segunda-feira, 6 de abril de 2020

O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto para hoje (Parte 2)

A respeito da Ascese: “Os monges falam com frequência da luta que a vida com Deus exige. A vida no deserto faz com que os monges lutem com amiúde contra os demônios, gerando assim, um trabalho constante para os mesmos”. “Disse mãe Sinclética: No início existe toda sorte de fadigas e lutas para aqueles que se aproximam de Deus. Mais tarde, porém, alcançam uma alegria inexprimível. Assim como aqueles que querem acender o fogo são primeiramente incomodados pela fumaça e chegam a lacrimejar, chegando em seguida a alcançar o que desejam – uma vez que está escrito: ‘Nosso Deus é um fogo ardente’ (Hb 12,29) –, assim também nós devemos atiçar em nós o fogo divino por meio de lágrimas e esforço” (Apot 892).
“Um irmão suplicou a pai Arsênio que lhe dissesse uma palavra. E o patriarca lhe disse: ‘Luta com todas as tuas forças para que tua ação interior seja semelhante ao modo de ser de Deus e serás capaz de vencer tuas paixões exteriores’” (MILLER. SabPad 44). Num outro apotegma, é Cristo mesmo quem fala a um monge: “Eu, porém, vos digo: É necessário muito trabalho, pois sem trabalho ninguém pode possuir a Deus. Pois ele mesmo foi crucificado por nós”. (MILLER. SabPad 103).

[...]. 


A ascese é, num sentido ético, “um exercício para um comportamento virtuoso, conformado ao ideal” (LEX 749).

Ascese diz respeito, portanto, a algo positivo, que é o exercício para a aquisição de uma atitude religiosa. Somente na filosofia popular cínico estoica é que a ascese foi vista como renúncia e como repressão dos instintos. Este aspecto negativo foi vencido pela ascese cristã, à medida que para os monges o ponto preponderante consiste no exercício pelo qual o ser humano se exercita numa atitude de apatheia1, um estado de paz interior em que estamos abertos para Deus. Para os monges, porém, este estado de paz se origina sempre da luta. Por essa razão é importante começarmos primeiramente com a luta contra os demônios que nos possam desviar de Deus. (GRÜN. Alselm, p. 53-54). O que Evágrio chama de apatheia significa, para Cassiano, seu discípulo e aquele que dá uma forma nova e latinizada ao ensinamento de Evágrio, puritas cordis, quer dizer, pureza de coração. A pureza de coração é um estado de clareza e pureza interior, de amor como abertura para Deus. Para alcançar a pureza de coração é necessário lutar: “Portanto, para alcançar a pureza de coração e o amor, é necessário que façamos tudo quanto realizamos por meio de obras ascéticas; pois elas são os instrumentos que podem libertar nosso coração de todas as paixões prejudiciais que nos atrapalham no progresso para a plenitude do amor. Assim, nós praticamos o jejum, as vigílias noturnas, o recolhimento, a meditação das Sagradas Escrituras, etc. por almejarmos a pureza de coração, que consiste no amor. Assim, o que quer que façamos, devemos fazê-lo a fim de tornar-nos verdadeiramente amantes. É por isso que o amor é normativo em tudo. Atingi-lo é a finalidade de nosso agir; e os instrumentos de que dispomos para isso são de dupla categoria” (JOÃO CASSIANO. PotAlm 108). [...].
Os monges desenvolveram métodos de luta com os quais nos é possível treinar a atitude do amor, a atitude de clareza e pureza interiores, com as quais podemos treinar a abertura sincera para Deus. É muito frequente encontrar nos monges duas imagens para a luta por uma vida que nós mesmos vivemos, que corresponde à imagem que Deus tem de nós: nós somos atletas de Cristo – e somos soldados do Rei Cristo. (GRÜN. Alselm, p. 54-55).
O monge é atleta de Cristo. Sua luta está voltada, acima de tudo, contra as paixões. Entretanto, ele nunca poderá, como o atleta que está na arena, vencer o adversário e descansar sobre os louros da vitória. Nossa vida é, ao contrário, uma luta permanente. Os patriarcas exortam os jovens a esta luta. Em muitas sentenças dos patriarcas se experimenta até mesmo o prazer pela luta. Nisso se manifesta o sentimento de que nós não estamos entregues aos demônios, mas podemos vencê-los pela força de Cristo. E é esta chance de vencer que impulsiona os monges em sua luta. Do monge que renuncia às suas posses, Evágrio diz que ele é “um atleta que ninguém consegue segurar pela cintura e um corredor veloz que, com rapidez, alcança o prêmio do chamado do alto” (EVÁGRIO. OitPens 53).
Segundo Evágrio, porém, só podemos suportar a luta contra as paixões, se “nós lutarmos como homens e soldados robustos de rei vitorioso, Jesus Cristo. [...] Nessa luta, no entanto, é necessário – como arma espiritual – uma fé firme e uma doutrina segura, quer dizer, é necessário o jejum perfeito, as ações vigorosas, a humildade, um silêncio que seja pouco perturbado ou totalmente imperturbado, e a oração continuada. O que eu gostaria de saber, porém, é se alguém é capaz do continuar a luta em sua alma e de ser coroado com a coroa da justiça quando sacia sua alma com pão e água, quando atiça a cólera com rapidez, quando despreza e descuida da oração e quando se reúne com os heréticos. Presta pois atenção ao que diz São Paulo: ‘Os atletas se abstêm de tudo’ (1Cor 9,25). [...] Por conseguinte, ao empreendermos esta campanha, não há dúvida que é importante empregarmos a armadura espiritual e mostrarmos aos pagãos que nós lutaremos contra os pecados mesmo que tenhamos que derramar o sangue” (EVÁGRIO. Anti 2).


[...]. 


No capítulo 5 veremos sobre a importância do Calar e não julgar.

“O patriarca Poimen solicitou ao patriarca José: ‘Dize-me como poderei tornar-me monge’. E ele respondeu: ‘Se queres encontrar serenidade onde quer que estejas, então, em tudo que fizeres, deves dizer: Quem sou eu? E não julgues a ninguém’” (Apot 385). O julgamento dos outros é sempre um sinal de que a pessoa ainda não se encontrou consigo mesma. Por essa razão as pessoas piedosas, que se irritam com os outros, ainda não encontraram sua própria verdade. Sua piedade ainda não fez com que se confrontassem consigo mesmas e com seus próprios pecados. Pois assim diz pai Moisés: “Se alguém carrega seus próprios pecados, não fica reparando os pecados dos outros” (Apot 510). “Certa vez, pai Poimen foi interrogado por um irmão: ‘Pai, o que devo fazer, já que fico abatido por causa da tristeza?’ E o ancião lhe respondeu: ‘Não olhes para ninguém sem motivo, não julgues nem difames ninguém e, assim, o Senhor haverá de conceder-te serenidade’” (Apot 1186). Os monges realizam, por meio de sua experiência, aquilo que Jesus exige no sermão da montanha: “Não julgueis para não serdes julgados!” (Mt 7,1). O não julgar é fruto do encontro consigo mesmo. Pois quem se encontra consigo sabe de todas as suas próprias falhas e conhece seus lados sombrios. Ele sabe estar carregando em si mesmo aquilo que ele julga, nos outros. E se uma outra pessoa peca, então, ele não se irrita, mas é levado a recordar-se de seus próprios pecados. Os psicólogos nos dizem que, ao xingarmos os outros, revelamos aquilo que está em nós mesmos. Nós projetamos nossos próprios lados sombrios, nossos desejos e necessidades recalcadas sobre os outros e os xingamos, ao invés de mantermos a nossa própria verdade perante os olhos. O desejo dos monges é que abandonemos os mecanismos de projeção e que, em vez disso, nos calemos. O calar é, pois, segundo eles, um auxílio para deixar de lado a projeção e, em vez disso, encarar o comportamento dos outros como um espelho para nós mesmos. E é justamente isso que algumas sentenças dos patriarcas nos ensinam. (GRÜN. Alselm, p. 60-61).
O calar é a renúncia a todo tipo de projeção. “Quando pai Agatão via algo e seu coração queria emitir um juízo a respeito, dizia para si mesmo: ‘Agatão, não faças isso’. Foi assim que seu pensar encontrou a tranquilidade” (Apot 100). “E quando vires alguém pecando, reza ao Senhor e dize: perdoa-me, pois pequei” (EthColl 13,40). O julgamento dos outros nos torna cegos para as nossas próprias falhas. Calar em relação aos outros nos proporciona um autoconhecimento mais lúcido e faz com que paremos de projetar as nossas falhas sobre eles. Uma sentença dos patriarcas diz o seguinte: “Certa vez, houve uma assembleia em Scete a respeito de um irmão que havia pecado. Os patriarcas todos falaram pai Pior, porém permaneceu calado. Em seguida, ele levantou-se e, tomando um saco, encheu-o com areia e o pôs nas costas. E pôs um pouco de areia num pequeno cesto e colocou-o à sua frente. Os patriarcas então lhe perguntaram o que isso significava, e ele respondeu: ‘O saco que tem muita areia são meus pecados e estes são numerosos. Eu o pus sobre minhas costas para que não me aflijam nem me façam chorar. E vejam: as poucas falhas do meu irmão, que estão diante de mim, sobre elas eu falo muito a fim de julgá-lo. Não é correto proceder desta maneira. Eu deveria, ao contrário, colocar minhas próprias falhas à minha frente, e, meditando sobre elas, deveria pedir a Deus para me perdoar’. Então os patriarcas levantaram-se e disseram: ‘Verdadeiramente este é o caminho de salvação!’” (Apot 779). 

Mesmo quando um irmão realmente peca, não devemos julgá-lo. Assim nos diz pai Poimen: “Se um homem peca e o nega, dizendo: ‘Eu não pequei’, não o julgues, pois deste modo podes fazer com que desanime. Contudo, se disseres: ‘Não desanimes, irmão, mas toma cuidado de agora em diante’, então estarás despertando sua alma para o arrependimento” (Apot 597). Em vez de julgar o outro, deveríamos, por meio da caridade, buscar conquista-lo para Deus. “Dizia-se a respeito de pai Isidoro, presbítero de Scete, que se alguém tinha um irmão enfermo, negligente ou presunçoso, e queria expulsá-lo, lhe dizia: ‘Tragam-no para mim!’ E ele o tomava consigo e, com a paciência que lhe era própria, o conduzia à salvação” (Apot 357).
Não raras vezes acusa-se os primeiros monges de terem-se tornado austeros demais em sua ascese. Porém, as mais diversas exortações a não julgar e as belas narrativas sobre monges misericordiosos mostram-nos o contrário. Sim, para os monges, o não julgar era um critério para o caminho certo. Pois quem julga os outros ainda não aprendeu a conhecer-se realmente. Hoje em dia, existem muitos movimentos piedosos que vivem às custas dos outros. Eles se definem à medida que ficam rebaixando e ultrajando os outros. Quando alguém tem necessidade de amaldiçoar os homens por seguirem um outro caminho espiritual, isso será sempre um sinal de que seu próprio caminho não é o correto. Sua maldição revela o demônio no próprio coração, realidade, porém, que ele não admite. Nestas horas ele recalca e projeta este demônio sobre os outros. Quem se conhece a si mesmo com sinceridade, torna-se misericordioso sozinho. E sabe, no fundo de seu coração, que todos nós necessitamos da misericórdia de Deus. E quando Deus permite que o bem triunfe em nós, isso será sempre um prodígio de sua graça. (GRÜN. Alselm, p. 63-64).

[...]

Uma das atividades para compreendermos a nós mesmos e vigiarmos nas nossas ações é sobre: A análise dos nossos pensamentos e sentimentos. 


O encontrar-se consigo mesmo é uma condição prévia do encontro com Deus. Para Evágrio Pôntico, antes de tudo, um encontro com os pensamentos e com os sentimentos do próprio coração. Dele se diz: “Se queres chegar a conhecer todas tentações que ele experimentou da parte dos demônios, deves ler o livro que ele compôs contra as objeções dos demônios. Ali verás toda a sua força e todas as tentações pelas quais passou. Foi por esta razão que ele as expôs por escrito de modo que, aqueles que viessem a lê-las, pudessem ser fortificados e vissem que não são somente eles a serem tentados dessa maneira. Evágrio é aquele que nos ensinou a maneira adequada de vencer todo e qualquer tipo de pensamento” (EVÁGRIO. OitPens 52).
Evágrio está convencido de que grande parte de nosso caminho espiritual consiste em prestar atenção às paixões de nosso coração, em conhecê-las e tratá-las adequadamente. O objetivo deste tratamento é a apatheia, que é um estado de paz interior e serenidade. Na apatheia as paixões já não mais se combatem entre si, mas entram em harmonia umas com as outras. Evágrio chama também a saúde da alma de apatheia. A meta do caminho espiritual não é, portanto um ideal moral destituído de defeitos, mas a saúde da alma. Segundo Evágrio, a alma é saudável quando ela entra em harmonia consigo mesma, quando está preparada para o amor. Pois somente o homem que alcança a apatheia é capaz de amar realmente. Sim, porque, na realidade, a apatheia é amor. (GRÜN. Alselm, p. 67-68).
Evágrio é grego. E por isso ele também constrói o caminho espiritual a partir da imagem do homem grego. A filosofia grega conhece três âmbitos no ser humano: a parte cobiçosa (epithymia), a parte emotiva (thymos) e a parte espiritual (nous). Aliás, estes são também os três âmbitos conhecidos pelo eneagrama, quer dizer, um sistema de autoconhecimento que tem sua origem no sufismo e que apresenta grande semelhança com a doutrina dos nove logismoi de Evágrio. O eneagrama fala de um tipo-ventre, de um tipo-coração e de um tipo-cabeça2. (GRÜN. Alselm, p. 68). 


A cada um destes três âmbitos, Evágrio relaciona também três logismoi. 


Logismoi são pensamentos sensitivos que podem dominar o homem, são paixões da alma e forças impulsivas com as quais ele deve se debater. Num sentido negativo, Evágrio chama os logismoi também de vícios e os ordena a demônios que inspiram estes vícios ao homem. Por conseguinte, o tratamento destes pensamentos e paixões é ao mesmo tempo uma luta com os demônios. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 68).
O conhecimento exato das emoções e paixões é a condição prévia para podermos lidar adequadamente com elas. E a meta de nossa luta é, por sua vez, a apatheia, isto é, a liberdade interior. Dito em linguagem psicológica, podemos dizer: A meta é um modo maduro de lidar com minhas emoções, um relacionamento equilibrado com minhas paixões, um modo de estar em paz comigo mesmo e com minha sombra, minha totalidade, na qual a sombra é integrada e serve à aspiração espiritual.
Na familiaridade com as paixões Evágrio vê cumprir-se a palavra de Jesus a respeito da prudência das serpentes: “Disse Nosso Senhor: ‘Sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas!’ (Mt 10,16). Na verdade, o monge deve ser manso e sem falsidade e, seguindo a palavra dos profetas, sua luta há de acontecer em meio à mansidão. A visão de seu espírito, porém, deve ser ágil, e seja prudente nas malícias dos demônios como o é o mangusto – uma espécie de doninha egípcia – que observa o rastro das suas presas para estar em condições de dizer: os pensamentos do maligno não estão encobertos para mim; ou ainda: meu olho vê o meu inimigo e meus ouvidos hão de ouvir o maligno que se me opuser” (EVÁGRIO. CartDes 16).
Portanto, para podermos agarrar os demônios, devemos estudá-los como o mangusto estuda o rastro das suas presas. A serpente é ao mesmo tempo símbolo da sabedoria, da natureza e da sexualidade. Por isso, adquirir a prudência da serpente também significa: reconciliar-nos com a nossa sexualidade, familiarizar-nos com ela, a fim de podermos integrar a sua sabedoria e a sua força em nosso caminho espiritual. Os padres do deserto tornaram-se muito familiares dos pensamentos e sentimentos negativos e das paixões da alma. Eles não tinham medo de entrar em contato com os demônios. Para eles, essa era uma luta diária por meio da qual eles puderam conhecer o adversário com um rigor sempre maior. Em seus escritos fala a experiência com as paixões de nosso coração e com as forças de nosso inconsciente. (GRÜN. Alselm, p. 70-71).

1) Ao âmbito da cobiça Evágrio relaciona os vícios da gula, da luxúria e da cobiça


Comida, sexualidade e posses são três instintos básicos do homem que ele não pode simplesmente cortar ou ignorar. Pois, enquanto instintos básicos, eles também estimulam a viver. Eles são sim, em última análise, estimulados em direção a Deus. Importa saber como nós nos comportamos com estes instintos, ou seja, se nos deixamos dominar por eles, se nos tornarmos pessoas instintivas ou se somos capazes de utilizar sua força de forma positiva, para deixar que nos impulsionem no caminho para a vida e para Deus.
Evágrio define o primeiro instinto, que é o da gula ou do apetite da boca, não tanto como o comer em excesso ou como um tapar os sentimentos negativos, mas como uma preocupação temerosa com a saúde, como o medo de passar fome e de não possuir mantimentos e medicamentos suficientes e, ainda, como o medo de ficar doente através da ascese. [...]. Muitas pessoas se empanturram de comida porque não admitem experimentar sua própria ira. O comer, portanto, pode tornar-se também uma compensação prazerosa. É justamente no comer que muitas pessoas mostram que devoram a comida, mas são incapazes de realmente saboreá-la. A verdadeira ascese consiste em aprender a saborear. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 71).
A finalidade do comer consiste em unir-se a Deus. É por isso que em todas as religiões existem as refeições sagradas. Na Eucaristia, comendo o pão, nós nos unimos a Cristo e, por meio dele, ao próprio Deus. Assim, a mística possibilita descrever a nossa união com Deus como fruitio Dei, como gozo de Deus. O comer é, portanto, a ação fundamental pela qual podemos saborear a Deus. (GRÜN. Alselm, p. 72).
O segundo vício, o da luxúria, é descrito por Evágrio da seguinte maneira: “No caso do demônio da fornicação, trata-se da cobiça do corpo. Quem leva uma vida de abstinência, vê-se ainda mais prontamente exposto aos seus ataques do que uma outra pessoa. O demônio gostaria que ele afinal deixasse de se exercitar nessa virtude. Ele ainda lhe gostaria de fazer crer que esta virtude não lhe traria nenhum proveito. É próprio deste demônio apresentar à alma ações impuras, sujá-la e, por fim, seduzi-la a proferir palavras e ouvi-las como se toda a realidade desaparecesse diante de seus olhos” (EVÁGRIO. TratPrat 8).
A sexualidade é uma força determinante presente no ser humano. Nela está tanto a ânsia por vitalidade como por autossuperação e por êxtase. A sexualidade pode tornar-se uma das fontes mais importantes para a espiritualidade. Evágrio certamente não nega isso. No entanto, ele acha que o perigo está em refugiar-se dentro de um mundo de aparências. Pois a sexualidade tem muito a ver com a frustração. Muitos há que, por não suportarem a desilusão acabam se refugiando na sexualidade. [...]. Em vez de me encontrar com uma pessoa real e deixar-me envolver completamente por ela, utilizo a sexualidade para representar fantasiosamente meu próprio mundo, um mundo de aparências onde tudo é maravilhoso, onde eu não preciso levar ninguém em consideração, mas fico tão somente curtindo a minha sexualidade. (GRÜN. Alselm, p. 72-73).
Na atualidade, os mais variados relatos sobre abuso sexual de crianças e sobre assédio sexual de mulheres no ambiente de trabalho são certamente uma demonstração de que se trata de um perigo bem real. [...] a sexualidade é vista apenas como satisfação do desejo e não como expressão de um amor [...]. É assim que pessoas, a partir de uma sexualidade não plenamente integrada, acabam ferindo os outros em sua dignidade. Pois não há ferida mais dolorosa e violência mais brutal e humanamente mais indigna do que a sexual, principalmente quando ela rebaixa o ser humano ao nível de mercadoria. (GRÜN. Alselm, p. 73).
Evágrio, em sua descrição da luxúria, mostra não só que ele não rejeita absolutamente a sexualidade, acusação que com frequência se censura os primeiros monges. Ele mostra antes que a sexualidade – como também o comer – pode ser usada de forma errada para fugir da realidade, que a ira e a desilusão podem ser tapadas com comida. [...]. Somente quando a sexualidade é integrada por meio da via religiosa é que a espiritualidade se torna realmente viva. Uma espiritualidade que perdeu o sabor é uma prova de que a sexualidade não foi encarada nem aceita. Por isso Evágrio não nos aconselha a reprimir a sexualidade, mas a tratá-la conscientemente. Pois, sem este tratamento consciente da sexualidade, não existe nenhuma espiritualidade verdadeira nem humanamente madura. (GRÜN. Alselm, p. 73-74).
O terceiro logismoi da força instintiva cobiçosa do ser humano é, segundo Evágrio, a cobiça de posses. A ambição de possuir é essencial ao ser humano. Nesta aspiração encontra-se a ânsia por tranquilidade. O que esperamos das posses que possuímos é não ter mais nenhuma preocupação e poder assim abandonar-nos tranquilamente à vida. Porém, a experiência mostra que as posses também podem nos possuir, que somos possuídos pela nossa aspiração a possuir sempre mais. [...]. Nossa cobiça por posses jamais será satisfeita, caso a orientemos exclusivamente para as coisas mundanas. Pois, por mais posses que tivermos, a nossa ansiedade mais profunda por tranquilidade e sossego e pela harmonia conosco mesmos não poderá ser satisfeita. É por isso que a Bíblia transforma este instinto, apontando-nos os bens interiores, como é o caso da pérola preciosa e do tesouro no campo. Dentro de nós, isto é, em nossa alma, podemos encontrar uma imensa riqueza; é aí que encontramos Deus e todas as potencialidades com que nos agraciou. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 74-75).
Hoje em dia, certamente, também ocorre uma demonização das posses e uma ideologização da pobreza. Tudo isso não nos ajuda absolutamente em nada. Às vezes, a pobreza é até confundida com falta de cultura. Quando a pobreza é vista apenas como negação da vida, é porque ela ainda não é capaz de libertar-nos. A verdadeira pobreza sabe lidar com a aspiração pela posse de uma maneira bem humana. Ela se permite esta aspiração, mas sabe relativizá-la, uma vez que é conhecedora de uma riqueza mais profunda. Somente em vista deste valor interior é que seremos capazes de desprender-nos dos bens exteriores e libertar-nos da cobiça de querer possuir sempre mais. 


2) Ao âmbito emocional do ser humano Evágrio relaciona os três logismoi da tristeza, da cólera e da acídia3.

“A tristeza sobrevém, algumas vezes, quando o ser humano não realiza seus desejos. Às vezes, ele vem acompanhado da cólera. Quando surge pela frustração das necessidades e desejos, em geral ocorre da seguinte maneira: a pessoa é levada a pensar e a lembrar-se da casa onde nasceu, dos seus pais e da vida que levava no passado. Quando a pessoa não oferece resistência a esses pensamentos e até se deixa levar por eles ou mesmo se deleita com eles, embora só na imaginação, ele se apoderam inteiramente dela. Por fim essas representações se desvanecem e ela mergulha na tristeza. Sua situação atual a impede de que essas coisas passadas se tornem novamente realidade. E assim a infeliz alma, quando mais se deixa atrair pelos primeiros pensamentos, tanto mais se há de sentir abatida e humilhada” (EVÁGRIO. TratPrat 10). 
Evágrio distingue a tristeza (lypé) da aflição (penthos). [...]. A aflição pode chorar. Suas lágrimas podem amolecer a alma endurecida e fazer que ela se torne frutífera. É possível que as lágrimas da aflição se transformem em lágrimas de alegria. A tristeza, porém, não pode chorar, pois ela é choramingona e se banha em sua própria autocompaixão. Para Evágrio, a tristeza consiste sobretudo na dependência infrutífera do passado. Pois sempre de novo as pessoas imaginam os sentimentos de outrora em casa junto aos pais, na proteção, na despreocupação, etc. [...]. Para Evágrio, é sobretudo perigoso, diante da realidade presente, fugir para o passado, uma vez que o passado é algo definitivamente passado e nunca mais haverá de se tornar realidade. É possível aprender muito do passado para o momento presente. No entanto, se o passado se torna fuga de conflito presente, então ele se torna um obstáculo que nos impede de assumir as tarefas atuais e através delas amadurecer. (GRÜN. Alselm, p. 76).
Enquanto nós através da tristeza reagimos passivamente aos nossos desejos insatisfeitos, a cólera é antes uma reação ativa. Evágrio também consegue identificar a cólera como um dos demônios. O que se evidencia para ele é que na cólera o ser humano pode ser dominado completamente por uma outra força. “A cólera é a mais forte das paixões. Com efeito, diz-se que é uma ebulição da parte irascível da alma e uma indignação contra quem lhe fez algum ultraje ou contra que se presume que o tenha feito. Ela deixa a alma da pessoa furiosa o dia inteiro, mas é sobretudo na hora da oração que ela domina a mente, com a imagem do rosto que a contristou. Às vezes, ela dura mais tempo e se transforma em ressentimento, provocando então, durante a noite, as piores experiências. [...]”. (EVÁGRIO. TratPrat 11).
Evágrio analisou a cólera com bastante rigor. A cólera não é, para ele, uma mera agressão. Pois as agressões têm um significado absolutamente positivo. Pois as agressões pretendem regular a relação de proximidade e distância. [...]. No dizer de Evágrio, o demônio da cólera devora a alma humana. Hoje em dia, encontramos uma confirmação disso na psicologia que parte do princípio de que o câncer não raramente possui uma causa psíquica. Quando continuamente engolimos todas as raivas, em algum momento o corpo reage e, no sentido mais verdadeiro e real da palavra, ele será carcomido. (GRÜN. Alselm, p. 77-78).
O demônio mais perigoso é o da acídia, que corrompe o monge interiormente. Evágrio descreve a ação deste demônio da seguinte maneira: “O demônio da acídia, também chamado ‘demônio do meio-dia’, é o mais pesado de todos; ataca o monge pela quarta hora e sitia a alma até a oitava. Primeiro, o monge tem a impressão de que o sol demora muito a se mover e o dia tem pelo menos 50 horas! Depois, sente necessidade constante de olhar pela janela, sair da cela, examinar atentamente o sol para ver se falta muito para a nona hora [...]”. (EVÁGRIO. TratPrat 12). A acídia é a incapacidade de fazer-se presente no momento atual. Não se tem apetite nem para o trabalho nem para a oração. Nem mesmo saborear o não fazer nada. Pois sempre se está com os pensamentos num outro lugar. A acídia é uma expressão de fuga da realidade. Não se aceita encarar a sua própria realidade. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 79).
A acídia é também chamada de demônio do meio-dia, porque costuma manifestar-se nesta hora do dia. Mas isso pode também ser compreendido simbolicamente e, neste caso, a acídia é sobretudo o demônio da meia-idade. Na meia-idade perde-se o prazer pelo costumeiro. Então a pessoa se pergunta: para que tudo isso? Tudo quanto a pessoa produziu até então parece-lhe aborrecedor e vazio. E também não consegue detectar com que deva ocupar-se. [...]. Atualmente, a acídia também parece ser uma disposição fundamental de muitos jovens. Eles são incapazes de envolver-se e entusiasmar-se por alguma coisa. Não são capazes de viver no momento atual. [...]. Para os violentos dentre eles, a força bruta contra os outros é o único caminho para se sentirem vivos. Aqui fica especialmente patente quão destruidora a acídia pode vir a tornar-se. Aquele, pois, que é incapaz de viver, viverá às custas de outros e precisará castigá-los para se sentir a si mesmo. (GRÜN. Alselm, p. 79-80).

3) Os três logismoi da esfera espiritual são a ambição, a inveja e a soberba (hybris).

A ambição consiste no contínuo vangloriar-se diante dos outros. Tudo é feito unicamente para ser visto pelas outras pessoas. Evágrio descreve a ambição deste modo: “O pensamento da ambição é um companheiro deveras difícil. Ele tende a manifestar-se em pessoas que gostariam de viver virtuosamente. Desperta nelas o desejo de compartilhar com os outros a dificuldade de sua luta, procurando com isso a honra diante das pessoas. [...]”. (EVÁGRIO. TratPrat 13). A preocupação do que os outros pensam de nós, está relacionado ao que o Senhor Jesus Cristo falou aos que não creram n’Ele, por estarem com a mente voltada com as coisas concernentes a este mundo: "Como podeis crer, vós que recebeis a glória uns dos outros, e não buscais a glória que é só de Deus?” (Jo 5:4). Na ambição, eu penso continuamente nas pessoas e em suas opiniões. E acabo me perguntando: Como será meu modo de agir sobre elas? Elas também acham bom o que eu faço? E assim eu acabo não estando comigo mesmo e torno-me dependente do juízo das outras pessoas.
O que fico imaginando é: como, em minha próxima aparição no palco, causar a melhor impressão possível, para ser devidamente aplaudido? Naturalmente nos faz bem quando somos reconhecidos e confirmados. E seria certamente hybris se nós pensássemos que estamos totalmente livres do reconhecimento e do elogio. A busca de reconhecimento se introduz furtivamente em tudo que fazemos, até mesmo em nossa ação mais piedosa. Não se trata de nos livrar completamente dessa busca de reconhecimento, mas de relativizá-la de maneira a não nos tornarmos dependentes dela. Nós mesmos sentimos como é desagradável quando, por exemplo, já aos sessenta ou setenta anos, ainda prestamos atenção ao que os outros pensam e esperam de nós. Isso não é viver, mas tão somente ser-vivido. (GRÜN. Alselm, p. 80-81).
A inveja mostra-se na contínua comparação de si mesmo com os outros. Não sou capaz de encontrar-me com nenhuma outra pessoa sem comparar-me com ela. Imediatamente, começo a avaliar, a valorizar, a desvalorizar e a revalorizar. De um modo geral, procuro desvalorizar o outro no intuito de revalorizar-me a mim mesmo. [...]. Também na inveja eu não estou comigo, não estou satisfeito comigo mesmo e não tenho nenhum sentimento por minha dignidade, reconhecendo meu valor somente em comparação como os outros. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 81).
hybris, isto é, a soberba, torna as pessoas cegas. O soberbo se identificou a tal ponto com sua imagem ideal, que se recusa a encarar a própria realidade. “O demônio da soberba é aquela que provoca na alma as piores quedas. Ele seduz o monge a não procurar em Deus a razão de sua ações virtuosas mas apenas em si mesmo; e a considerar a si mesmo como a causa de todo o bem que faz e a se inchar de orgulho diante dos irmãos, considerando-os tolos por não o terem em tão alta estima. Tudo isso é depois acompanhado pela tristeza e, último dos males, pela perturbação mental e a loucura, que o faz ver uma legião de demônios no ar”. (EVÁGRIO. TratPrat 14). 

Pela hybris o ser humano ingressa no mundo aparente de seus próprios ideais, a ponto de chegar a perder o contato com a realidade. E isso o torna alienado, C.G. Jung chama esta atitude de inflação: A pessoa se envaidece de ideais e representações que, de fato, não lhe pertencem. A inflação sempre acontece quando nos identificamos com imagens arquetípicas, por exemplo, com a imagem dos profetas, e acabamos proclamando: “Eu sou o único que consegue perceber e que se atreve a dizer a verdade”. Ou, então, identificamo-nos com a imagem do mártir: “Eu não sou compreendido e preciso afinal sofrer, porque como Jesus sou tão diferente, porque respondo pela verdade sozinho”. [...]. [...]. Jesus cura o cego de nascença cuspindo no chão e esfregando-lhe a lama carinhosamente nos olhos, como querendo dizer-lhe: “Tu também foste tirado da terra. Reconcilia-te também com a sujeira que está em ti e em teus lados sombrios. Sê humano, pois então poderás ver novamente. Porque, enquanto negares tua condição terrena, também não serás capaz de ver”. (GRÜN. Alselm, p. 81-82).




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1. Segundo Dom Fernando Antônio Figueiredo, a apatheia não significa uma indiferença diante da vida, no sentido do vulgar de apatia, mas “um estado de paz interior” e “serenidade” atenta como “atitude do homem livre faze à vida” (cf. Curso de teologia patrística – A vida da Igreja primitiva (séculos IV e V). Vol. 3. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 177-186; sobre a “apatia gnóstica”, cf. Clemente de Alexandria, in Boehner, Philotheus & Gilson, Etiene. História da filosofia cristã. 6. Ed., Petrópolis: Vozes, 1995, p. 46-47). 

2. Cf. ROHR, Richard & EBERT, Andreas. O eneagrama – As nove faces da alma. 5. Ed., Petrópolis: Vozes, 1998, principalmente p. 45-49.
3. Acídia, no grego akedia, é um termo que também está presente na Vita Antonii, de Atanásio, e em Orígenes, onde significam “negligência”, “indiferença”, mas já vem acompanhado de termos que apontam para a acepção evagriana: “vileza”, “aviltamento”, “tristeza”, etc. mas Evágrio parece ter sido o primeiro a identificar o demônio da acídia com o “demônio do meio-dia”. É difícil precisar a diferença entre acídia e tristeza na lista dos oito vícios capitais. A tradição monástica oriental as distingue para sublinhar uma circunstância particular: acídia, segundo a definição de Evágrio, está ligada ao estado de vida anacorética e se contrapõe à permanência na cela e à vida solitária. 


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terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto para hoje (Parte 1)

Livro; O Céu começa em você [...]; Anselm Grün; Evangelho
Nos traz as sentenças dos padres do deserto contextualizado para os nossos dias. Elas nos farão ponderar para agirmos de modo que, possamos viver uma vida mais próxima a Deus. Conforme escrito no prefácio, ele nos diz: “É bem possível que para muitas pessoas as sentenças dos patriarcas e os escritos dos primeiros monges se mostrem como um mundo distante e estranho. Nem sempre é fácil fazer uma experiência interior semelhante através de uma linguagem diferente da deles. Porém, uma vez que tivermos descoberto a sabedoria que reside em suas palavras, elas dificilmente haverão de abandonar-nos. Pois os monges fizeram uma real experiência do que dizem, ou seja, eles nãos desenvolvem nenhum modelo teórico, mas suas palavras refletem “apenas” sua própria experiência”.
     No capítulo primeiro, o autor expõe a importância de vivermos: A Espiritualidade a partir da base, para que possamos trabalhar o que há em nós de obscuro, e que nos atrapalha para progredirmos na caminhada da fé, portanto é a partir da base que conseguiremos avançarmos para a parte de cima. “A espiritualidade que a teologia moralizante da modernidade tem transmitido parte de cima. Ela nos apresenta grande ideais que nós devemos alcançar. Semelhante ideal consiste na abnegação, no autodomínio, na amabilidade constante, no amor desinteressado, na liberdade diante da cólera e no domínio da sexualidade. A espiritualidade a partir de cima possui certamente uma importância positiva para pessoas jovens, à medida que ela as desafia e testa sua força”. (GRÜN. Alselm, p. 25).
O autor em sua alegação sobre a importância da espiritualidade a partir da base, não despreza a espiritualidade a partir de cima ou do topo, mas conclui, que a ordem deve se começar pela base, para que assim, consigamos examinar o que nos dificulta a progredirmos espiritualmente como dito anteriormente, para alcançarmos uma fé verdadeira e não para nos escondermos diante de nossa “piedade”.
“Os padres do deserto nos ensinam uma espiritualidade a partir da base. Eles nos mostram que devemos principiar em nós e em nossas paixões. Para os padres do deserto, o caminho para Deus sempre conduz ao autoconhecimento. Certa vez, Evágrio Pôntico formulou isso da seguinte maneira: “Se queres conhecer a Deus, aprende primeiramente a conhecer a ti mesmo!” Sem o autoconhecimento corremos o perigo de nossos pensamentos acerca de Deus serem meras projeções. Há também pessoas piedosas que, diante de sua própria realidade, se refugiam na piedade. Elas não se transformam realmente por suas orações e atitude piedosa, mas aproveitam-se da piedade unicamente para se vangloriarem diante dos outros e confirmarem sua inefabilidade.” (GRÜN. Alselm, p. 26).
Nos padres do deserto, porém, vem ao nosso encontro uma forma de piedade totalmente diferente. Aí se questiona, antes de tudo, acerca da sinceridade e da autenticidade. No entanto, isso conduz a uma compreensão afetuosa em relação a todos aqueles que não trilham o mesmo caminho. Poimen, um comprovado patriarca, remete um grande teólogo para a espiritualidade a partir da base. O ilustre teólogo desejava muito conversar com o patriarca Poimen sobre a vida espiritual, sobre as coisas do céu e sobre a trindade de Deus. Poimen, porém, não responde a nada disso, ficando tão somente a escutar. Já irritado, o teólogo se prepara para deixar o padre monástico. Aí, um de seus companheiros se dirige a Poimen e lhe diz: “Pai, foi por tua causa que veio este grande homem, tão reconhecido em sua terra. Por que não conversaste com ele? Em resposta, disse-lhe o ancião: Ele está nas nuvens e fala de coisas espirituais. Eu sou aqui de baixo e falo de coisas terrenas. Se ele me tivesse falado das paixões da alma, ter-lhe-ia respondido. Mas como fala sobre coisas espirituais, não sou capaz de compreendê-las” (Apot 582).
O patriarca Poimen se utilizou desta sentença, para explicar a importância de se iniciar a partir da base, e não de cima, do topo. Se não estamos preparados a lutar contra a nossa ‘carne’, os maus desejos, a ira, a raiva, a inveja e os vícios e, que combatem contra o Espirito, então não conseguiremos atingir a espiritualidade da parte de cima. Este apotegma tem certa relação com as cartas de São Pedro e de São Paulo e, que faz-nos refletir acerca das paixões da carne; na primeira carta de São Pedro no Cap. 2: 1-3 nos diz: “Portanto, livrem-se de toda maldade e de todo engano, hipocrisia, inveja e toda espécie de maledicência. Como crianças recém-nascidas, desejem de coração o leite espiritual puro, para que por meio dele cresçam para a salvação, agora que provaram que o Senhor é bom”. E, em Gálatas, Cap. 5: 16-17 nos diz: “Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne. Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer”.
O teólogo parte de uma espiritualidade de cima. Ele fala diretamente de Deus e de coisas espirituais. Para Poimen, porém, o caminho espiritual começa nas paixões da alma. São as paixões da alma que devem ser primeiramente observadas e é com elas que se deve lutar. É somente então que se compreende algo acerca de Deus. Sim, o tratamento das paixões é, para Poimen, o caminho até Deus. (GRÜN. Alselm, p. 27).
São Bento definiu esta espiritualidade a partir da base em seu capítulo sobre a humildade, isto é, sobre a humilitas. Ele toma a escada de Jacó como imagem para nosso caminho até Deus. O paradoxo do nosso caminho espiritual está no fato de subirmos para Deus à medida que nos rebaixarmos até nossa própria realidade. E é assim que ele entende a palavra de Jesus que diz: “Quem se humilha a si mesmo, será exaltado” (Lc 14,11; 18,14).
É descendo para dentro de nossa condição terrena (húmus, humilitas) que nós estamos em contato com o céu, com Deus. Pois, à medida que nós temos a coragem de descer até as nossas próprias paixões, elas nos elevam a Deus. Por ser esta humildade o caminho mais vil e desprezível para se chegar a Deus, isto é, por ser ela o caminho da própria realidade para se alcançar o verdadeiro Deus, é que ela foi tão exaltada pelos padres monásticos. Aquele, porém, que almeja o céu com facilidade, nada encontrará além de sua imagem pessoal a respeito de Deus e suas próprias projeções. (GRÜN. Alselm, p. 29).
O que precisamos fazer é, através dos pecados, mergulhar dentro de nossa profundidade mais abissal. Porque é a partir do mais baixo que poderemos ascender até Deus. Esta ascensão para Deus corresponde à ansiedade originária do homem. A filosofia de Platão já girava em torno disso, isto é, segundo ele o homem só ascende até Deus por meio de seu espírito. Os padres da Igreja veem em no Senhor Jesus Cristo, antes de ele ser elevado ao céu (cf. Ef 4,9) e pelo fato de ser aquele que por primeiro se rebaixou, um outro modelo para a nossa ascensão até Deus. Desse modo, antes de podermos comunitariamente e por meio de Jesus ascender até Deus, nós devemos, antes de mais nada, rebaixar-nos para dentro de nossa humanidade da maneira como Deus o fez em Jesus. (GRÜN. Alselm, p. 29-30).
Às vezes os monges também falam a respeito de como nós podemos aprender a humildade: “Certa vez um ancião foi perguntado: ‘O que é a humildade?’ E ele respondeu: ‘A humildade é uma grande obra; uma obra divina! O caminho para a humildade, porém, deve ser este: realizar trabalhos corporais, considerar-se um homem pecador, submeter-se a todos’. Aí o irmão lhe perguntou: ‘O que significa ser submisso a todos?’ E o ancião replicou: ‘Ser submisso a todos é quando alguém não presta atenção às falhas dos outros, mas antes atenta para as próprias, e quando alguém suplica sem cessar a Deus”. (Apot 1083).
Desse modo, o patriarca aponta exercícios concretos de como o monge pode aprender a humildade. Estes exercícios se apresentam a nós como sendo demasiadamente negativos. E, no entanto, o que está em jogo nestes exercícios é eu ver e abraçar minha própria verdade em vez de preocupar-me com os pecados dos outros. Pois humildade significa que eu sigo a Cristo de uma maneira silenciosa e não que eu fique vociferando por aí diante de todos dizendo o que faço de bom. Assim diz um patriarca: “Como um tesouro, uma vez aberto, é diminuído, do mesmo modo diminui uma virtude que sido posta em público. Pois, como a cera derrete por estar próxima ao fogo, assim também a alma perde grande parte de sua intenção pura quando diluída pelo elogio” (Apot 1054). Diz ainda outro padre do deserto: “É impossível, acrescenta ele, gozarmos do elogio e da glória do mundo e ainda produzirmos frutos para o céu” (Apot 1053). O fruto do Espírito Santo só poderá crescer em nós se formos capazes de renunciar a mostrá-lo a todas as pessoas ou declará-lo de algum modo às pessoas que nos cercam. (GRÜN. Alselm, p. 31-32).
     No capítulo posterior, Permanecer em si mesmo: Nos orienta, enfatizando que devemos permanecer em nós mesmos para criarmos ‘raízes’, suportando a nós mesmos, assim progrediremos na fé. “Os patriarcas aconselham repetidamente a permanecer na cela, a auto suportar-se e a não fugir de si mesmo. Stabilitas, a estabilidade – ou seja, o autossuportar-se ou o permanecer-em-si – é a condição para todo progresso humano e espiritual. São Bento vê na stabilitas, isto é, na estabilidade ou na permanência, o remédio para a doença de sua época, que é a época da invasão dos povos bárbaros, da incerteza e da incessante movimentação. Stabilitas significa, para ele, a permanência na comunidade na qual ingressa. E isto significa, para São Bento, que a árvore precisa enraizar-se para poder crescer. O transplante continuado simplesmente retarda o seu desenvolvimento”. (GRÜN. Alselm, p. 36).
Entretanto, stabilitas significa, em primeiro lugar, permanecer em si mesmo, a capacidade de perseverar diante de Deus em sua própria cela. Por isso diz pai Serapião: “Filho, se queres ter proveito, permanece em tua própria cela, presta atenção em ti mesmo e em teu trabalho manual. Pois o sair por aí ao léu não te traz progresso profícuo como o permanecer em silêncio em tua cela” (Apot 878).
Mas não basta simplesmente permanecer em sua cela. Acerca de pai Amonas é-nos transmitida a seguinte palavra: “Um homem pode permanecer nem sua cela durante cem anos sem, contudo aprender o modo adequado de como se deve permanecer nela” (Apot 670). Como, então, deve o monge permanecer em sua cela? Pensa-se aqui numa atitude exterior de corpo, num modo determinado de permanecer em meditação, que mantém alguém em vigília? Ou trata-se aqui da atitude interior ao permanecer na cela? (GRÜN. Alselm, p. 37).
Supõe-se que pai Amonas esteja pensando na atitude da stabilitas, isto é, da estabilidade. Não é um estar sentado no qual me entrego a devaneios, no qual cochilo, mas é um estar sentado no qual sento e permaneço imóvel. Mesmo quando em mim tantas coisas se agitam, mesmo quando os pensamentos de vez em quando me assaltam de todos os lados, ainda assim permaneço imóvel. Eu resisto. E assim, através da serenidade exterior, a tormenta dos pensamentos e dos sentimentos haverá de serenar. (GRÜN. Alselm, p. 37).
Há sempre dois aspectos que devem ser cumpridos quando se permanece na cela: um é o autoconhecimento, o outro, o ser tomado completamente por Deus. “Pai Antão disse certa vez: ‘É muito proveitoso que nós procuremos abrigo em nossa cela e que, ao longo de nossa vida, ponderemos bastante acerca de nós mesmos, até que saibamos qual é o nosso ser. Se suportares ficar na cela, então estarás atento para a tua morte. Se rezares continuamente, tanto de dia como de noite, então estarás aguardando tua própria morte’” (Am 35,13 III, 147).
“Um irmão perguntou a pai Antão: ‘Pai meu, de que modo se deve permanecer sentado na cela?’ E o Ancião respondeu: ‘Aquilo que aos homens é visível é o seguinte: jejuar até a noite durante todos os dias, estar vigilante e exercitar a meditação. Mas o que fica escondido aos homens é o desprezo de si mesmo, a luta contra os maus pensamentos, a benignidade, a meditação sobre a morte e a humildade do coração como fundamento de todo bem’” (Am 37, 12, III, 148).
Blaise Pascal, 1400 anos depois, percebeu que a causa da miséria humana está no fato de ninguém mais conseguir suportar-se a si mesmo em seu próprio quarto. Hoje em dia, passou a ser algo por demais normal a incapacidade de suportar-se e assim saltar de um lugar para outro. As pessoas se dispersam com uma facilidade tremenda. Basta ficar zapeando os canais da televisão de um programa para outro. No entanto, o que acontece em nossa alma? Nada mais pode amadurecer, nada mais pode crescer. Não acontece mais nenhuma verdade, uma vez que o amadurecimento carece de serenidade. E é a cela que nos conduz para a verdade. Ela confronta-nos com a nossa própria verdade. No entanto, este é o pressuposto fundamental para todo e qualquer amadurecimento humano. E é também a condição para uma convivência saudável. (GRÜN. Alselm, p. 41).
     “No capítulo: Em Deserto e tentação, o monaquismo sustenta a importância do deserto, como objetivo para estarmos a sós, para que assim, longe do burburinho do mundo e desprendidos estarmos mais sensíveis à presença e a voz de Deus.  Para os antigos o deserto era a morada dos demônios. Antão ao ir para o deserto, foi com a intenção de lutar com os demônios dentro de seu domínio ou habitação”. A decisão de Antão de instalar-se no domínio dos demônios foi certamente uma decisão bastante heroica, mas foi também um desafio aos demônios na medida em que eles o visitavam e sempre de novo procuravam reconquistar seu próprio domínio e habitação, expulsando-o dali. [...]. (GRÜN. Alselm, p. 44).
No deserto Antão luta contra os demônios em favor dos homens. Esta é sua contribuição para a melhoria do mundo, pois, tendo-se retirado dele, se põe em luta com os demônios em vista de um mundo mais saudável. Segundo Antão, o deserto é o lugar em que os demônios se apresentam de uma maneira bastante clara, isto é, de uma maneira menos dissimulada. Assim com Jesus fora tentado pelo diabo no deserto ao ser conduzido para lá pelo Espírito Santo, do mesmo modo os monges que vão para o deserto precisam contar com a luta contra os demônios. O monge é essencialmente um lutador. E os patriarcas sempre são elogiados quando se tornam vencedores na luta. (GRÜN. Alselm, p. 44-45).
Depois que o diabo deixou Jesus, vieram os anjos e o serviram. Desse modo a montanha em que aconteceu a tentação se tornou a montanha do paraíso. É esta mesma experiência que os monges realizam. O deserto não é só a arena dos demônios, o lugar em que não é possível esconder-nos da nossa própria verdade, o lugar em que somos confrontados mais cruelmente conosco mesmos e com as nossas regiões mais sombrias. O deserto é também o lugar da maior proximidade de Deus. O povo de Israel já o havia experimentado como o lugar onde se realizava a experiência da maior proximidade de Deus. Deus conduziu o povo de Israel através do deserto a fim de fazê-lo entrar na Terra Prometida. (GRÜN. Alselm, p. 45).
Foi assim que os monges experimentaram o deserto como o lugar em que Deus lhes estava bem próximo, o lugar onde puderam sentir o amor de Deus de uma maneira mais intensa por não estarem impedidos por nenhuma sedução mundana. Contudo, para sentir esta proximidade de Deus, o monge precisa assumir a luta com os demônios. Esta luta com os demônios traz consigo muitas tentações. A tentação é o lugar em que o monge encontra os demônios. Mas é também o lugar em que o monge, à medida que obtém bons resultados por meio da tentação e ao vencer os demônios, cresce em virtude e força e em clareza interior. (GRÜN. Alselm, p. 45-46).
Para os monges, a tentação pertence essencialmente à sua vida. O patriarca Antão expressa isso da seguinte maneira: “A maior obra dos homens é esta: ser capaz de manter seus pecados diante de Deus e estar preparado para a tentação até o último suspiro” (Apot 4). A vida humana é marcada por conflitos constantes. Nós não podemos simplesmente vegetar. Devemos enfrentar os ataques que a vida eventualmente nos apresentar. E nunca haverá um momento em que possamos descansar sobre os louros da vitória. As tentações, ao contrário, haverão de nos acompanhar até o fim da vida. Ainda num outro lugar diz o patriarca Antão: “Quem não tiver sido tentado não poderá entrar no reino do céu. Se suprimires a tentação, ninguém se salvará” (Apot 5).
Segundo o patriarca Antão, as tentações são manifestamente uma condição indispensável para se entrar no Reino do Céu. É através das tentações que o homem pode perceber o Deus verdadeiro. Sem tentação o homem estaria no perigo de apoderar-se de Deus e torna-lo inofensivo e inócuo. Pela tentação, porém, o homem experimenta existencialmente a sua distância de Deus, sente a diferença entre o homem e Deus. O homem permanece em luta constante, enquanto Deus repousa em si mesmo. Deus é amor absoluto, enquanto o homem é continuamente tentado pelo inimigo. (GRÜN. Alselm, p. 46).
As tentações, assim dizem os monges, levam-nos ao encontro de nossa humanidade. Elas nos fazem entrar em contato com as raízes que sustentam o tronco. Colocar-se diante das tentações significa: confrontar-se com a verdade. Um dos patriarcas expressa-se a este respeito da seguinte maneira: “Sem as tentações ninguém será santo, pois aquele que foge do proveito da tentação também foge da vida eterna. Com efeito, tentações há que prepararam aos santos as suas coroas” (N 595).
É possível que muitas pessoas tenham problemas semelhantes, ao pedirem, no Pai-nosso, que Deus as livre das tentações. Ora, Jesus nos fala aqui de um outro tipo de tentação, que é a tentação da traição. “Não nos deixes cair em situação de traição. É assim que Jesus ensina seus discípulos a rezar, e é também dessa maneira que ele mesmo reza por eles (cf. Lc 22,31s.; também Jo 17,14s.)” (MATHÄUS GRUNDMANN, 203). Os monges, em contrapartida, pensam nas tentações dos pensamentos, nas tentações das paixões e dos demônios que existem em nós. As tentações fazem parte essencial de nossa natureza e são elas que nos tornam mais experimentados. Contudo, isso também significa que nós não conseguiremos chegar a Deus com uma vestimenta branca. Ao contrário, é próprio de nossa condição estarmos em conflito com os demônios e sermos também sempre de novo feridos. (GRÜN. Alselm, p. 48).
Os monges não pedem que sejamos perfeitos e sem defeitos, corretos e sem máculas. Aquele que se familiariza como os demônios por meio da tentação encontra a verdade de sua alma e descobre abismos de seu inconsciente, os pensamentos homicidas, as representações sádicas e as fantasias imorais. Nós só nos tornamos seres humanos maduros quando nos confrontamos com esta verdade, quando somos experimentados por meio da tentação. Assim se expressa um patriarca: “Quando rezamos ao Senhor: ‘não nos deixeis cair em tentação!’ (Mt 6,13), não estamos pedindo para não sermos tentados, uma vez que isso seria até mesmo impossível, mas pedimos para não sermos devorados pela tentação ou fazermos algo que desagrade a Deus. É isso que quer dizer ‘não cair em tentação’” (Apot 1159).
Sem tentação o monge torna-se desleixado, descuida de si mesmo e passa pura e simplesmente a vegetar. As tentações forçam-no a viver conscientemente, a exercitar a disciplina e a ficar vigilante. É por isso que os monges não rezam para que as tentações cessem, mas rezam para que Deus lhes dê força suficiente como vem dito: “Conta-se que mãe Sara viveu durante treze anos fortemente atacada pelo demônio da fornicação. Ela, porém nunca pediu para que cessasse o combate, mas dizia: ‘Ó Deus, dá-me força!’” (Apot 884). E, por fim, ela acabou vencendo. Pois o espírito impuro disse a ela: ‘“Sara, tu me venceste!’ Ela, porém, respondeu: ‘Não fui eu que te venci, mas Cristo, meu Senhor’” (Apot 885). A tentação obriga-nos a lutar. Porque sem luta não há vitória. Vencer, porém, jamais é mérito nosso. Nós precisamos fazer a experiência de que, por meio da luta, Cristo age em nós e, de repente, nos liberta da luta constante e nos dá uma profunda paz. (GRÜN. Alselm, p. 50).


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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Antônio: O santo do amor (Parte 2)

A RÁPIDA DECEPÇÃO

Quando Fernando entra para o serviço dos regrantes agostinianos, o prior de São Vicente de Fora é dom Pedro Mendes e o diretor espiritual dos noviços, que será seu primeiro mestre no mosteiro, dom Gonçalo Mendes. O próprio dom Gonçalo virá a tornar-se, mais tarde, o prior da casa. 
Ali, o rapaz almeja sentir-se distante do burburinho e da turbulência da cidade, que está sempre a receber mercadores, aventureiros e soldados, marinheiros e cruzados, gente de toda espécie. Palco de intenso combate em período recente, e sujeita a nova invasão a qualquer momento, Lisboa ainda é uma cidade de leis frágeis, onde ocorrem grandes arruaças e os costumes são violentos. Fernando conclui que fez a escolha acertada. Finalmente, interno do mosteiro, poderá estudar com tranquilidade, dedicar-se a uma vida devota e ao mesmo tempo ajudar os doentes e necessitados.
Esse novo estilo de vida implicou a renúncia à família, que não mais tomará a exercer influência sobre os destinos do filho. O pai teria preferido, já o sabemos, vê-lo cavaleiro e homem-bom do reino, como ao irmão Pedro, mas a mãe devota sabe tão bem como ele que o destino de um filho primogênito com frequência o conduz ao claustro, e provavelmente, como as outras mães da época, se conforma melhor a isso; no fundo, ela julga mesmo ser essa a melhor alternativa de vida para este filho sensível.
Bem logo, no entanto, o noviço perceberá a incompatibilidade entre seu projeto de vida e a instalação em um mosteiro tão próximo de rebuliço de uma cidade que se desenvolve rapidamente. Quando se recolheu entre as paredes do claustro, imaginou a si próprio – como viria a escrever anos mais tarde – em situação semelhante à das mulheres que foram procurar Jesus no sepulcro e se viram diante do problema de retirar a grande pedra que o fechava.
É verdade que no mosteiro pode-se conversar sobre as questões religiosas e culturais, e os monges que vêm do estrangeiro trazem assuntos importantes e discussões como a causada pela proibição, em 1202, do estudo do antigo filósofo grego Aristóteles em Paris. (No entanto, o pensamento aristotélico viria a ser incorporado pela teologia católica poucas décadas depois, pelas mãos do monge dominicano São Tomás de Aquino, que se tornaria mestre da própria universidade de Paris, a Sorbonne, em 1256.) Mas o tom geral da conversação, lá dentro, é bastante diferente. Dom Gonçalo e outros líderes agostinianos se orgulham de receber entre os monges um novo membro tão importante, de família fidalga, ao passo que o noviço prefere passear sozinho pelos corredores do claustro. A estada de Fernando em São Vicente de Fora acaba durante apenas pouco mais de dois anos. Págs. 60-62.

[...]. 

EM SANTA CRUZ

[...].

Fundado oitenta anos antes pelo arcediago dom Telo e mais doze seguidores, o mosteiro de Santa Cruz tem tradição de estudo e santidade. Dom Telo viera inspirado pelo exemplo dos monges orientais que conhecera durante uma viagem de quatro anos pela Palestina e por Constantinopla, acompanhado pelo bispo de Coimbra, dom Maurício Bordinho. Assim, ao fundar Santa Cruz com seus discípulos, dom Telo torna-se um dos pioneiros da retonificação do movimento monástico na Europa ocidental. Em 1130, dom Afonso Henriques doa aos novos cônegos regrantes as terras ao redor da Igreja de Santa Cruz, em que haviam se instalado, além de mandar construir o claustro e outros anexos necessários à ampliação do lugar. O rei, que sempre que podia se juntava aos internos nos momentos de oração, foi nomeado cônego honorário e, posteriormente, anunciou a fundação da abadia a Adriano IV (Nicolas Breakespeare, pontífice de 1154 a 1159), o único papa inglês da história. A propósito, foi esse período um dos mais internacionalistas da Igreja, em que o papado de Roma completava a solidificação de sua autoridade sobre os bispados regionais – tendo sido Inocêncio III o pontífice mais eficaz nesse sentido. Menos de cinquenta anos depois da morte de Santo Antônio, em 1276-1277, também houve um papa, João XXI – Pedro Julião –, a quem se atribui origem portuguesa.
O mais importante talvez, nesta altura da história é que dom Afonso guardava em Santa Cruz os tesouros resultantes de suas incursões anuais às terras mouras do sul. Assim, o mosteiro se torna uma espécie de caixa-forte do primeiro rei português. Embora seus bens não possam ser usufruídos pelos religiosos residentes, as doações para atender às necessidades vitais dos internos são régias. Págs. 66-67.

[...].

A realidade é que a pobre ermida fundada por dom Telo e São Teotônio tornara-se uma rica abadia, com as doações dos reis e da nobreza que para lá enviava seus filhos. Era o mosteiro do reis, a abadia da Corte – com tudo o que isso implicava. Assim, à revelia daqueles que ali buscavam um lugar de contemplação e oração (como Fernando Martins), ou de prática voltada ao bem-estar da comunidade, eram os que queriam se aproximar do poder, os ambiciosos e os bajuladores, passavam a se dirigir ao mosteiro, pedindo para nele se internar – ou os filhos secundogênitos da nobreza do reino, que mesmo sem herança podiam gozar vestidos de monges as benesses do tesouro real. Por isso mesmo as admissões tinham passado a ser controladas pelo rei e por seu apaniguado.
E fora assim que dom João César, clérigo da nobreza, mais ligado aos bens materiais e ao jogo do poder, assumira o priorado do mosteiro em 1196, protegido por dom Afonso II, então príncipe, ainda. Pág. 71. 

FINALMENTE

Num dia de meados de 1220 (em junho, ou talvez até em agosto, não se guardou a data), assim que raia o sol, os novos companheiros vêm buscar o cônego Fernando Martins no mosteiro dos agostinianos. Ali, na frente de todos, ele se descalça e troca o elegante traje branco dos cônegos pela áspera veste franciscana, com a grossa corda sobre a cintura. Ouve-se a voz de um agora ex-colega, um cônego, que diz em tom de gracejo:
- Isso, vai! Podes ir, que ainda vais ser santo.
Já em seu novo traje, o homem que parte responde apenas:
- Quando te contarem que me tornei um deles, louvarás a Deus.
Quando chega a Santo Antão já se tornou outro homem. A partir de agora ele será frei Antônio.
Para aquele que foi Fernando Martins faz-se outra vez a luz, o mundo é criado novamente.
O franciscanismo vem, como um descobrimento oceânico, aperfeiçoar e aprofundar sua vocação. Quase se poderia falar, na verdade, em mudança de vocação, em redescoberta pessoal, ao ponto de envolver a mudança do próprio nome.
O que ficou para trás, no entanto, não será desperdiçado. Se por um lado pode-se falar que Fernando já era uma espécie de franciscano entre os agostinianos (tinha “alma franciscana”, como se diz), com certeza é ele quem levará para a ordem de Francisco de Assis a teologia, o gosto pelo estudo e a disciplina aprendida nos mosteiros de Agostinho de Hipona.
A Igreja Católica está no bojo de sua primeira grande reforma, uma reforma que não envolve a separação de outras igrejas da sé de Roma, mas uma espécie de resgate da tentativa de viver mais literalmente os ensinamentos de Jesus. Pág. 95.

[...]. 

A REVIRAVOLTA DAS LETRAS

O talento desse homem único produz uma reviravolta nas políticas da ordem franciscana. Até então, Francisco de Assis, considerado avesso às letras, aos livros, e até ao uso da palavra como meio de convencimento – pelo que isso representava de estímulo ao orgulho e à vaidade, por tudo o que constituía como instrumentos de poder –, pregava que os membros de sua ordem só podiam usar o exemplo de vida, a humildade, a oração, a vida pacífica, como maneiras de comunicar sua mensagem. Um noviço que pedira autorização a Francisco de Assis para ter um livro de salmos recebera do santo uma resposta negativa. Frei Francisco, vendo na posse de um livro a possível causa de um problema interior da própria ordem, explicara que o irmão que o tivesse certamente trataria com ar de superioridade aos outros irmãos, como um senhor a seus empregados.
Não deixava de ter seu tanto de razão. Para ele, o ensino devia se processar de modo espontâneo, ao sabor das oportunidades que surgissem, ao ajudar um leproso, ao encontrar por acaso um doente ou um desvalido: para isso não é necessário ser Letrado, o Espírito Santo ilumina com a inspiração adequada no momento certo. Disso Antônio já tomara conhecimento ao ouvir contar as tantas histórias que corriam sobre Francisco, antes de conhecê-lo, quando viera ter, quase náufrago, à Sicília.
Francisco chegara, inclusive, a cortar pela raiz uma primeira tentativa de dar luzes intelectuais à ordem, mandando fechar a escola instalada no mosteiro de Bolonha por frei João de Estácia. Dizia-se mesmo que o santo de Assis chegara a usar palavras muito duras e amargas para vituperar a tentativa de estabelecer um ensino franciscano, tendo inclusive amaldiçoado frei João e os irmãos seus alunos, expulsando-os da abadia de Bolonha, inclusive os doentes com dificuldade de locomoção, como já vimos. Somente a chegada do cardeal Hugolino, protetor da ordem, teria revertido – ou pelo menos amenizado – a fúria anti-intelectualista de Francisco. Ao reprisar o episódio, pensamos que, como esse comportamento não condiz com a biografia do santo de Assis, acabamos por adentrar provavelmente o terreno pantanoso do boato e do comentário malicioso, difundidos por seus adversários (tanto os anticatólicos como os “católicos demais”). O mais certo, portanto, é fazer alguns descontos a esses relatos, embora preservando a ideia de que Francisco ama a humildade, por mais que seja fruto da ignorância, e aborrece o intelectualismo arrogante.
No entanto, se por um lado ai daquele que viesse falar em dialética ou em retórica em casa franciscana (pois Jesus tampouco as usou, e como ele devíamos recorrer somente às parábolas de entendimento fácil), por outro a ignorância geral em matéria religiosa adubava campo fértil para todo tipo de heresia. Antônio surge na ordem franciscana como o elemento articulado que, a par de ser capaz de lidar, com sua humildade, de igual para igual e sem arrogância com o povo, também sabe como transmitir a doutrina de acordo com os ensinamentos canônicos da Igreja. Vem formado pela ordem agostiniana, e já Santo Agostinho, tantos séculos antes, elaborava o discurso e os argumentos para vencer as teses heréticas em voga na época de Francisco e de Antônio. Antônio chega para materializar a prédica em que entram coração e razão, em que se mesclam devoção e raciocínio.
Assim como se chegou a dizer que Francisco, desconfiado dos demônios que se escondiam (ou que se revelam) nas palavras impressas, proibira que os membros de sua ordem tivessem livros, também se afirma que foi Antônio, com sua atitude, quem conseguiu provar ao mestre ser possível ler e estudar sem tornar-se arrogante, sem incutir nos ignorantes a noção de que são inferiores aos doutos simplesmente por não saberem ler. Que, em suma, Antônio teria sido o único membro da ordem a receber do próprio fundador a permissão para possuir e ler livros.
Na verdade, a proibição de livros chegou a ocorrer, mas havia outro motivo mais forte: o de que, sendo interditada aos franciscanos a posse de bens materiais, os livros entravam nessa categoria.
Certamente, o frade vindo de Portugal contribui muito para que seu herói, o fundador da ordem, reveja em parte suas posições, passando a encarar o estudo e as letras como benéficas quando se destinam a pavimentar os caminhos do amor ao próximo e da santidade. Págs. 126-128.

[...]. 

O SERMÃO AOS PEIXES

É de Rímini que vem o relato do primeiro milagre de Antônio em solo italiano. No entanto, ao chegar à cidade, em 1223, as coisas não são nada fáceis: é natural que ele não encontre a benevolência daqueles a que pretende se dirigir. Nos primeiros dias no lugar, sai a pregar pelas praças principais. Para ouvidos moucos. Não é agredido, tampouco sua pregação é agressiva, mas fazem pouco-caso ou zombam dele e de sua serenidade.
Um belo dia, seguindo uma inspiração, Antônio vai até a foz do rio Marecchia. Ali, “da parte de Deus” (como diz o relato medieval de suas “florezinhas”, ou milagres), dirige seu sermão aos peixes:
- Peixes do mar e do rio, serão vocês a ouvir a palavra de Deus, já que os homens, infiéis, a desprezaram. Num instante, acorre para junto dele uma enorme quantidade de peixes, tal como nunca se vira nesse lugar, que erguem a cabeça para fora da água. Atentos, eles parecem prestes a ouvir com devoção as palavras do frade. Diz o relato que até se colocam em ordem: os menores mais junto à areia, os médios logo atrás e mais ao fundo os maiores. Antônio retoma o sermão:
- Peixes, nossos irmãos, vocês devem dar graças ao Senhor conforme a sua possibilidade, pois Ele lhes deu como morada um elemento muito nobre: a água, doce e salgada. Além disso, deu a vocês, nela, abrigo contra tempestades. Ele fez a água clara e transparente para que possam ver os caminhos por onde devem andar e a comida que os alimenta. O Senhor, generoso e bom, ao criá-los, abençoou-os e deu-lhes o preceito de se multiplicarem. Quando veio o dilúvio e os outros animais que não entraram na arca morreram, Deus fez que fossem vocês os únicos a escapar vivos.
E nessa toada prossegue frei Antônio, enquanto os peixes, cada vez em maior número, abrem a boca e inclinam a cabeça, como se estivessem louvando a Deus da forma que lhes é possível, até a conclusão da prédica:
- Por todas essas graças, vocês devem bendizer ao Senhor. Bendito seja Deus para sempre, pois é mais venerado e honrado pelos peixes do rio e do mar que pelos homens infiéis. Os seres irracionais ouvem melhor a palavra de Deus do que os homens, racionais.
Durante o sermão, o número de pessoas que se aproxima também aumenta a cada passo. Admirada, a multidão recém-formada cai de joelhos ao fim da homilia, pedindo que Antônio também lhe dirija a pregação.
O santo dá licença aos peixes para mergulharem, e assim que ele os abençoa os animais voltam para o fundo da água. Enquanto isso, surpresos e maravilhados, vários daqueles homens que o hostilizavam vão se reunindo em redor dele. É então que Antônio inicia um novo sermão desta vez dirigido às pessoas, e o faz com tamanha convicção que acaba por converter todos os assistentes que ainda não se haviam deixado convencer ao ouvir suas palavras aos peixes. Págs. 130-132. 


A PROVA DA MULA

A notícia do milagre dos peixes se espalha rapidamente. Logo no dia seguinte, durante a pregação de Antônio ao povo de Rímini, um dos líderes da cidade, chamado Bonomilo (ou Bonilo) lhe propõe um desafio: ele tem uma mula, que deixará em jejum durante três dias. No quarto dia, a mula será solto na praça, tendo de um lado um monte de aveia e do outro Antônio com o ostensório da comunhão erguido à sua frente. Como os cátaros não acreditam na presença de Cristo na eucaristia, o chefe aceitará render-se a Ele se a mula se dirigir para a comunhão em vez de partir direto para o monte de aveia. Antônio aceita a prova, mas com uma ressalva: se a mula preferir a aveia à hóstia consagrada, isso não significará que a eucaristia não tenha valor, mas sim que ele, Antônio, como um simples pecador, não terá merecido a dignidade e a graça do milagre divino. Bonomilo e seus asseclas apenas riem, ridicularizando a resposta do frade franciscano. 
Antônio também passa os três dias em jejum – e em oração. No quarto dia, no fim da tarde como foi combinado, dirige-se para a praça. O líder cátaro chega logo depois com sua mula, visivelmente enfraquecida. Muita gente já está lá, tendo rumado para a praça depois dos afazeres diários. O dono do animal vira-o para a direção do monte de aveia e estimula-o a comer. A mula, porém, se volta para o outro lado, onde está Antônio, e com passo trôpego chega à frente do ostensório. Ao chegar ali, dobra as patas dianteiras, como que se ajoelhando diante da hóstia. O murmúrio cresce na multidão, tanto entre os que não tinham presenciado o sermão aos peixes como entre os que apenas tinham ouvido falar nele.
O dono da mula se dirige a Antônio:
- Em verdade a sua fé me convenceu. E comigo se convertem todos os meus seguidores aos ensinamentos da Igreja.
Com a difusão do relato de mais essa maravilha, é nesse período que começa a se firmar entre o povo a fama de Antônio como santo milagreiro. No entanto, ele nunca aceitará a fama. Diz frei Antônio que, se milagre há, é Deus quem o realiza, não ele, um simples homem e pobre frade franciscano. É quase como se ele não percebesse a imensidade das maravilhas que cercam sua vida – pois é bem verdade que, se deixasse estagnar o pensamento sobre elas, muito cedo se esvairia sua humildade... e também a possibilidade de novos eventos miraculosos.
Por isso, conta-se também que, sempre que ocorre algo que possa ser classificado como milagre, Antônio impõe o silêncio a quem o recebe ou aos que o testemunham – imposição inútil, aliás. Pois quem consegue fechar a boca do povo, ainda mais em assuntos como esse? Haverá exageros, claro, e quanto mais tempo se passar, no futuro, depois da morte do santo, mais avultarão as maravilhas vividas, vistas ou de que se ouviu falar. Por outro lado, sempre haverá algo inefável que não sabemos e que almas discretas terão guardado para si, respeitando a ordem de Antônio. Págs. 132-133.

[...] 


O PÃO DOS POBRES

A fome é rara entre os camponeses e os pobres burgos. Sempre que tem tempo para isso, Antônio enche um cesto com pães fabricados no convento e os leva à praça para distribuir entre os pobres. Um dia, inadvertidamente, carrega consigo todos os pães que os irmãos haviam preparado nãos só para a distribuição aos necessitados como para o consumo próprio. 
É somente ao retornar para o convento que percebe o suposto engano, e lamenta o ocorrido. Apesar de os irmãos franciscanos dizerem que o pão esta ali para isso mesmo, frei Antônio lembra que eles também são pobres como os outros e, portanto, também merecedores da dádiva do pão ofertado.
O fato é que, no momento de servir a parca refeição, para maravilhamento de todos, o irmão que cuida da cozinha nota que o cesto de pães – que Antônio tinha esvaziado – se encontrava novamente repleto.
Em outra versão, conta-se que um dia aparecem alguns pobres a pedir pão ao porteiro do convento, que se recusa a dá-lo, alegando falta de comida suficiente para os frades. Santo Antônio ouve a conversa e lhe ordena que dê todos os que têm, acrescentando:
- Deus nos há de prover!
Ao entrar no refeitório, vêem os frades, maravilhados, que o cesto está repleto.
Em lembrança desse milagre (ou desses milagres: nunca se sabe quando se trata da mesma história lembrada de diferentes modos ou quando é a vida que se replica) é que viria a surgir o tradicional “pão dos pobres de Santo Antônio”, distribuído tradicionalmente nos conventos franciscanos às terças-feiras ou, pelo menos, no dia 13 de junho de cada ano. Págs. 135-136.

[...]

Aquelas simples sete semanas de 1231 constituem uma autêntica revolução nos usos e costumes dos paduanos. A quaresma impregna a cidade de uma aura religiosa como nunca se vira. O preço dessa colheita se faz sentir, no entanto, no estado físico de frei Antônio: a hemoptise, que o faz perder sangue sempre que tosse – o que ocorre cada vez com mais frequência –, o enfraquece crescentemente. Isso, com a hidropisia, constituem as consequências decorrentes, tantos anos depois, da afecção contraída à beira do deserto e de uma vida de privações e de pouco cuidado com o corpo. O martírio que buscara encontrar no Marrocos, numa missão que a princípio julgara malsucedida, parecia cumprir-se afinal, adiado por anos: o mal contraído naquelas plagas, somado à desatenção acumulada em relação a seu próprio estado físico, o corroera lentamente, em vez do cutelo ou da cimitarra a decepar-lhe de um só golpe a juventude. Os jejuns severos, somados a essas enfermidades, muito contribuirão, com toda a certeza, para a morte precoce do santo.
Quando chega a Semana Santa, Antônio se encontra exausto, além de consumido pela doença. Todos lhe recomendam o descanso. Mas não, ele insiste.
Muitas pregações fez, muito assistiu pobres e enfermos. Mesmo assim, permanece ativo; só muda um pouco o teor das tarefas. Faz um pequeno intervalo nas pregações, para completar a redação de mais alguns textos e praticar a contemplação, que pode restaurar um pouco suas forças. Ele pretende realizar ainda alguns sermões e só descansar na alta estação da colheita, principalmente a partir de julho, quando os fiéis precisam dedicar mais tempo aos trabalhos no campo. Mas será que estará em condições de levar adiante essa intenção quando julho chegar? 


A CARTA PERDIDA

Em maio, porém, sentindo-se no limite da resistência física, Antônio parece ter-se dado por vencido: escreve ao provincial para pedir que o autorize a se retirar a um lugar tranquilo, um oratório ou ermida em que possa repousar e, sobretudo, meditar e rezar. A rigor, nem precisaria pedir essa autorização, tal é sua importância entre os franciscanos, mas Antônio nunca deixará de assumir a postura mais humilde. 
O lugar em que pensa fazer o retiro é próximo a Pádua e chama-se Camposampiero – também conhecido como Camposanto (fato curioso, pois em italiano camposanto significa “cemitério”).
No entanto, logo depois de ter escrito a carta ao ministro, surge uma dificuldade:
- Irmão Pio, não viu onde está a carta que escrevi há pouco para o nosso provincial? Eu a deixei ainda agora nesta mesa.
- Deve ser um sinal de Deus.
E, interpretando dessa forma o sumiço da correspondência, Antônio desiste de reescrevê-la. Julga entrever nesse fato a ordem divina para que permaneça onde está.
No entanto, alguns dias depois o irmão Pio vem procura-lo com um sobrescrito na mão:
- Frei Antônio, chegou carta do provincial.
Ao tirar-lhe o lacre, lê a resposta que o autoriza a retirar-se para o lugar que melhor lhe aprouver. Ao saber daquilo, Pio sai correndo a contar aos outros do convento o caso da resposta que chegou para a carta que não foi. Num instante a história se espalha, mais uma vez, como sempre, na versão do milagre:
- Então foi um anjo do Senhor quem levou a carta do nosso santo ao provincial. Foi por isso que sumiu o escrito da mesa em que ele o deixou.
E assim é que aparece essa história, como um evento miraculoso, já nos relatos mais antigos da vida de Santo Antônio.
O conde Tiso VI, a quem pertencem às terras de Camposampiero, havia construído no lugar uma capela, com um pequeno alojamento para religiosos, por ficar em local próximo de seu palácio. Antes de se retirar para a capela, frei Antônio visita o conde e, depois de muita insistência da parte deste, aceita hospedar-se por uma noite num dos quartos de sua casa.
Logo na noite da chegada de frei Antônio ocorre um fato maravilhoso, que Tiso, no entanto, só viria a divulgar depois da morte do santo. Págs. 236-237. 

O MENINO JESUS CONSOLA A QUEM O CONSOLA

Cabe contar neste ponto a história que o conde Tiso guardou para revelar apenas depois do falecimento de Antônio.
Diante dos religiosos unidos na imensa tristeza pela morte de um homem tão querido por todos, o conde relata, às lágrimas, o que viu quando o santo pernoitou em seu palacete:
- Como sempre, Il Santo não quis jantar. Aceitou apenas um pouco de pão e água. Antes de nos retirarmos para dormir, conversamos um pouco sobre assuntos religiosos. Ele se recolheu então ao quarto. Depois que todos na casa se aprontaram para dormir, resolvi passar pelo quarto de frei Antônio e ver se não precisava de alguma coisa. Quando olhei para dentro, tomei um susto. Onde se supunha reinar a escuridão, via-se uma luz forte que não vinha de nenhuma vela ou tocha. O santo estava de pé, no meio do quarto, com um lindo menino no colo. A criança, pouco mais que um bebê, tinha uma aura de luz em torno do corpo e acariciava o rosto de frei Antônio. E o santo beijava a testa e o rosto do menino de luz. Então a criança avisou o nosso querido frade de que eu os estava observando, e ele em seguida me pediu encarecidamente que não contasse a ninguém o que presenciei ali. Mas agora, vendo morto aquele que era a nossa luz e o nosso exemplo, não pude deixar de contar a mais bela cena que vi em minha vida.
Enquanto as lágrimas rolam pelo rosto do conde Tiso, começa a formar-se, no espírito dos que o escutam, aquela que será a imagem pela qual Antônio se tornará conhecido em todo o mundo cristão. As representações do santo trazem sempre a figura do Menino Jesus amparado em seu colo, invariavelmente com um livro – inevitável lembrança de seu dom de instruir – e de um lírio – símbolo da pureza, física e espiritual, que ele sempre almejou e praticou.
Estão todos convencidos de que a aparição do Menino Jesus a Antônio constitui um sinal de que seus dias se encontravam no fim, um ato de consolação. Págs. 237-238.

[...]. 


O DIA DO REENCONTRO

Ao amanhecer do dia 13, o santo se levanta em sua nova cela sentindo grande satisfação interior. Desce pela escada de madeira e ruma para a capela, onde os irmãos se reúnem para a primeira oração do dia. Em seguida, seguem todos para o refeitório improvisado, e é ali, antes de sequer pegar o costumeiro pedaço de pão duro, que Antônio desmaia, provavelmente de fraqueza, associada a uma provável crise de hidropisia. 
É carregado e colocado sobre o feixe espesso de palha que faz as vezes de cama a um dos irmãos. Quando finalmente volta a si, Antônio pede:
- Irmãos... Por favor, levem-me para o convento de Santa Maria.
Por causa de sua fragilidade, os outros relutam em fazer a remoção, mas Antônio insiste:
- Quero voltar para Pádua... Para Santa Maria...
Assim, ele é agasalhado e estendido sobre um carro de boi. Com todo o cuidado, vai sendo levado pelos religiosos da ermida, embora a contragosto deles. Antônio deseja viver em lugar dedicado à Virgem de sua devoção o que parecem ser seus últimos momentos; já os irmãos preferiam poupar-lhe o esforço.
Na entrada de Pádua, encontram outro franciscano, frei Inoto.
- Eu ia justamente visitar frei Antônio – diz ele. – Mas o caso parece grave! Para onde o estão levando?
Informado da decisão do santo, frei Inoto também tenta demovê-lo de continuar por aquele caminho:
- Mas, frei Antônio, se deseja vir para Pádua, por que não fica no eremitério de Arcella? O movimento é pequeno, lá vivem apenas alguns irmãos que cuidam das idosas pobres. Santa Maria é um lugar pequeno, mas lá faz muito barulho, há muito entra-e-sai. Com certeza isso irá prejudicar ainda mais a sua saúde.
E, argumentando dessa forma, Inoto consegue convencer Antônio a que concorde em ir para o pequeno convento de Arcella, pois fica no vilarejo de Capo di Ponte, ali bem próximo. Nessa ermida (também chamado de oratório) vivem uns poucos franciscanos, ao lado de outro pequeno convento de “mulheres pobres” da ordem feminina fundada por Santa Clara de Assis; as duas construções formam os anexos da pequena Igreja de Santa Maria della Cella (conhecida popularmente pela forma contrata “Arcella”). Talvez o fato de ser esse oratório também dedicado a Nossa Senhora tenha pesado na mudança de decisão do santo.
A decisão de levar frei Antônio para esse local se revela acertada: a viagem a Pádua, apesar de curta, seria puxada demais para seu estado físico. No entanto, assim que o instalam numa das minúsculas celas do lugar, nota-se que seu estado de saúde se agrava rapidamente: Antônio sente falta de ar, só pode ficar sentado. A tosse se torna mais intensa, os calores do corpo se acentuam.
Quando consegue reunir forças para falar, Antônio pede para se confessar com um dos frades de Arcella. Recebido o sacramento, põe-se a entoar a canção “Ó gloriosa Senhora, excelsa, que estais acima das estrelas”, dedicada à Virgem Maria. Seu olhar está fito no teto, mas sem dúvida não o enxerga: Antônio vê o que está muito além dele. Um dos frades, que sustenta seu corpo, lhe pergunta:
- Que está vendo, irmão Antônio?  Págs. 239-241. 

O REENCONTRO (13 DE JUNHO DE 1231)

E voltei a me perguntar: Que vim fazer aqui?
Contemplei a Deus, e Ele me contempla. Ouvi o chamado do Senhor. E vim. Ele me trouxe até aqui. Entreguei-me a Ele de corpo e alma e agora espero o Seu juízo. Terei pecado por omissões, por palavras, por obras.
- Quero confessar-me...
Sussurros, ruídos, a absolvição.
Sinto fiapos de odores,
Apenas pressinto os confusos ruídos.
- O gloriosa Domina excelsa supra sidera qui te creavit provide lactasti sacro úbere... Ó gloriosa Senhora, excelsa, que estais acima das estrelas e nutristes com vosso seio sagrado Aquele que vos criou.
Quero morrer de amor por Aquele que morreu de amor por todos os homens e mulheres deste mundo que pertence a Ele próprio, pois além de homem é Deus.
Quem me dessem a morte por tanto Vos amar, que me torturassem em nome do amor divino que frutificaria a conversão dos ímpios;
Que tanto morre por Vós, e vivi Vosso plano, Senhor. Anseio pela salvação que só Vós trazeis, anseio pelo Amor.
Vejo com os olhos da alma os altos céus, acima do telhado desta casa, acima do sol e das estrelas. Neste lugar quase sem iluminação e em que me falta o ar, sinto a presença do sol maior de todos, do sopro que me inspira enquanto expiro. A luz me preenche, sinto que não respiro, sim sou respirado.
Em algo que está aqui dentro não sinto mais as dúvidas, as perguntas se esgotaram, mas, sobretudo, surge a resposta necessária que se forma entre os abalos causados pelo mal-estar da doença. Ardo em febre, perco a consciência, recobro os sentidos. Longe das ânsias do martírio da fé, do sacrifício do meu corpo dado em oferenda Àquele que como eu viveu vida de homem, mas que também é Deus.
Está cumprida minha missão. Para isto me chamastes. Aceito o jugo que me impusestes, seja feita a Vossa vontade. Sinto-me esvair rapidamente, sei a tristeza dos companheiros assustados.
Pai, em Vossas mãos entrego meu corpo e minha alma. Alegre estou porque posso ir para junto de Vós. Seja feita a Vossa vontade...
Ouço a modulação de uma voz amiga que vem de tão perto e ao mesmo tempo de tão longe:
- Que está vendo, irmão Antônio?
Vejo meu Senhor.
- Vejo o meu Senhor...
Quase em seguida, o frade sacerdote lhe dá a extrema-unção. Com os olhos voltados para o alto, Antônio exala pela última vez. Págs. 243-244.


[...].


Referência 

Nuno, Fernando. Antônio: O santo do amor. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

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