13 de novembro de 2025

Convivendo com o mal: A luta contra os demônios no monaquismo antigo (1ª Parte)

Convivendo com o mal: A luta contra os demônios no monaquismo antigo; livros, cristianismo
Cap. 1 - A natureza dos demônios

A doutrina dos antigos monges sobre os demônios é uma doutrina prática, e não teórica. É mais importante sabermos conviver retamente com os demônios do que especularmos sobre sua natureza e sua essência. Não obstante, é possível encontrarmos algumas afirmações sobre sua natureza. Os demônios inicialmente eram anjos. Mas separaram-se de Deus, e por isso tornaram-se maus. Agora eles tentam seduzir os homens para o mal. Evágrio conhece três categorias de seres racionais: os anjos, os demônios e os homens. E a cada uma destas três ele atribui uma das três forças da alma, a nous (espírito) aos anjos, o thymos aos demônios, e a epithymia (o desejo) aos homens. O thymos é a parte emocional da alma, a parte excitável, de onde surgem as emoções violentas, como a ira, o ódio e a inveja. O demônio caracteriza-se pela predominância do thymos, a parte da alma que pode se tornar excitada e confusa. A ira cega, que se enfurece e que esbraveja contra os outros, é para Evágrio uma essência do demônio. Uma vez ele chega a identificar o demônio com um homem possuído e excitado pela ira:

Vício algum faz a razão transformar-se de tal modo em demônio como a ira, porque ela faz a parte emocional da alma revoltar-se [...]. Não julgues que o demônio seja outra coisa senão o homem possuído pela ira.

Aos demônios os antigos monges também atribuíam um corpo, se bem que essencialmente mais leve do que o dos homens. Consiste sobretudo de ar. O ar é também a região onde os demônios se encontram. Eles podem mover-se mais rapidamente que os homens, eles voam. São frios como o gelo. Normalmente são invisíveis para nós, mas podem assumir determinadas aparências. Mas não podem transformar-se em um corpo, como os anjos, mas apenas imitar as formas e as cores de um corpo, e assim nos iludir. Mas também podem tornar-se perceptíveis para nós como vozes que se ouvem. O ponto de contato entre a capacidade do conhecimento humano e os demônios é a fantasia. Os demônios provocam em nós imagens da fantasia, ou fazem-nos sonhar enquanto dormimos. Como possuem um corpo, os demônios também estão ligados a objetos corpóreos, através dos quais eles agem sobre a fantasia. Provocam imagens de coisas visíveis na alma do homem, e de acordo com sua natureza de thymos eles fazem estas imagens ser acompanhadas de violentas emoções

Frequentemente utilizam-se de nossas lembranças, e então provocam emoções com as imagens da memória, através das quais podem impelir-nos na direção intencionada. Seu instrumento usual para agir sobre nós são os maus pensamentos. Com frequência os maus pensamentos são identificados com os demônios, de tal forma que nem sempre se pode saber se os maus pensamentos são eles próprios os demônios ou se são provocados pelos demônios. A luta com os demônios realiza-se sobretudo como luta com os próprios pensamentos, onde trata-se sempre de pensamentos carregados de afetos, portanto nunca pensamentos puramente intelectuais. Pois só os pensamentos de caráter emocional é que são por Evágrio atribuídos aos demônios. Ele distingue pensamentos angélicos, pensamentos demoníacos e pensamentos puramente humanos. Os pensamentos que nos são inspirados pelos anjos fazem indagações a respeito das coisas, por que elas foram criadas, para que servem, qual sua natureza e o que elas simbolizam. Os pensamentos puramente humanos, só podem reproduzir no espírito a forma de uma coisa. Os pensamentos provenientes dos demônios sempre veem as coisas com paixão e emoção. Eles consideram, por exemplo, como podemos possuir as coisas, que prazer elas nos proporcionam, ou se podem atrair para nós fama. [1].

Os demônios são espertos, traiçoeiros, eles mentem e enganam. Em comparação com os anjos são ignorantes. Eles não podem olhar para o íntimo da alma do homem, mas dependem dos comportamentos visíveis para reconhecer o estado da alma humana: da atitude corporal, da voz, da maneira de andar. Não obstante, muitas vezes eles provocam espanto nas pessoas predizendo-lhes os acontecimentos. Antão explica esta capacidade através da leveza de seu corpo. Quando irmãos se põem a caminho para fazer-nos uma visita, eles correm à frente e antecipam-nos sua chegada. [...] p. 19.

Os demônios são capazes de dominar um homem de tal forma que ele se torna possesso. Provocam doenças como esquizofrenia, epilepsia, loucura e histeria. As histórias dos monges descrevem os mais diversos sintomas das doenças psíquicas, por eles atribuídas aos demônios. Um monge come suas próprias fezes (coprofagia), ou se coça até provocar feridas. Outros são empurrados pelos demônios para um lado e para outro, alguns impelidos ao suicídio.

Se analisarmos mais de perto as afirmações dos monges a respeito dos demônios, percebemos que são tentativas de explicar os fenômenos. Não são definições, nem pretendem saber exatamente o que os demônios realmente são. Em sua linguagem mitológica os monges descrevem realidades psíquicos. Jung, como empirista, tenta abordar os mesmos fenômenos descritos pelos monges em sua demonologia. As duas tentativas de abordar a realidade devem simplesmente ser postas lado a lado, sem se emitir qualquer juízo sobre qual é a que explica melhor a realidade. [...].

Jung fala dos demônios em conexão com sua doutrina dos complexos autônomos. A projeção é “uma transferência inconsciente e não intencionada de um fato psíquico subjetivo para um objeto exterior”. Quando nós transferimos desejos ou emoções para o outro, não estamos vendo nele a realidade. Deixamo-nos enganar por nossas próprias projeções, somos dominados por elas. Esta situação era descrita pelos antigos como ser enganado por um demônio. De modo semelhante, era através do demônio que se entendia o efeito das projeções alheias sobre nós. Quando outros nos lançam suas projeções, eles com isto exercem sobre nós um poder a que fica difícil subtrair-nos. As projeções são como uma espécie de projétil que um homem mau nos atira e que nos faz adoecer. M. L. von Franz, uma discípula de C. G. Jung, escreve a respeito deste efeito negativo que as projeções alheias provocam sobre nós:

“Logo que uma pessoa projeta sobre outra um pouco de sua sombra, esta se sente estimulada a tais discursos maldosos. As palavras (acusações, indiretas) que atingem o outro como projéteis simbolizam o fluxo de energia negativa que alguém projeta sobre o outro. Quando somos alvo das projeções negativas de outra pessoa, muitas vezes nós sentimos quase que fisicamente o ódio do outro, como se fosse um projetil”.

Para Jung, a causa das projeções são os complexos. Jung define o complexo como...

“A imagem de uma determinada situação psíquica possuidora de viva carga emocional, e que além disto comprova-se como incompatível com a situação ou a atitude habitual da consciência. Esta imagem possui uma forte unidade interior, possui sua integridade própria, além de dispor de um grau de autonomia relativamente elevado”.

Na raiz de um complexo encontra-se um conteúdo com ênfase no sentimento, e cuja menção desperta em nós emoções violentas, mas que nós reprimimos de nossa consciência. Um complexo leva-nos a “um estado de falta de liberdade, a pensarmos e a agirmos compulsivamente”. p. 22

Ele possui uma certa autonomia. No sonho os complexos aparecem personificados. Por isso Jung mostra compreensão para o fato de os antigos haverem considerado os como seres autônomos. Com bastante frequência eles vêm ao nosso encontro como se fossem pessoas. Para Jung eles são partes da psique sob tensão e, sendo inconscientes, muitas vezes conseguem alcançar o domínio sobre o eu. Jung chama isto então de identidade de complexo, e acha:

“Perfeitamente moderno, na Idade Média este conceito possuía um nome diferente: chamava-se possessão. Não achamos, de certo, que esta situação seja inofensiva, mas em princípio não existe diferença entre um complexo comum e as selvagens blasfêmias de um possesso. Trata-se apenas de uma diferença de grau”.

[...].

Jung faz distinção entre dois complexos diferentes: o complexo da alma e o complexo do espírito. O complexo da alma ele o atribui ao inconsciente da pessoa. Portanto ele surge por repressão de conteúdos que por razões morais ou estéticas foram excluídos da convivência. O complexo da alma precisa ser integrado pelo homem. A “perda” de um complexo da alma é sentida como doentia. O complexo do espírito surge quando determinados conteúdos do inconsciente coletivo penetram na consciência. O complexo do espírito é percebido pelo homem como estranho, como uma coisa a um tempo ameaçadora e fascinante. Logo que tal conteúdo é retirado da consciência, a pessoa sente-se aliviada. No complexo do espírito algo de estranho vem ao nosso encontro, sobrevêm-nos pensamentos estranhos e inauditos, o mundo se modifica, a gente sente-se ameaçado, atacado.

No complexo do espírito não nos resta outra escolha senão expulsá-lo da esfera da mente. Os antigos expressavam isto dizendo que os demônios têm que ser expulsos. Franz fez a experiência de que com alguns pacientes não existia outra alternativa senão subtrair-se ao confronto com o demônio interior através da fuga.

Não se pode senão aconselhar ao paciente que na medida do possível mantenha-se longe das condições e situações que possam entrar em contato com o complexo [...]. De fato, frente a determinadas poderes sombrios no próprio íntimo não se pode fazer outra coisa senão fugir, ou de alguma maneira mantê-los afastados.

Jung vê uma íntima ligação entre o complexo e o afeto. Ele acha que “todo afeto tende a transformar-se da hierarquia da consciência e se possível arrastar atrás de si o eu”. Jung lembra-nos a experiência que fazemos quando nos deixamos arrastar por declarações imprudentes. Dizemos então que “a língua nos traiu”, com o que manifestamente estamos expressando que o discurso transformou-se em uma entidade autônoma, que nos arrastou e nos levou consigo. Por isso não é senão muito natural que os antigos vissem aí a atividade de um espírito, de um demônio. O demônio seria a imagem de um afeto autônomo – um afeto personificado.

Retomando das explanações de Jung para a demonologia dos monges da Antiguidade, precisamos primeiramente fazer algumas distinções. Jung se ocupa sobretudo com o fenômeno da possessão, por conseguinte da doença. Também os antigos monges relacionam a possessão com os demônios. Mas para eles não é a possessão que constitui o fenômeno mais importante. Jung é médico, e como médico ele está interessando em curar doentes. Mas para os monges a cura dos possessos é apenas uma consequência do reto convívio com os demônios. Para os monges o que importa na luta com os demônios é o ocupar-nos todos os dias com o mal, a maneira de nos comportarmos quando somos desafiados e tentados. [...]. p. 24. 

Neste sentido o ocupar-se com os demônios é uma maneira proveitosa de lidar com o inconsciente, sobretudo com os afetos e emoções. Projetando certas realidades íntimas sore os demônios, as coisas e as pessoas se libertam de ficar presas às projeções. Na demonologia os monges ficam conhecendo o mecanismo de projetarmos sobre os outros nossos próprios desejos e emoções. Não é o próximo que é culpado por ficarmos com raiva, mas sim um demônio, que através de uma pessoa ou de um comportamento que os perturba que provocar raiva em nós, para nos acorrentar ao afeto negativo. p. 25.

Quando falam dos demônios, os monges estão levando em conta a seriedade e multiplicidade das ameaças que mal significa para nós. Não é apenas com um pouquinho boa vontade que se vence o mal. Pelo contrário, o mal nos enfrenta como um demônio refinado e com técnicas bem boladas. Quando o homem se abre à sua própria realidade, ele sente-se atacado e em perigo por causa do abismo impenetrável do mal. É esta experiência que é expressa pelos monges quando atribuem as ameaças do mal ao demônio. O que importa não é conceito, mas sim o fenômeno que o conceito ou imagem do demônio deseja interpretar. O que importa para a demonologia, é dar-nos uma orientação para lidarmos corretamente com o mal em nós. Mais importante, portanto, do que conhecer a essência dos demônios é conhecer as suas técnicas. GRÜM. Anselm. p. 25.


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