[...].
Algumas das histórias, envolvendo milagres de Edwiges, aconteceram quando Henrique I ainda estava vivo e exercendo seu pleno poder de duque:
Havia na região do mosteiro de Trebnitz um pobre que furtara um pernil de um vizinho. Preso, foi levado à presença do duque Henrique, marido de Edwiges, que o condenou à morte, exigindo a execução rápida e sumária do salafrário. Os parentes do condenado, sabendo da fama de Edwiges, foram procura-la pedindo clemência para o preso. Como sempre acontecia, ela acabaria atendendo às súplicas dos visitantes, argumentando com o marido que tinha sido um “erro pequeno para uma pena tão grande”. Henrique respondeu, um pouco constrangido, que era tarde demais, pois o condenado já devia estar enforcado. E concluiu que, acaso o homem ainda estivesse vivo, ele o perdoaria. Edwiges chamou um soldado de nome de Henrique Cato e mandou-o correr ao local da execução. Quando o soldado chegou, encontrou o corpo já balançando na corda, inerte. Tirando a espada da bainha, o soldado cortou a corda e o enforcado estatelou no chão. Em seguida, levantou-se são e salvo e correu para onde estava a duquesa Edwiges, agradecendo pelo verdadeiro milagre: ele estava livre.
Este episódio foi apresentado oficialmente ao Tribunal de Roma diante dos procuradores Nicolau e Wirbina – um parente de Edwiges que estava ao lado quando o “milagre” aconteceu. p. 68.
Outro caso semelhante de enforcamento envolvia um facínora que fora julgado e condenado por ser inimigo do duque. Henrique ainda tentou evitar que Edwiges soubesse da condenação, orientando seus oficiais que a execução acontecesse nas primeiras horas do dia seguinte. A crônica dos Acta registra o episódio:
Quando Edwiges, segundo seu costume, estava se dirigindo à igreja para as orações diárias, encontrou Henrique no meio do caminho. Ela, que tinha conhecimento dos fatos, acusou-o de crueldade anticristã, exigindo a absolvição do homem que fora condenado pelo simples motivo de ser inimigo político dele. Henrique respondeu: “Eu o libertaria, mas ele já está morto”. Edwiges conseguiu reunir alguns delegados que a acompanharam até o local da execução, onde alguns corpos permaneciam pendurados. E, com relação àquele que julgavam morto, foi encontrado vivo. E, assim, sem nenhum ferimento, foi conduzido à presença de sua protetora, a incrível duquesa Edwiges.
Muitos relatos falam da interferência de Edwiges também em casos de doenças e premonição. Não era de estranhar que, envolvida com extrema dedicação no tratamento de um exército de enfermos, doentes contagiosos e terminais, houvesse ela colhido um jardim de milagres com suas rezas e afetos. Existem pelo menos três histórias versando sobre uma determinada doença nos olhos, assim descrita na versão dos Acta:
Uma freira do mosteiro de Trebnitz de nome Gaudência fora vítima de um problema realmente incômodo, que se traduz numa espécie de película esbranquiçada a cobrir os olhos, impedindo a visão. Uma cortina. Ela procurou Edwiges alegando que o problema a estava prejudicando em tudo na vida, inclusive nos ofícios religiosos. No outro olho havia uma pequena parte da pupila que era insuficiente para reconhecer as pessoas. De nada adiantavam os esforços de irmã Juliana, outra freira do mosteiro, que desde o início cuidava da amiga. Quando Edwiges chegou aos aposentos da enferma, esta ajoelhou-se aos seus pés, implorando sua atenção para os olhos infectados e a cegueira. Edwiges reagiu com humildade, negando qualquer santidade:
“Deus te perdoe, pois sou apenas um ser humano frágil como um vaso de barro. O que tu estás pedindo é coisa que só o Poder supremo pode fazer. É melhor rezar para Ele e não esperar o meu benefício”.
A freira Gaudência insistiu, pedindo um gesto apenas. Edwiges, movida pela piedade e considerando as circunstâncias, traçou o sinal-da-cruz sobre os olhos da enferma, dizendo:
– “Irmã caríssima, que o Senhor te abençoe!”
No mesmo momento a mancha desapareceu – e a visão completa seria recuperada em algumas semanas. Tudo indica que estejamos falando de duas doenças comuns e semelhantes na aparência: catarata e/ou pterígio, frequentemente confundidas pelos leigos. Como revelam os compêndios médicos, ambas as doenças costumam aparecer em pessoas que trabalham ou vivem em lugares com muito vento ou poeira, provocando ardor e queimação. Outras premonições e visões seriam preditas pela santa Edwiges, mas para não ficar muito redundante, resumidamente serão descritas. A primeira visão aconteceu numa noite de natal, sobre a ocorrência de uma grande mortandade que aconteceria, e foi o que aconteceu. Uma grande carestia assolou o ducado e muitos pobres morreram de fome e frio. A outra visão era a respeito de Isabel, a filha de sua irmã Gertrudes, sua sobrinha. Um mensageiro chegou ao mosteiro anunciando seu falecimento. Edwiges reagiu com rapidez: “A notícia que acaba de dar não é de tristeza, mas de júbilo. Ela foi para o Céu”. Tempos depois, Isabel seria declarada santa pela igreja.
A ação de graças
Sabe-se que essas histórias e a mística de Edwiges assombravam as monjas e criadas que moravam no mosteiro. Todos se apegavam com fé ao seu carisma espiritual, procurando um bálsamo para suas dores do corpo e da alma. A beata negava qualquer milagre, mas, a cada tentativa de evitar a divulgação dessas histórias, mais o mito se consolidava. Uma mulher chamada Catarina, considerada criada especial do mosteiro, conhecida como hóspede [6], depois de penar com uma doença grave, agora estava convencida de que seu retorno à vida, após três dias de coma profundo, era mais um milagre de Edwiges. Catarina chegou a ser considerada morta, pois quando alguém havia aproximado uma vela acesa do seu dedo indicador, não houve reação alguma. Considerando que Edwiges tinha dito, após uma sessão de ladainha, que Catarina iria renascer a qualquer momento, quando a mulher recuperou a consciência e voltou a falar, todos creditavam os méritos à beata: “Milagre”, exclamavam.
[...].
Certa vez, Catarina testemunhou um episódio envolvendo a cegueira de uma senhora de origem alemã, que recuperou a visão logo após Edwiges benzê-la com o sinal-da-cruz sobre os olhos. A mulher chorava por ter recebido de volta a luz, jurando venerar eternamente Edwiges, que reagia contrariada: “Não fui eu, mas o Senhor que te iluminou e te fez enxergar. Dedique a Ele teus agradecimentos”.
Testemunhas que conviveram com Edwiges dizem que ela mantinha sempre o rosto imperturbável, mesmo diante de grandes calamidades. Sua enorme paciência vencia todas as vicissitudes do cotidiano. Seu comportamento tolerante desconcertava as pessoas. Era serena e afável, virtudes que caracterizam a essência de uma “santa pessoa”. Eis um trecho dos Acta:
Nas cerimônias solenes da abadia, como acontecia na Quinta-feira Santa, Edwiges lavava os pés das monjas e dos doentes. Certa vez, sendo uma Quinta-feira Santa, a filha Gertrudes surpreendeu a mãe ao insistir em lavar seus pés. Foi quando a irmã Juliana, uma irmã residente, percebeu manchas de sangue na água e feridas nos pés de Edwiges. Eram chagas vivas de onde vertia o sangue da mártir. Ela procurava imitar a Paixão de Cristo martirizando o próprio corpo.
Ao chegar a Sexta-feira da Paixão, Edwiges guardava um rigoroso jejum, fazendo o exercício de abstinência mais radical do ano. A falta de água e a sede tornavam sua boca e língua secas como uma lixa. Eram uma prática de martírio obedecida também por Francisco de Assis que, referindo-se às cinco chagas, tornava concreto o símbolo da stigmata – a perfuração miraculosa das mãos, dos pés e do flanco de Francisco, como se fosse produzida por pregos, repetindo as feridas de Jesus crucificado. [...].
[...].
Para efeito estatístico, existem dezenas (mais de trinta) relatos biográficos dos milagres de Edwiges nos Acta Sanctorum, agrupados nos capítulos “Milagres de Santa Edwiges durante a sua vida” e “Milagres de santa Edwiges após a sua morte”. Esse trabalho, de autor desconhecido (como referido nas considerações preliminares), apresenta uma seleta de histórias e prodígios conhecidos como Legendas de Santa Edwiges.
O Martírio
O ano de 1243 foi de luto e ressaca na Silésia. Depois de dois anos de guerra, os exércitos mongóis finalmente tinham deixado o território polonês, seguindo em direção à Hungria, onde iriam promover outras ruidosas conquistas. O momento era de trégua, apesar do cenário caótico e desolador. [...].
Nesses dias, Edwiges, magra e doente, conheceria um monge chamado Jacinto (Hyacinth, em polonês), nascido de uma família nobre da Alta Silésia. Como Edwiges, ele também era dedicado aos pobres e necessitados. depois de peregrinar durante anos pela Áustria, Boêmia, mar Negro, Suécia e China, Jacinto está de volta à Cracóvia, sua terra natal. Ele reencontraria um lugar profundamente afetado pelos efeitos da guerra. As cidades tinham sido praticamente abandonadas por seus habitantes, que levaram as riquezas e deixaram os doentes e os feridos. O trabalho de Jacinto – cuidando das vítimas – no mosteiro dos Dominicanos (ele foi um dos primeiros apóstolos da Ordem) chamaria a atenção da Igreja e de Edwiges. Ele era 11 anos novo e viveria o suficiente para deixar um rastro de bondade e dedicação em seu caminho. É certo que Edwiges, gozando de grande reputação em vida, exerceria forte influência em Jacinto, que seria canonizado em 1594 pelo papa Clemente VIII com o nome de São Jacinto.
Jacinto e as monjas de Trebnitz, guardando as respectivas distâncias, seriam testemunhas da impressionante via crucis de Edwiges, agora flagelando-se até sangrar. Assim ressalta padre Ivo Montanhese, seu biógrafo brasileiro:
Podia-se dizer que Edwiges trazia a Paixão de Cristo em seu próprio corpo. Ela bem poderia exclamar: “Estou pregada na cruz com Cristo”.
[...]
_______________________
6.
O termo hóspede aparece com maior frequência a partir do século XII e designa,
como o nome indica, um forasteiro. Em sua versão masculina, é uma espécie de
colono, um imigrante em busca de terras novas para cultivar. Com o crescimento
da miséria no campo, os hóspedes cresciam na mesma proporção. Na abadia de
Dunes, na França, em 1150, eles somavam 36 trabalhadores. Cem anos depois este
contingente era de 248 pessoas. Quase sempre vinham de países sem liberdade
e/ou oportunidades, e eram facilmente catalogadas como pessoas à margem do
sistema produtivo.
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