quarta-feira, 9 de setembro de 2020

O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto para hoje

Mantendo a morte diariamente diante dos olhos
:
São Bento em sua regra, aconselha os monges a manterem diariamente a morte diante dos olhos. [...]. Os monges viviam na consciência de sua morte. E isso os tornava mais vivos e presentes. O pensar na morte liberta-os de todo medo. Um jovem monge perguntou a um patriarca nestes termos: ‘“Por que o medo toma conta de mim quando saio sozinho durante a noite?’ Disse-lhe o ancião: Porque a vida deste mundo ainda possui valor para ti’” (EVÁGRIO. OitPens 190). [...]. (pág.109).
Em muitas palavras dos monges sentimos uma profunda ânsia e desejo da morte. Mas esta ânsia e desejo da morte, para estar ao lado do Senhor, confere aos monges ‘uma surpreendente jovialidade, de modo que um deles ouviu esta pergunta: ‘Por que acontece que tu nunca estás triste? E ele respondeu: ‘Porque desejo e espero morrer todo dia’. Um outro disse: ‘A pessoa que mantém a morte diante dos olhos por todo o tempo supera facilmente a tristeza e a estreiteza da alma’” (RANKE-HEINEMANN, Mönchtum... 30). Assim, o exercício de manter a morte diariamente diante dos olhos é expressão da ansiedade e do desejo de “estar com nosso Senhor no paraíso” (RANKE-HEINEMANN, Mönchtum... 41).
Para os monges, à ansiedade e desejo da morte associa-se também uma expressiva espera da parusia. A expectativa pela escatologia iminente dos primeiros cristãos se acende novamente entre os monges. Escreve Rufino “que os monges esperam por seu pai ou uma tropa por seu rei, ou ainda como um servo fiel por seu senhor e libertador. Num outro lugar diz: ‘Eles não queriam mais preocupar-se com a vestimenta e com a alimentação, mas, entre hinos, esperavam unicamente pela parusia de Cristo’” (Assim, o exercício de manter a morte diariamente diante dos olhos é expressão da ansiedade e do desejo de “estar com nosso Senhor no paraíso” (RANKE-HEINEMANN, Mönchtum... 41)., Mönchtum... 32). A leveza que podemos perceber em muitos padres do deserto está ligada certamente a esta espera da parusia. E é a partir dela que Evágrio pode comparar o monge a uma “águia altaneira” (EVÁGRIO. OitPens 51). Por esperar pelo Senhor, o monge torna-se livre das preocupações mundanas, do julgamento e das expectativas dos homens. A serenidade jovial, a liberdade, a confiança e a sinceridade para com o momento presente forjam o monge que anseia pelo Senhor. (pág. 110).

[...]

A psicossíntese, elaborada por Roberto Assagioli, desenvolveu o método da des-identificação1. Observo meus pensamentos e meus sentimentos; meu medo, por exemplo. Sinto o medo, mas nesta hora coloco-me por detrás dele como uma testemunha imóvel e como um si-mesmo intocável e inatingível. Esse núcleo interior, o si-mesmo espiritual – como o chama Assagioli -, não é atingido pelo medo e pelos sentimentos que se imprimam no meu domínio emocional. A des-identificação me liberta da obrigação de ter de realizar a tarefa com perfeição. A des-identificação é, segundo a psicologia transpessoal, a verdadeira terapia. [...]. (pág. 111).
O método da des-identificação evidencia-se também numa outra sentença dos patriarcas: “Um irmão aproximou-se do patriarca Macário o Egípcio e lhe disse: ‘Pai, dize-me uma palavra! Como posso alcançar a salvação?’ E o ancião lhe ensinou: ‘Olha para a sepultura e zomba dos mortos. Então, o irmão dirigiu-se até lá, zombou e atirou pedras. Em seguida, ele retornou e contou ao ancião o que havia feito. Este, porém, lhe perguntou: ‘E eles não te disseram nada?’ Respondeu então ele: ‘Não!’ Então o ancião lhe disse: ‘Volta lá amanha e louva-os!’ Retornando para junto do ancião, lhe contou: ‘Eu os louvei!’ Então o ancião lhe perguntou: ‘Eles não responderam nada?’ O irmão lhe respondeu: ‘Não!’ Aí o ancião lhe ensinou: ‘Sabes o quanto tu os insultastes e eles não te responderam nada; sabes também o quanto tu os louvaste e eles não te disseram nada. É assim que tu também deves ser se quiseres alcançar a salvação. Sê como um cadáver, não observes nem a injustiça dos homens nem seu elogio, mas sê como os mortos; então, haverás de ser salvo!’” (Apot 476). (págs. 111-112).
A primeira vista, este método parece ser algo macabro, como se nós devêssemos ser insensíveis como os mortos. Na realidade, porém, o objetivo é que superemos o plano da identificação com o elogio e a repreensão, isto é, que exercitemos a des-identificação. Nossa vida somente será bem-sucedida – diz-nos esta sentença dos patriarcas -, quando deixarmos de depender do elogio e da repreensão. E é desse modo que nunca estamos próximos de nós mesmos. [...]. (GRÜN. Alselm, pág. 112).
Tornar-se como os mortos não significa ser destituído de sentimentos. Mas significa o que acontece no batismo, isto é, que nós morremos para o mundo. O mundo, quer dizer, as pessoas com suas expectativas e pretensões, com suas normas e julgamentos não têm poder algum sobre nós. Vivemos num outro limiar. Vivemos numa realidade espiritual a qual o mundo não possui poder algum. E isso nos torna livres. Se constantemente dependermos do elogio, sempre continuaremos insatisfeitos. Pois somos insaciáveis em nossa ânsia por elogio. (GRÜN. Alselm, pág. 112-113).

[...].

Devemos estar mortos sobretudo para o nosso próximo. “Certa vez, o patriarca Poimen contou o seguinte: Um irmão perguntou ao patriarca Moisés de que modo uma pessoa poderia tornar-se morta para seu próximo. O ancião lhe respondeu: ‘Se o homem não se tornar em seu coração como alguém que jaz na sepultura há três dias, não chegará a esta atitude espiritual’” (Apot 506).
E ao patriarca Moisés atribui-se a seguinte sentença: “A pessoa deve estar morta para seu colega, de modo a não vir a condená-lo em algum assunto” (Apot 508). Estar morto para o próximo significa, antes de mais nada, renunciar a condená-lo. Eu não tenho direito de julgar os outros. O estar-morto para o próximo, no entanto, pode também significar que eu me torno independente dos problemas dos outros e que não me identifico com suas dificuldades. Isso naturalmente não deve tornar-se algo desumano como se não tivéssemos nenhum interesse pelo outro. Muitas das sentenças dos patriarcas – em que algum patriarca conversa de coração cheio com seu consulente e o consola e anima – mostram que, para os monges, não está em jogo rigidez ou insensibilidade, mas distância interior. [...]. (GRÜN. Alselm, pág. 113).
Num primeiro momento, estes conselhos nos parecem estranhos. Porém, no fundo, trata-se do cumprimento das palavras de Jesus: “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só; mas se morrer, produz muito fruto. Quem ama sua vida, acabará perdendo-a; mas quem odiar sua vida neste mundo, vai guardá-la para a vida eterna” (Jo 12,24s.). Precisamos desprender-nos de nós mesmos e de nossas ideias sobre a vida, pois assim há de abrir-se um novo espaço para novas possibilidades para nós. Precisamos desprender-nos do outro, pois assim será possível um verdadeiro relacionamento. Quando, numa amizade, uma pessoa se prende demais a outra, com o passar do tempo o relacionamento se tornará impossível. Uma amizade só poderá subsistir enquanto um se desprende do outro, enquanto um deixa o outro livre e vice-versa. Segundo nos diz também a psicologia, o desprender-se é a condição prévia e fundamental para uma vida plenamente realizada. (GRÜN. Alselm, pág. 115).
O capítulo 10: A contemplação como caminho de cura, nos diz, que “é em vão, obter a cura interior através da mera disciplina”. O lidar com os pensamentos e os exercícios concretos são um bom auxílio para as paixões se aquietarem e a alma se tornar saudável. Mas só a contemplação produz a verdadeira cura. Assim o experimentaram os monges, assim o descreveu Evágrio Pôntico.
A contemplação é a oração pura, é a oração continuada, a oração acima dos pensamentos e sentimentos, a oração de união com Deus. Evágrio não se cansa em descrever a oração como o presente mais belo com que Deus nos agraciou. A dignidade humana consiste em unir-se a Deus por meio da oração.

[...].

Pela oração, o homem deve libertar-se primeiramente de suas paixões e, sobretudo, da ira e das preocupações. Mas aí ele deve também deixar para trás de si os pensamentos piedosos. Não deve apenas pensar em Deus, mas unir-se a ele. Evágrio não se cansa de dizer ao escrever sobre isso: “Quando uma pessoa já se tiver libertado das paixões perturbadoras, isto ainda não significa que ela também já esteja em condição de rezar verdadeiramente. Pois é possível que ela apenas conheça os pensamentos mais puros, porém deixa-se seduzir a pensar sobre eles, e com isso está muito distante de Deus” (EVÁGRIO. SobreOra 55).
“O Espírito Santo tem compaixão de nossas fraquezas e frequentemente vem em nosso auxílio, mesmo que nós não sejamos dignos dele. Se ele nos procura, enquanto lhe oramos por amor à verdade, ele nos inunda e nos ajuda a nos desprendermos de todos os raciocínios e pensamentos que nos mantêm presos a nós mesmos, conduzindo-nos assim à oração espiritual” (EVÁGRIO. SobreOra 62).
“Vigia para que durante tua oração não te prendas a nenhuma apresentação, mas permaneças em profundo silêncio. Somente assim é que Deus, compadecido dos ignorantes, haverá de visitar um homem insignificante com tu e presentear-te com o maior de todos os dons que é a tua oração” (EVÁGRIO. SobreOra 69).
Segundo Evágrio, é por meio da contemplação que alcançamos o estado da mais profunda paz. Descobrimos em nós um espaço do puro calar. E é aí que Deus mesmo habita em nós. Evágrio chama a este espaço – que é o espaço de silêncio em nós – de “lugar de Deus” ou “visão de paz”. Numa carta a um amigo escreve ele: “Se o intelecto, por meio da graça de Deus, foge destas coisas (isto é, das paixões) e se desprende do seu homem velho, então sua própria situação durante o tempo da oração lhe parece uma safira ou da cor do céu. É o que a Escritura chama de lugar de Deus e que os antigos viram no monte Sinai. A Escritura também chama este lugar de visão de paz, onde a pessoa contempla em si mesma aquela paz que é mais sublime que toda compreensão e que guarda e protege nosso coração. Pois num coração puro é forjado um outro céu, cuja visão é luz e cujo lugar é espiritual, e em que, de maneira maravilhosa, pode ser avistado o conhecimento dos entes – isto é, das coisas. Pois também os santos anjos se reúnem perto daqueles que lhes são dignos” (EVÁGRIO. CartDes 39).
É por meio da oração que o homem vê sua própria luz. E é por esta luz que ele descobre a sua própria natureza, que é toda reluzente e tem parte na luz de Deus. Neste lugar de Deus, no lugar da paz no interior da alma, tudo é silêncio e aí só Deus habita. Aí tudo é curado. É também aí que, no amor de Deus, todas as feridas que a vida possa nos ter infligido são cicatrizadas. Aí desaparecem todos os pensamentos em relação às pessoas que nos feriram. Nossas paixões não têm aí nenhum acesso; aí também os homens não podem nos atingir-nos com suas expectativas, opiniões e preconceitos. Pois é aí que nos unimos a Deus, mergulhamos em sua luz, em sua paz, em seu amor. Esta é a meta do caminho espiritual. (GRÜN. Alselm, pág. 118).

[...].

“A oração verdadeira torna o monge semelhante aos anjos, uma vez que ele anseia insistentemente por ver seu Pai que está no céu” (EVÁGRIO. SobreOra 113). “Bem-aventurada é aquela alma que, rezando sem dispersão, deseja e anseia sempre mais profundamente a Deus” (EVÁGRIO. SobreOra 118). Desejas rezar verdadeiramente? Então mantém-te afastado das coisas deste mundo. Seja tua pátria o céu. Já não deves viver somente com palavras, mas através de ações angelicais e com conhecimento sempre mais profundo de Deus” (EVÁGRIO. SobreOra 142). Se queres rezar de maneira perfeita, deixa de lado tudo o que tem a ver com a carne, de modo que, enquanto estiveres rezando, tua visão não se turve” (EVÁGRIO. SobreOra 128). E ainda: “Se te entregares à oração, deves deixar para trás tudo quanto de causa alegria, pois somente então alcançarás a oração pura” (EVÁGRIO. SobreOra 153).

[...].

No último capítulo: A mansidão como sinal do homem espiritual, nos diz que, “a finalidade do caminho espiritual não está em ser penitente ou asceta, através do jejum perseverante, no homem consequente, mas naquele que se dispõe a viver a mansidão”. Evágrio sempre de novo exalta a mansidão como o sinal do homem espiritual. Ele nos convida a tornar-nos mansos como Moisés, do qual diz a Escritura: “Ele era o mais manso de todos os homens” (Nm 12,3).
“Peço-vos eu: ninguém ponha sua confiança somente na abstinência! Pois não é possível construir uma casa com uma única pedra, nem é possível completar uma construção com um só tijolo. Um asceta encolerizado é semelhante a um bosque ressequido e sem frutas em tempo de outono, sendo por isso duplamente atrofiado e desenraizado. Um homem encolerizado não verá o despontar da estrela matutina, mas irá até um lugar de onde não poderá mais voltar, uma terra tenebrosa e sombria onde não brilha nenhuma luz e onde não é possível avistar nenhuma vida humana. A abstinência reprime somente o corpo, mas a mansidão transforma o intelecto em vidente!” (EVÁGRIO. CartDes 27).
Evágrio fala continuamente que a ascese sozinha não é suficiente para o caminho espiritual. A mansidão é tão decisiva que só ela é capaz de transformar o coração do homem, tornando-o aberto para Deus. (GRÜN. Alselm, pág. 121). [...]. Na carta 56, Evágrio nos apresenta ainda uma outra comparação: “Aquele que se abstém de comida e bebida, mas em cujo interior se agita a cólera não corrigida, é semelhante a um navio que se encontra no meio do mar e é governado pelo demônio da cólera”.
Evágrio também vê concretizada em Davi e Jesus a mansidão que nós devemos seguir: “Dize-me: por que a Escritura, quando quis exaltar Moisés, deixou de lado todos os sinais milagrosos e pensou unicamente na mansidão? [...] Ela exalta unicamente isso: que Moisés era o mais manso de todos os homens. [...] Foi também por ela que suplicou Davi quando pensou na virtude da mansidão para se tornar digno dela ao falar: ‘Senhor, lembra-te de Davi e de toda a sua mansidão!’ Ele nem mesmo chegou a perceber que seus joelhos haviam se enfraquecido por causa do jejum e que sua carne (por falta de óleo) esmorecera, e que se mantivera vigilante e se tornara como um pardal que voa de um lado para outro no telhado, e falou: ‘Ó Senhor, lembra-te de Davi e de toda a sua mansidão!’ Procuremos também nós merecer a mansidão daquele que disse: ‘Aprendei de mim, pois sou manso e humilde de coração’, para que ele nos ensine seus caminhos e nos reanime no reino dos céus” (EVÁGRIO. CartDes 56).
A mansidão é, para Evágrio, a fonte do conhecimento de Cristo. Sem mansidão podemos ler quanto quisermos a Bíblia e exercitar-nos na mais rigorosa das asceses, mas nunca entenderemos o mistério de Cristo. Evágrio escreve o seguinte a um de seus discípulos: “Acima de tudo, porém, não esqueças a mansidão e a prudência, pois elas purificam a alma e nos indicam o conhecimento de Cristo”. (EVÁGRIO. CartDes 34).
O conhecimento de Cristo é uma outra expressão para a contemplação. Sem mansidão não existe nenhuma contemplação verdadeira. Evágrio escreve a Rufino nestes termos: “Com efeito, estou convencido de que tua mansidão tornou-se para ti um motivo de grande conhecimento. Pois nenhuma virtude sozinha produz a mansidão, razão pela qual também Moisés foi louvado para ter sido ele o mais manso de todos os homens. E também eu rezo, a fim de tornar-me e poder ser chamado discípulo da mansidão” (EVÁGRIO. CartDes 36).
A mansidão é, portanto, um sinal de que nós compreendemos a Cristo e de que o estamos seguindo. [...]. Um homem manso torna-se um homem que atrai e interessa a muitas outras pessoas. Ele já não precisa persuadir os hereges para a fé a partir de sua ortodoxia; ele não tem necessidade de evangelizá-los. Sua mansidão é um testemunho suficiente de Cristo. Quem encontra sua mansidão, encontra a Cristo e haverá de reconhecê-lo através dela. A mansidão e a misericórdia são os critérios de uma espiritualidade autêntica. [...]. Somente quando os homens se tiverem tornado mansos e passarem a tratar seus semelhantes com misericórdia, somente então passarão a anunciar uma espiritualidade que seja ao modo de ser de Cristo. Por mais piedosas que se mostrem todas as demais formas de espiritualidade, ainda provêm do espírito do próprio medo e da repressão das paixões. É neste ponto que poderemos aprender dos primeiros monges a desenvolver uma espiritualidade que corresponda ao espírito de Cristo. (GRÜN. Alselm, pág. 123).



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1 Segundo o dicionário de psicologia Dorch, a psicossíntese é “um conceito formado para completar ou contrapor-se à psicanálise, para designar todas as medidas da psicoterapia. O encontro de si mesmo e possibilidades abertas de desenvolvimento se consideram mais importantes do que a última explicação causal”. Para um maior aprofundamento da psicossíntese de Roberto Assagioli (1888-1974), sugiro o artigo recentemente publicado: “Roberto Assagioli, ideatore della psicosintesi”. Antonianum, Ano 72, abr.-jun. de 1997, fasc. 2, p. 303-316.

 

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