João: “Foi assim que o amor de Deus se manifestou em nós: Deus enviou o se Filho único ao mundo, para que tenhamos a vida por meio dele” (1Jo 4,9).
d) O amor de benevolência, com que amamos sobrenaturalmente a Deus e ao próximo por Deus. Este é o sentido nos seguintes textos de São Paulo: “Quem nos separará do amor (caridade) de Cristo?” (Rm 8,25); “Se eu falasse as línguas dos homens e as dos anjos, mas não tivesse amor... eu nada seria” (1Cor 13, 1-2); “arraigados e fundados na caridade” (Ef 3,17); “suportai-vos uns aos outros na caridade” (Ef 4,2).
e) O amor de compaixão para com o próximo quando lhe socorremos por amor a Deus. Neste sentido qualificamos como caridosas todas as pessoas que dão esmolas, pois a esmola mesma é uma obra de caridade.
f) O hábito sobrenatural infundido por Deus na vontade de que já falamos na própria definição. É neste sentido que o empregamos aqui.
É uma virtude teologal. É virtude porque é evidentemente um ato bom e louvável em toda a extensão da palavra; e é teologal porque tem Deus como objeto próprio e imediato.
Única. A caridade, de fato, é uma virtude especificamente una em espécie, atômica, indivisível. Porque, mesmo que seu objeto material constitua objetos tão variados e diferentes entre si (Deus, nós e o próximo), o motivo do amor – que é a razão específica – é único: a divina Bondade em si mesma como objeto da bem-aventurança comum a Ele, a nós mesmos e ao próximo (cf. Suma Teológica, II-II,23,5).
Desta característica, do fato de que a caridade seja uma só virtude indivisível, mesmo recaindo sobre três objetos materiais tão diferentes, se desprendem duas consequências importantes:
1ª. O amor sobrenatural de nós mesmos ou do próximo por Deus tem o nível e a categoria de virtude teologal, porque tem sempre a Deus como motivo formal – que é a razão específica – mesmo sendo o objeto material distinto de Deus.
2ª. Quando nos amamos a nós mesmos ou ao próximo por algum motivo distinto de Deus (p. ex. por simpatia natural, companheirismo, compaixão de suas misérias, ou por simples parentesco natural, etc.) não fazemos um ato de caridade sobrenatural no sentido estrito da palavra, mas de uma simples virtude natural adquirida (p. ex. de filantropia, altruísmo, etc.) incomparavelmente inferior à caridade.
Infundida por Deus. Só Ele pode infundi-la em nós, já que, como virtude natural, o homem jamais poderia adquiri-la por suas próprias forças naturais. Deus a infunde no momento mesmo em que o pecador recebe a graça santificante (pelo batismo, a absolvição sacramental ou ato de perfeita contrição).
Na vontade. A caridade, como hábito infuso, reside na vontade, já que seu ato é um movimento de amor para com o sumo Bem, e o amor e o bem constituem precisamente o ato e o objeto da vontade (Ibid. II-II, 24,1).
Dessa doutrina se desprende uma consequência lógica muito importante, na qual o amor sensível não é necessário, nem tem nada a ver com a caridade sobrenatural, que é uma realidade suprassensível. Há grande caridade com pouco ou nenhum sentimento, e grande sentimento com pouca e até nenhuma caridade. Contudo, o amor sensível (“os consolos de Deus”) são também muito estimáveis e podem servir de incentivos para a intensificação do próprio amor divino e para as obras reclamadas por ele; com isso, todavia, não devemos nos apegar nem buscar a eles em si mesmos, o que supõe uma espécie de gula espiritual, como disse São João da Cruz.
Pela qual o justo. Dizemos o justo porque, mesmo a caridade se distinguindo realmente da graça santificante, ordinariamente estão sempre juntas. Um pecador pode fazer um ato de perfeita caridade sob a influência de uma graça atual, tendo por resultado a infusão da graça santificante na alma e a virtude na vontade.
Ama a Deus por si mesmo. Por Deus em si mesmo, entende-se a essência divina com todos os atributos e as três divinas pessoas. Mas note-se que o objeto formal da caridade (motivo quo na terminologia escolástica) é Deus enquanto sumo Bem; mas não considerado como objeto de sua bem-aventurança e da nossa. Amamos a Deus com amor de caridade, enquanto a Bondade divina, infinitamente amável em si mesma, está destinada também para nós mesmos: incoativamente
3 nesta vida pela graça e consumativamente4 na outra pela glória. É, simplesmente, um amor a Deus como amigo.
Como amor de amizade. À primeira vista parece que não se pode falar de verdadeira amizade entre Deus e o homem por razão da infinita distância existente entre ambos. A verdadeira amizade parece exigir certa igualdade ou semelhança de natureza, dignidade, nível social, etc. E assim nenhum mendigo pretende ser amigo do rei ou de uma pessoa de alta dignidade muito superior à sua.
Apesar desses inconvenientes, a caridade sobrenatural constitui uma verdadeira e própria amizade entre Deus e os homens. Porque a amizade não é outra coisa senão um certo amor de mútua benevolência, fundado sobre alguma comunicação de bens entre os amigos. Requer, por isso mesmo, três condições: primeira, que seja amor de benevolência, desejando o bem do amigo pelo amigo, sem buscar a própria utilidade, o que seria amor de concupiscência. Segunda, que o amor seja mútuo e a benevolência recíproca. Terceira, que haja comunicação de corações. Ora, a caridade cumpre essas três condições, porque:
i) Por ela amamos a Deus por si mesmo, com verdadeiro amor de benevolência; nos congratulamos por suas infinitas perfeições, desejamos e procuramos a glória externa de Deus, a honra, a obediência, a exaltação de seu nome, nos entristecemos e nos condoemos pelas ofensas e injúrias que lhe fazem.
ii) A caridade é o amor mutuo, porque lemos nos Provérbios: “Amo aqueles que me amam” (Pr 8,17); e São João: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada” (Jo 14,23). Observamos que, por uma parte, os justos que amam a Deus lhe oferecem seus coração e todas as coisas; por outra, Deus se entrega ao justo, vem a ele e estabelece sua morada nele e se deixa gozar pelo conhecimento e amor com uma experiência inefável, a qual somente conhecem os que a vivem e que só “a vida eterna sabe” (São João da Cruz). Pela caridade, Deus nos muda e transforma em si mesmo, segundo diz São Paulo: “Mas quem adere ao Senhor torna-se com ele um só espírito” (1Cor 6,7). Finalmente, derrama sobre quem o ama deleites inenarráveis e infunde em seus corações aquela paz que “supera todo entendimento” (Fl 4,7) e que o mundo não pode dar.
iii) Há, finalmente, na caridade, verdadeira comunicação de bens, como acabamos de dizer claramente. E, ademais, com a caridade merecemos a futura comunicação de Deus na pátria pela qual gozaremos eternamente dele, visto tal como é em si mesmo; e então a amizade com Deus, iniciada aqui na Terra, se fará firme, imóvel e sempiterna.
Sobre todas as coisas. O prescreve assim a Sagrada Escritura, tanto no antigo como no Novo Testamento: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração e com toda a tua alma, com toda tua força e com todo o teu entendimento; e teu próximo como a ti mesmo!” (Lc 10,27; cf. Dt 6,15). Essa totalidade de afeto com que se deve amar a Deus significa que não se pode amar a nenhuma outra coisa mais do que a Deus, nem tanto como a Deus. Por isso o pecado mortal – pelo qual o pecador prefere algum bem criado ao Bem supremo – é uma desordem monstruosa contra a divina caridade, que a destrói totalmente.
E a si mesmo e ao próximo. São os outros dois objetos a que se estende a matéria da caridade. Entre eles ocupa o primeiro lugar o amor devido a nós mesmos, por sua vez modelo e exemplo de amor que devemos ter pelo próximo.
Por Deus. É o motivo formal da caridade em todos seus aspectos e manifestações. A razão de amarmos a nós mesmos e ao próximo com amor de caridade há de ser sempre Deus, ou seja, a divina bondade em si mesma e como objeto de nossa comum bem-aventurança. Sem isto, a caridade, enquanto tal, desaparece, para dar lugar a uma simpatia ou amor puramente natural e humano, sem valor sobrenatural no plano da vida eterna. Págs. 179-183; 190-192; 200-208.

[...].


______________

1 “É pela graça que fostes salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós: é dom de DEUS!” (Ef 2,8).
2 Mantemos aqui a tradução da definição apresentada pelo autor, a fim de respeitar a ordem da exposição que se segue. No Catecismo da Igreja Católica de 1997 aparece da seguinte forma: “A caridade é a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas, por si mesmo, e a nosso próximo como a nós mesmos, por amor de Deus” (§ 1822) – NT.
3 (latim tardio inchoativus, do latim inchoo, -are, começar, empreender, construir)
adjetivo1. Que dá ou origina um começo. = INICIAL 2. [Gramática] Diz se do verbo que designa começo ou aumento progressivo de .ação. "incoativo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008 2013, https://dicionario.priberam.org/incoativo [consultado em 27-02-2019].
Consumativo: 1. Designa o momento da consumação do crime, momento em que o ato se aperfeiçoa, se amolda ao tipo penal.

terça-feira, 19 de março de 2019

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: VIRTUDES CARDEAIS

VIRTUDES CARDEAIS

1. NOÇÃO

Como dissemos anteriormente, o nome de “cardeais” deriva do latim cardo, cardinis, a dobradiça ou gonzo da porta; porque, em efeito, sobre elas, como sobre as dobradiças, gira e descansa toda a vida moral humana e cristã.


2. NÚMERO

As virtudes são quatro: prudência, justiça, fortaleza e temperança. A prudência dirige o entendimento prático em suas determinações; a justiça aperfeiçoa a vontade de dar a cada um o que lhe corresponde; a fortaleza reforça o apetite irascível para tolerar o desagradável e enfrentar o que se deve fazer, apesar das dificuldades; e a temperança põe em ordem o reto uso das coisas aprazíveis e agradáveis.
O conjunto total das virtudes infusas teologais e morais poderia ser representado graficamente com uma imagem astronômica formada do seguinte modo:
a) Três grandes estrelas ou sóis com luz própria; fé, esperança e caridade.
b) Quatro grandes planetas com luz recebida do sol: prudência, justiça, fortaleza e temperança.
c) Muitas virtudes satélites relacionadas com seus respectivos planetas, como derivadas ou anexas.
Estudadas as três virtudes estrelas ou sóis, vamos abordar agora o estudo dos quatro planetas, ou seja, das quatro virtudes cardeais, que, por sua vez, nos permitirão estudar seus correspondentes satélites ou virtudes derivadas, que se relacionam em algum com sua virtude cardeal correspondente.

I. A VIRTUDE DA PRUDÊNCIA
1. NOÇÃO

A prudência é uma grande virtude que tem por objetivo ditar o que devemos fazer em cada caso particular. Como virtude natural ou adquirida foi definida por Aristóteles como: “A reta razão no agir”. Como virtude sobrenatural infusa pode ser definida como:
Uma virtude especial infundida por Deus no entendimento prático para o reto governo de nossas ações particulares ordenadas a um fim sobrenatural.
Expliquemos um pouco os termos da definição.
a) Uma virtude especial, distinta de todas as demais.
b) Infundida por Deus no entendimento prático. Como se sabe, a razão (ratio) ou entendimento, é uma das potências ou faculdades da alma (como a memória e a vontade). No entanto, o entendimento se subdivide em especulativo e prático. O especulativo se dedica à formulação teórica dos princípios nos quais se apoia a prudência, enquanto que o prático recai sobre os atos particulares ou concretos que deve realizar. A prudência, como virtude, recai precisamente sobre esses atos concretos que hão de se realizar: logo, reside no entendimento prático, não no especulativo.
c) Para o reto governo de nossas ações particulares. O ato próprio da virtude da prudência é ditar (em sentido perfeito, ou seja, intimado ou imperando) o que se deve fazer concretamente em um momento determinado hic et nunc, levando em conta todas as circunstâncias, depois de uma madura deliberação e conselho.
d) Ordenadas para um fim sobrenatural. É o objeto formal ou motivo próximo, que a distingue radicalmente da prudência natural ou adquirida, que só se dirige às coisas deste mundo.

2. IMPORTÂNCIA

É a mais importante de todas as virtudes morais depois da virtude da religião, como veremos em seu devido lugar. Sua influência se estende a todas as demais virtudes, assinalando-lhes o justo meio em que consistem todas elas, para que não se desviem por excesso ou por defeito em direção aos seus extremos desordenados. Também as próprias virtudes teologais necessitam do controle da prudência, não porque consistam no meio – como as morais –, mas por causa do sujeito e do modo de seu exercício, isto é, no seu devido tempo e tendo em conta todas as circunstâncias. Seria uma ilusão imprudente vagar o dia todo a exercitar as virtudes teologais, descuidando do cumprimento dos deveres de estado. Por isso se chama a prudência de auriga virtutum, porque dirige e governa as demais virtudes como um cocheiro que controla as rédeas de uma carruagem puxada por cavalos.
A importância e necessidade da prudência está manifesta em inúmeras passagens da Sagrada Escritura. O próprio Senhor Jesus Cristo nos adverte: “Sede, portanto, prudentes como as serpentes e simples como as pombas”. (Mt 10,16). Sem a prudência, nenhuma virtude pode ser perfeita. Ademais, é útil para evitar o pecado, dando-nos a conhecer – por experiência – as causas e ocasiões do mesmo, mostrando-nos os remédios oportunos. Quantos pecados cometeríamos sem ela e quantos cometeremos se não seguirmos seus ditames!

[...].

II. VIRTUDE DA JUSTIÇA
1. NOÇÃO


Com frequência se emprega a palavra justiça na Sagrada Escritura como sinônimo de santidade: os justos são os santos. E assim disse Nosso Senhor Jesus Cristo no Sermão da Montanha: “Bem aventurados os que têm sede de justiça” (Mt 5,6), ou seja, de santidade. Mas em sentido estrito, como virtude especial, a justiça pode ser definida assim:
“A vontade constante e perpétua de dar a cada um o que lhe corresponde estritamente”.
Expliquemos um pouco os termos da definição para conhecê-la melhor:
a) A vontade, entendendo por tal não a potência ou faculdade mesma (onde reside o hábito da justiça) mas seu ato, ou seja, a determinação da vontade de dar a cada um o que lhe corresponde.
b) Constante e perpétua, porque, como explica Santo Tomás, “isto o reclama a ideia de justiça, para a qual não basta queremos observá-la por algum tempo, num certo negócio; pois, é difícil encontrar quem queira agir sempre injustamente; mas, é preciso que tenhamos a vontade perpétua de observar sempre a justiça”
1. A palavra constante designa a perseverança firme no propósito; e a expressão perpétua, a intenção de guardá-la sempre.
c) De dar a cada um, ou seja, ao nosso próximo. A justiça requer sempre a alteridade, já que ninguém pode propriamente cometer injustiças contra si mesmo.
d) De dar o que corresponde, ou seja, o que se deve. Não se trata de uma esmola ou presente, mas do devido ao próximo, porque ele tem direito a isso.
e) Estritamente, ou seja, nem mais nem menos do que se deve. Se ficamos abaixo do devido estritamente (p. ex. pagando só dez reais a quem devemos doze) cometemos uma injustiça. Mas se ultrapassamos o devido (p. ex. dando vinte a que devemos apenas dez) não violamos o princípio da justiça (porque pagamos a mais) mas praticamos, em realidade, a liberalidade ou a esmola e não a justiça em sentido estrito.

[...].

3. IMPORTÂNCIA E NECESSIDADE

A justiça é uma das quatro grandes virtudes morais que ostentam o estatuto de cardeais, porque ao redor delas – como deve ser a dobradiça da porta – gira toda a vida moral.
Depois da prudência, a justiça é a mais excelente das virtudes cardeais, mesmo sendo inferior às virtudes teologais e algumas de suas derivadas, como a religião por exemplo, que tem um objetivo imediato mais nobre: o culto a Deus. Isto a aproxima das virtudes teologais ocupando o quarto lugar no conjunto total das virtudes infusas.
A justiça tem uma grande importância e é de absoluta necessidade, tanto na ordem individual como na social. Aperfeiçoa e ordena nossas relações com Deus e com o próximo; faz com que respeitemos mutuamente nossos direitos; proíbe a fraude e o engano; pratica a simplicidade, veracidade e gratidão mútua (virtudes satélites da justiça); regula as relações dos indivíduos particulares entre si, as de cada um com a sociedade e da sociedade com o indivíduo (justiça social). Ao ordenar todas as coisas, traz consigo a paz e o bem estar de todos, já que a paz não é outra coisa senão “a tranquilidade da ordem” segundo a magnífica definição de Santo Agostinho. Por isso, diz a Sagrada Escritura que a paz é obra da justiça: opus iustitiae, pax (Is 32,17); se bem que, como explica Santo Tomás, a paz é obra da justiça indiretamente, ou seja, enquanto remove os obstáculos opostos a ela (ut removens prohibens), mas a paz provém própria e diretamente da caridade, que é a virtude realizadora por excelência da união de todos os corações.
2
Em seu devido lugar, examinaremos brevemente o magnífico conjunto das partes potenciais ou virtudes derivadas, ou satélites da justiça, o que aumentará nossa estima por esta grande virtude cardeal.

[...].

III – A VIRTUDE DA FORTALEZA
1. NOÇÃO

A palavra fortaleza pode ser tomada em dois sentidos principais:
a) Enquanto significa, em geral, certa firmeza de ânimo ou energia de caráter. Nesse sentido não é virtude especial, mas uma condição geral que acompanha toda virtude, que, para ser verdadeiramente tal, deve ser praticada com firmeza e energia.
b) Para designar a terceira das virtudes cardeais. Nesse sentido pode ser definida como:
Uma virtude cardeal, infundida com a graça santificante, que enaltece o apetite irascível e a vontade para que não desistam de conseguir o bem árduo ou difícil, nem sequer diante do máximo perigo de vida corporal.
Expliquemos um pouco a definição:
i) Uma virtude cardeal... posto que vindica para si, de forma especial, uma das condições comuns a todas as demais virtudes, que é a firmeza em agir.
ii) infundida com a graça santificante... para distingui-la da fortaleza natural ou adquirida.
c) Que enaltece o apetite irascível e a vontade... A fortaleza reside, como em seu próprio sujeito, no apetite irascível, porque se exercita sobre o temor e a audácia que nele residem. Mas influencia também, por redundância, sobre a vontade para que possa escolher o bem árduo e difícil sem que lhe coloquem obstáculos às suas paixões.
iii) Para que não desistam de conseguir o bem árduo ou difícil... Como se sabe, o bem árduo é o objeto do apetite irascível. Ora, a fortaleza tem por objeto robustecer o apetite irascível, para que não desista de conseguir o bem difícil, por maiores que sejam as dificuldades e os perigos que se apresentem.
iv) Nem sequer frente o máximo perigo de vida corporal... Acima de todos os bens corporais, deve-se buscar sempre o bem da razão e da virtude, que é imensamente superior ao corporal; mas como entre os perigos e temores corporais o mais terrível de todos é a morte, a fortaleza robustece principalmente contra esses temores, como é evidente na vida dos mártires que não vacilaram em dar sua vida para conservar ou confessar a fé ou outra virtude sobrenatural. Por isso o martírio é o ato principal da virtude da fortaleza.

[...]

3. IMPORTÂNCIA E NECESSIDADE

A fortaleza é uma virtude muito importante e excelente, mesmo não sendo a máxima entre todas as virtudes cardeais. Porque o bem da razão – que é o objeto de toda virtude – pertence essencialmente à prudência; de maneira efetiva, à justiça; e só conservativamente (ou seja, removendo os impedimentos) à fortaleza e à temperança. E entre estas duas últimas prevalece a fortaleza, porque é mais difícil no caminho do bem superar os perigos da morte, do que os perigos procedentes das deleitações do tato, por sua vez regulados pela temperança. Conclui-se então que a ordem de perfeição entre as virtudes cardeais é a seguinte: prudência, justiça, fortaleza e temperança.
Na vida espiritual e no caminho para a perfeição, a fortaleza, em seu duplo ato de atacar e resistir, é muito importante e necessária. Há no caminho da virtude grande número de obstáculos e dificuldades que é preciso superar com valentia e queremos chegar até os cumes da santidade. Para isso, é mister muita decisão em empreender o caminho da perfeição custe o que custar, muito valor para não se assustar ante a presença do inimigo; muita coragem para o atacar e vencer, e muita constância e paciência para levar o esforço até o fim, sem abandonar as armas em meio ao combate. Toda esta firmeza e energia deve ser proporcionada pela virtude da fortaleza, robustecida, por sua vez, pelo dom do Espírito Santo de mesmo nome: o dom da fortaleza, do qual falamos brevemente em outro ponto desta obra.

[...].

IV – A VIRTUDE DA TEMPERANÇA
1. NOÇÃO

A palavra temperança pode ser empregada em dois sentidos:
a) Para significar a moderação que impõe à razão em toda ação e paixão (sentido lato), em cujo caso não se trata de uma virtude especial e sim de uma condição geral, que deve acompanhar todas as virtudes morais.
b) Para designar uma virtude especial que constitui uma das quatro virtudes morais principais, chamadas cardeais (sentido estrito). Neste sentido pode ser definida:
Uma virtude sobrenatural que modera a inclinação aos prazeres sensíveis, especialmente do tato e do gosto, contendo-a dentro dos limites da razão iluminada pela fé.
Expliquemos um pouco a definição:
i) Uma virtude sobrenatural... (infusa), para distingui-la da temperança natural ou adquirida.
ii) Que modera a inclinação aos prazeres sensíveis... O próprio da temperança é refrear os movimentos do apetite concupiscível – onde reside –, diferente da fortaleza, que tem por missão excitar o apetite irascível na busca do bem honesto.
iii) Especialmente do tato e do gosto... Mesmo que a temperança deva moderar os prazeres sensíveis aos quais nos inclinam o apetite concupiscível, recai de maneira especial sobre os pecados próprios do tato e do gosto (luxúria e gula principalmente) que levam consigo a máxima deleitação – como necessários para a conservação da espécie ou do indivíduo – e são, por essa razão, mais aptos para arrastar o apetite caso não seja refreado por uma virtude especial que é a temperança estritamente dita. Principalmente recai sobre os deleites do tato, e secundariamente sobre os demais sentidos.
iv) Contendo-a dentro dos limites da razão iluminada pela fé. A temperança natural ou adquirida é regida unicamente pelas luzes da razão natural, e contém o apetite concupiscível dentro de seus limites racionais e humanos; a temperança sobrenatural ou infusa vai muito mais longe, posto que às luzes da simples razão natural são acrescentadas as luzes da fé, que têm exigências mais finas e delicadas.

2. IMPORTÂNCIA E NECESSIDADE

A temperança é uma virtude cardeal que possui várias outras derivadas ou satélites, e neste sentido é uma virtude excelente; mas, por ter como objeto a moderação dos atos do próprio indivíduo, sem nenhuma relação com os demais, ocupa o último lugar entre as virtudes cardeais.
Sem embargo, por ser a última das virtudes cardeais, a temperança é uma das virtudes mais importantes e necessárias na vida do cristão. A razão disso é a de que a temperança deve moderar, sustentando-os dentro da razão e da fé, dois dos instintos mais fortes e veementes da natureza humana, que facilmente se extraviariam sem uma virtude moderativa dos mesmos. A Divina Providência quis unir um deleite ou prazer àquelas operações naturais necessárias para conservação do indivíduo e da espécie; daí a veemente inclinação do homem aos prazeres do gosto e da geração, que possuem aquela finalidade alta, querida e pretendida pelo próprio Autor da natureza. Mas por brotar com veemência da própria natureza humana, tendem com grande facilidade a desgarrar-se fora dos limites do justo e do razoável – o que seja necessário para a conservação do indivíduo e da espécie, na forma e circunstâncias assinaladas por Deus e nada além disso –, arrastando consigo o homem para a zona do ilícito e do pecaminoso. Esta é a razão da necessidade de uma virtude infusa moderativa dos apetites naturais e da singular importância dessa virtude na vida cristã ou simplesmente humana.
Tal é o papel da temperança infusa. É ela que nos faz usar do prazer para um honesto e sobrenatural, na forma assinalada por Deus a cada um segundo seu estado e condição. E como o prazer é em si mesmo sedutor e nos arrasta facilmente para mais além dos limites justos, a temperança infusa inclina à mortificação inclusive de muitas coisas lícitas, para nos manter afastados do pecado e ter perfeitamente controlada e submetida a vida passional. Págs. 227-230; 234-238; 239-240,242; 243-246.

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_________


1 SANTO TOMÁS, SUMA TEOLÓGICA II-II, 58,1 AD3. CF. AD 4.
2 SANTO TOMÁS, II-II, 29,3 AD 3.




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