Disputas violentas entre parentes – incluindo pais e filhos – beiravam a banalidade na Idade Média e eram decorrência de uma desesperada luta pela posse da terra, única forma possível de poder para um senhor feudal. Atos de crueldade promovidos por príncipes poloneses resultaram em inquérito instaurado pelo papa Gregório IX, que acusava Henrique de injúria e danos morais ao bispo de Gnensen e outras autoridades eclesiásticas. Essas questões ficaram conhecidas na história como Querela das Investiduras, a maior disputa entre a Igreja e o Estado, que regulava o papel e a importância do príncipe e do bispo no comando das ações. A questão começara no século XI e atravessaria o século XIII, quando os Estados se consolidavam pelas forças militares e ousadia dos príncipes.
No
caso de Henrique, ele não apenas desdenhou as admoestações do papado como
desautorizou seus procuradores a abrirem qualquer processo de defesa – levando
as autoridades de Roma a pedirem sua excomunhão, que seria finalmente consumada
pela retumbante decisão papal. Sabe-se que Edwiges sofreu muito nesse período,
pois considerava uma tragédia a exclusão de Henrique do Reino dos Céus.
Parece
não haver dúvidas de que Henrique era um homem valente e determinado, que não
fugia à luta quando necessário. Em 1227, durante os conflitos deflagrados pela
disputa familiar entre Otto, da Alemanha, e seu filho Wladislau, o nobre
Henrique – que tinha uma aliança militar com o imperador – acabou gravemente
ferido, sendo salvo das lanças por um soldado de nome Peregrino de Weszemberg,
que acabou morrendo pela espada inimiga. Otto foi derrotado e expulso de suas
terras pelo próprio filho. Mesmo ferido, Henrique conseguiu escapar e dias
depois estava curado.
Durante
uma disputa entre príncipes regionais – poloneses versus pomeranos –,
Henrique I acabou prisioneiro do filho Conrado. Isso acontecia porque os
herdeiros, ao adquirir terras e autonomia, ganhavam também uma dose extra de
responsabilidade, ambição e ousadia, fazendo com que muitas vezes os laços
familiares fossem superados por interesses políticos. Assim acontecia com
Conrado, que num passado recente tinha sido o favorito do pai e, agora,
tornara-se seu algoz.
Determinado
em aumentar seu poderio na região. Conrado decide invadir uma missa e fazer de
seu pai Henrique prisioneiro. Seu destino estava marcado: o filho decide mandar
o pai para a região da Mazóvia. Foi Edwiges quem corajosamente viajou horas
numa carruagem para apresentar-se diante do filho em defesa do marido. Dizem os
relatos que Conrado, que já tinha recebido pedidos idênticos de outras
autoridades influentes, capitulou diante da própria mãe. Como um anjo, ela o
ameaça com a justiça divina – o que teria feito Conrado libertar o pai
imediatamente. Seu poder de argumentação recebia em certos momentos o reforço
de um enérgico tom messiânico, quase divino. Nos Acta Sanctorum, esse
momento ficou assim registrado:
Quando Edwiges apresentou-se diante do filho, que inspirava ferocidade, este se transformou completamente, assumindo um aspecto lamentável, de alguém pilhado em flagrante, cabisbaixo, apavorado mesmo, ouvindo a mãe e prometendo humildemente fazer tudo o que ela mandasse. p. 52
O desfecho deste episódio revela que, com sua atitude determinada, Edwiges conseguiu não apenas a libertação imediata do marido, mas a reconciliação dos príncipes. Os registros dos Acta revelam que:
Henrique, o Pai, acabou deixando para Conrado a monarquia da Polônia e a tutela dos filhos do irmão Boleslau. Todos esses tratados foram firmados por juramento solene. Edwiges conseguia restabelecer a paz entre os príncipes.
[...].
A purificação
[...].
A fama da austeridade de Edwiges ultrapassava as paredes do mosteiro, criando um uma verdadeira onda (comentários) sobre seu retiro e modo de vida, onde o jejum era uma forma importante de mortificar e purificar o corpo e o espírito, como registram os Acta:
Observava o jejum todos os dias do ano, com exceção dos domingos e principais dias festivos, quando chegava a tomar duas refeições. Durante quarenta anos se absteve do consumo de carne e gorduras. Uma vez, seu irmão dom Egberto, bispo de Brambemberg, com quem ela mantinha boas relações, censurou-a por causa da severidade do regime. Dizia que ela não podia sacrificar sua vida a tal ponto. Ela, entretanto, se recusou a atender às ponderações do irmão dizendo que, com a ajuda de Deus, pretendia levar a cabo aquelas práticas de purificação que adotara exatamente por amor a Ele.
Certa vez, quando estava doente e fraca, Edwiges foi censurada pelo marido por só beber água morna nas refeições, recusando o vinho, que já nessa época era considerado saudável por suas propriedades medicinais. Contam os Acta:
Henrique ficou indignado, primeiro porque julgava aquele radicalismo realmente exagerado; e, segundo, porque a mentalidade da época atribuía à falta de vinho o frequente mal-estar que acometia a maioria das mulheres. Dizem os relatos que certo dia Henrique I chegou de surpresa à mesa onde Edwiges estava tomando a refeição, pegou a bilha que estava à frente dela (com água) e levou-a à boca. Afirmam as testemunhas que Henrique provou o esplêndido sabor de um vinho fino, reagindo com severidade ao delator, um servo do mosteiro de nome Chevalislau, que jurava ter colocado água na bilha, como fazia todos os dias. Era mais um milagre de Edwiges, agora transformando água em vinho. No final, ela ainda consolou o delator, que ajoelhado a seus pés pedia perdão e jurava inocência: “Minha Santa Edwiges, eu tinha a melhor das intenções, pois temia pela sua saúde...” Este episódio revela o prodígio de Edwiges, que assim fortalecia sua devoção.
Do ponto de vista da solidariedade, a devoção de Edwiges, aliada à sua riqueza pessoal, permitiram que durante duas décadas ela pudesse construir uma grandiosa obra social, erguendo e colocando para funcionar vários hospitais e mosteiros. Este capítulo vai tratar apenas das obras inteiramente executadas pelo casal, deixando de lado a recuperação e a restauração de hospitais e igrejas menores – que somam mais de uma dezena. As ações assistenciais de Edwiges visavam ao conforto do corpo e da alma dos necessitados. p. 55
[...], o primeiro mosteiro construído por Henrique e Edwiges, depois de Trebnitz, seria a Casa Saganense (na aldeia de Sagano), em 1207, onde antes existia a abadia de Santa Maria de Arena. [...]. Em seguida, veio o mosteiro de Camencz (ou Kamenza), cujas obras começaram em 1207 e terminaram em 1216. [...]. No decorrer dos anos, muitos monges de diferentes ordens passaram por ali: os Cônegos Regulares saíram de Camencz em 1222 e foram substituídos pelos Cistercienses, que ali permanecem até os dias de hoje.
A
quarta obra de importância construída na Silésia pelo casal Henrique e Edwiges
seria o hospital e Albergue dos Estrangeiros, em Vlatislávia (como os
poloneses chamavam Breslau). Eles atendiam a um pedido de
ajuda de dom Witoslau, abade do mosteiro dos Cônegos Regulares de Santo
Agostinho. Foi o próprio Henrique, o Barbado, quem lançou a pedra fundamental e
financiou a construção do hospital, que tinha capacidade para atender sessenta
pessoas. Toda a administração humana, digamos, do hospital era de
responsabilidade de Edwiges, que orientava enfermeiros e serventes, tratando
pessoalmente dos doentes como na casa de Lázaro, ela dizia. [...]. Em seguida,
fazendo uma conexão com o que acontecia em Assis, na Itália, Edwiges planejou e
executou a construção do mosteiro de Goldberg (monte áureo),
que a seu convite seria administrado pelos frades menores ou franciscanos.
O mosteiro nascia apoiado financeiramente pela Fundação do Monte Áureo, que
seria inaugurado entre 1219 e 1220. [...]:
A divina Edwiges consagrou esse lugar aos estudos da doutrina e da religião antes dos anos 300. Com grandes gastos, mandou buscar frades franciscanos em Assis, uma cidade na região da Úmbria, na Itália, onde um homem religioso chamado Francisco reunira um pequeno grupo de pobres. Estes frades, também conhecidos como mendicantes, foram instalados primeiro na aldeia de Monte Áureo, onde foi criada uma escola para propagar o Evangelho na língua local.
[...]
Outras
iniciativas de Edwiges, incluídas na categoria “obras assistenciais”, se
seguiram com a construção do convento Henricoviense, que
ficou pronto em 1227, e seria administrado pelos monges Cistercienses. Essa
obra vinha anexada ao Instituto Eclesiástico Henricoviense, uma forma jurídica
criada para captar recursos oficiais. [...]. (p. 58). A sétima e última obra de
Edwiges, a construção do mosteiro de Boleslávia (antiga Bunzlau),
em 1234, administrado pelos Monges Pregadores, consolidava uma das maiores
iniciativas sociais da Idade Média. Pouco depois, esse mosteiro seria atacado,
destruído e os monges mortos, inaugurando um período de fúria e violência que
devastaria grande parte do território europeu. Eram os mongóis arrombando os
portões dos castelos e abadias.
Uma
vida exemplar
Ano de 1238. Apesar de longo tempo passado em frentes de batalha, Henrique I, o Barbado, iria morrer de doença e não de valentia, como era de se supor. Um pouco antes, Edwiges havia conseguido (com a ajuda dos filhos religiosos) uma absolvição papal para o marido, alegando que sua obra de caridade deveria neutralizar os motivos da excomunhão. Era, como se dizia no direito canônico, uma “questão rescindível”, que permitiria a Henrique recorrer da decisão. E assim foi feito. Agora, quando estava na região da Crosna, Henrique fora acometido de um mal súbito – uma doença não identificada, talvez infecção seguida de febre – e faleceu, longe de casa. Quando Edwiges chegou, Henrique já estava morto, cercado de servos de uma enfermaria que se lamuriavam diante do cadáver do patrono [3]. “Senhora, até o último instante seu esposo continuou chamando pelo seu nome”.
Por
iniciativa de Edwiges, o marido seria também sepultado no mosteiro de Trebnitz,
ao lado do filho Conrado. Trebnitz era, sem dúvida, o mais rico e bonito entre
todos os mosteiros que havia na Silésia – e não eram poucos. Em seu túmulo está
esculpido o epitáfio:
Tento chorar aqui, oh, duque Henrique, honra da Silésia. Aqui jaz ele, como um alicerce deste imenso fundamento (o mosteiro), pleno de virtudes: asilo dos necessitados, escola de costumes, castigo dos culpados. Reza, sejas tu quem fores, tu que daqui a pouco tiveres a felicidade de encontrar este lugar bom para o descanso, reza!
A
morte do marido foi determinante pra Edwiges radicalizar uma postura de devoção
ao espírito, elevando suas virtudes aos patamares clássicos da santidade. O
filho Henrique II, o favorito de Edwiges, seria agora o herdeiro político do
pai. As exéquias pela morte de Henrique I (uma mistura de homem religioso e
senhor feudal) motivaram testemunhos eloquentes das freiras de Trebnitz,
segundo Acta:
Enquanto todas choravam inconsoladas pela perda do excepcional protetor e patrono [4], como era visto o fundador de Trebnitz, Edwiges, sem derramar uma lágrima, se apresentou ante as irmãs censurando-as pela fraqueza de coração. Dirigia-lhes palavras de conforto para amenizar a tristeza. Não que ela nada sentisse pela morte do marido – que em vida tanto amara –, mas porque sempre se curvava diante da vontade divina. Ela também avaliava que, próxima de outras monjas, deveria ser um exemplo de constância e paciência. p. 60
Apesar disso, ela nunca aceitou oficialmente o título de religiosa ou monja – com reconhecimento pelo bispo –, preferindo trabalhar na condição de leiga. Argumentava que o voto de pobreza iria impedi-la de manter o patrimônio e, consequentemente, de continuar ajudando os pobres e necessitados. Ela nada queria para si, mas sabia muito bem como administrar seu patrimônio.
A vida no Mosteiro
Houve um momento na vida de Edwiges em que toda a sua atenção estava voltada aos pobres e necessitados. Sua fama como beata milagrosa atraia a curiosidade de peregrinos que passavam pela Silésia – quase sempre a caminho de santuários franceses e espanhóis. Santiago de Compostela, na região da Galícia, era considerado um lugar místico para os católicos romanos, desde que no século IX anunciou-se a descoberta dos ossos do apóstolo São Tiago – James em inglês e Santiago em espanhol – naquelas plagas. A romaria de fiéis seguindo a estrela-guia passou a ser contínua e sistemática, até tornar-se atração turística [5]. Ao longo do sinuoso trajeto pelo território europeu, infestado de tribos nômades e selvagens, os peregrinos podiam contar, eventualmente, com a proteção dos Cavaleiros Templários.
O
papa, entre 1227 e 1241, era Gregório IX, criador do Tribunal Eclesiástico da
Inquisição, instituição que prendia, julgava e condenava os hereges. Foi
Gregório quem proclamou santos Francisco de Assis, Domingos de Gusmão (Ordem
dos Dominicanos), todos contemporâneos de Edwiges e mendicantes. [...]. O papa
Gregório também se notabilizou pela luta travada durante anos contra a
arrogância do imperador Frederico II e seus explícitos interesses pecuniários. p.
66. [...]. Fora Gregório também quem, alguns anos antes, acusara Henrique I, o
Barbado, de violar as imunidades eclesiásticas em seu ducado, perseguindo e
taxando as terras da Igreja. [...].
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3.
Patrono era o provedor do mosteiro ou abadia. Era o chefe – caput mansi
–, como se refere um auto dos arquivos clunisianos.
4.
O historiador Steven Runciman, em A História das Cruzadas, registra: “Depois de
conquistar Kiev, na Ucrânia, parte do exército mongol seguiu para a Polônia, ao
norte, pilhando Sandomir e Cracóvia. Houve uma batalha em Wahlsdadt, quando as
tropas do duque Henrique seriam desbaratadas. Após devastar a Silésia, os
mongóis foram para o sul, atravessando a Morávia até a Hungria”.
5.
A passagem bíblica do Evangelho Segundo Marcos destaca aquela que seria a
primeira peregrinação no mundo cristão: a dos três Reis Magos seguindo a
estrela cadente até o recém-nascido menino Jesus. Assim que Baltasar, Melquior
e Gaspar chegaram à manjedoura, em Jerusalém, no dia 6 de janeiro do primeiro
ano da era cristã, ofereceram ao recém-nascido ouro, incenso e mirra.