domingo, 14 de julho de 2019

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: SOFRER POR AMOR A DEUS E AOS IRMÃOS

b) Um grande desejo de padecer, mas sossegado e tranquilo, inteiramente subordinado à vontade adorável de Deus. Escreve Santa Teresa:

O segundo efeito é um grande desejo de padecer, mas não de modo a inquietá-la, como acontecia antes; porque é tão extremado o desejo destas almas de que se faça nelas a vontade de Deus, que acham bom tudo o que Sua Majestade faz: se quiser que ela padeça, seja muito em boa hora; se não quiser, não se mata por isso como costumava fazer antes.1


A cruz sempre constitui uma verdadeira obsessão para almas autenticamente enamoradas do divino Redentor. O heroísmo de Jesus crucificado as subjuga e elas ardem em desejos de se crucificar com Ele. Enquanto o fogo do divino amor ainda não se apodera do mais fundo do espírito, a chama faísca e lança para fora centelhas acesas (penitências extremas, loucuras de amor, etc.); mas quando o amor divino se apodera totalmente da alma, até o mais íntimo e profundo dela, a chama já não faísca; a alma se converte em brasa muito mais ardente do que antes, porém sossegada, tranquila, sem aquele alvoroço interior. Só querem que se cumpra em tudo a vontade divina, como disse Santa Teresa.
É a percepção clara e intuitiva do verdadeiro valor e hierarquia das coisas. O sofrimento sublimado pelo amor a Deus é altamente santificador, sem dúvida alguma, mas muito menos do que o cumprimento perfeito da vontade adorável de Deus; porque a vontade de Deus se identifica com a própria essência de Deus (é Deus mesmo) enquanto que sua glória é o resplendor extrínseco da essência da mesma. Se, por uma hipótese impossível e absurda, a glória de Deus pudesse empreender uma grande obra contrariando sua divina vontade, haveríamos de renunciar imediatamente a lhe glorificar da forma anterior, para não nos afastarmos um milímetro sequer de sua divina vontade: Santa Teresa suspendeu imediatamente seus trabalhos para a reforma do Carmelo, até obter o beneplácito de seus próprios superiores, como havia lhe ordenado o Senhor: “Obedece-lhes: já lhes mudarei Eu o coração para que te mandem o que Eu quero”.
c) Gozo na perseguição. Tolerar a perseguição em silêncio por amor a Deus já é uma obra de grandíssima virtude. Mas se comprazer nela, considerar-se feliz nela, bendizer a Deus e amar com predileção aos que nos perseguem e caluniam (Mt 5,43-48) é o cúmulo do heroísmo e da santidade. A estas sublimes alturas remontaram as almas transformadas. Santa Teresa esfregava as mãos de que alguém a caluniava. Era conhecido de todos um procedimento infalível para conquistar sua simpatia e predileção: insultá-la ou humilhá-la de alguma maneira. Eis aqui como descreve o que heroicamente praticava. 

Têm também estas almas um grande gozo interior quando são perseguidas, com muito mais paz do que ficou dito anteriormente, e sem nenhuma inimizade para com aqueles que lhes fazem mal ou desejam fazer, do contrário, passam a ter por eles um amor particular, de tal maneira que, se os vêem em algum sofrimento, sentem-no ternamente e tomariam qualquer sacrifício sobre si para os livrar dele, e sempre encomendam-nos a Deus com muita devoção, e gostariam mesmo de se privar de algumas das graças que Sua Majestade lhes concede para que Ele a concedesse a eles, para que não ofendessem a Nosso Senhor.2

Essas últimas palavras nos dão a chave para entender esse sublime heroísmo. Definitivamente, é o amor a Deus que aqui prevalece, como em tudo o mais que essas almas fazem. As perseguições e calúnias não lhes afetam pessoalmente em nada, antes se regozijam e se recreiam nelas. O único que sentem é quando seus inimigos ofendam a Deus com as perseguições; e para evitar essa ofensa divina, com gosto lhes concederiam algumas mercês que Deus as faz, mesmo em troca de ficar sem elas. É o amor a Deus e ao próximo levado até o último extremo de acabamento e perfeição.
d) Zelo ardente pela salvação das almas. Já não desejam morrer para gozar a Deus (“morro porque não morro”) senão, ao contrário, viver muitos anos, “até o fim do mundo” (Vida 37,2), para empregarem-se no serviço de Deus na salvação das almas. Escutemo-la: 

O que mais me espante de tudo isso é que já deveis ter visto os sofrimentos e aflições que estas almas tiveram de querer morrer, ansiosas para desfrutarem de Nosso Senhor; agora é tão grande seu desejo de servi-lo e louvá-lo que não só não querem mais morrer como desejam viver muitos anos padecendo enormes sofrimentos – se tivessem esperança de o Senhor ser louvado por meio deles, ainda que fosse em mínimas coisas. E se soubessem com certeza que, quando a alma sai do corpo, há de se deleitar com Deus, não se preocupariam com isso, nem pensam na glória dos santos ou desejam por enquanto verem-se nela. Toda a glória que cobiçam é a de ajudar em algo ao Crucificado, especialmente quando O vêem ser tão ofendido, e que são poucos aqueles verdadeiramente preocupados em zelar pela honra de Deus, desapegados de todo o resto.3 

Tais são os sublimes sentimentos de todos os santos. Santo Inácio de Loyola chegou a dizer que preferiria ficar neste mundo servindo a Deus e ajudando as almas com perigo de se condenar, do que ir imediatamente ao Céu com prejuízo dessas almas. E antes dele, já São Paulo havia expressado o desejo de ser, se fosse preciso, “anátema de Cristo pela saúde de seus irmãos” (Rm 9,3). É uma vez mais, o esquecimento total de si mesmo e o amor de Deus levado até a loucura. 
e) Desprendimento de toda a criação, ânsias de solidão, ausência de sequidades espirituais. Compreende-se perfeitamente que uma alma que goze quase habitualmente dos inefáveis deleites que se seguem à união transformativa com Deus estime como lixo todas as coisas deste mundo, como disse repetidas vezes Santa Teresa e também São Paulo (Fl 3,8), e goste de estar a sós com Deus em doce e entranhável conversação. Ouçamo-la:

Há um desapego grande tudo, e um grande desejo de estar sempre a sós ou ocupados em coisa que seja de proveito para alguma alma. Não há aridez, nem sofrimentos interiores, mas sim uma contínua lembrança e ternura com Nosso Senhor, a ponto de desejar estar sempre dando-lhe louvores; e quando nisto se descuida, o mesmo Senhor a desperta, da maneira que foi dito, vendo-se claramente que aquele impulso, ou não sei como lhe chame, procede do interior da alma, como se disse a respeito dos ímpetos (...) me parecem bem empregados todos os sacrifícios que se passam para gozar destes toques de Seu amor, tão suaves de penetrantes.4

Págs. 360-366. 

[...].

______________
1 Moradas Séptimas, C.3,4.
2 Ibid., C.3,5.
3 Ibid., C.3,6.
4 Ibid., C.3,8-9.

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