As virtudes de Edwiges
No primeiro dia de sol, ajudado pela irmã Adelaide, Henrique levou a mulher para conhecer os povoados vizinhos de Glogan e Loewenberg, onde ela encontraria, entre as ostentações dos nobres, uma quantidade assustadora de miseráveis perambulando pelas proximidades dos castelos. Todos famintos e debilitados.
Assim que aprendeu a se comunicar em polonês – começando pelas traduções das orações do Padre-nosso e da Ave-maria –, Edwiges costumava sair do castelo de Breslau com uma pequena comitiva (a cunhada Adelaide, que tinha a mesma idade, estava sempre junto) para visitar as choupanas vizinhas e avaliar as condições de vida de seus moradores. Edwiges estava engendrando, com o apoio luxuoso das finanças do marido e da própria economia, uma forma objetiva de assistência social, levando alimentos, agasalhos e esperança aos necessitados.
Sabe-se que o tom de formalidade predominava como norma nas relações conjugais da Idade Média. Marido e mulher eram duas entidades separadas, algumas vezes unidas pelos mesmos interesses e crenças. A relação sexual, por exemplo, era entendida como uma concessão de Deus visando à procriação. Era, portanto, algo formal. A castidade, nesse contexto, seria um apreço especial ao amor divino, transformado em renúncia aos prazeres da carne. Diante dessa conjugação de valores, Edwiges e Henrique decidiram, em comum acordo, criar algumas regras de conduta íntima. Por “comum acordo” entenda-se uma imposição dela que Henrique, por força de circunstâncias até mesmo políticas, acabou aceitando. O “acordo” tinha como primeira regra a abstinência sexual durante a gravidez e nos quarenta dias após o parto. O mesmo comportamento deveria ser observado durante a Quaresma, nas vigílias das grandes solenidades cristãs e aos domingos, por ser o dia do Senhor. Págs. 34-35.
Apesar dessas medidas restritivas, que falam muito da falta de afeto e do excesso de formalidade entre os cônjuges. Edwiges seria mãe aos 13 anos. Foi uma experiência frustrada, na verdade, pois o bebê – que seria batizado como o nome dela – viveu apenas três meses, de fevereiro a abril. Um ano depois chegava Ignês (ou Sofia, como aparece em alguns documentos), também morta prematuramente. Nessa época, a maioria dos recém-nascidos não passava dos primeiros meses e poucos dos sobreviventes chegavam à adolescência. As crianças sucumbiam às febres, gripes, diarreia e outras infecções, que em pouco tempo se tornavam graves e fatais. Não havia antissépticos e apenas algumas plantas serviam como remédio.
Henrique, que tanto esperava pelo primeiro filho, não se conformava com a falta de sorte e, revoltado, mantinha um comportamento agressivo com a mulher. Edwiges rezava na esperança de poder dar um herdeiro ao marido. Vestia-se com extrema simplicidade e fazia caridade em hospitais e asilos. Tentava livrar das grades os miseráveis, muitas vezes resgatando suas dívidas com os agiotas. Ela estava apenas começando a construir, com gestos simples e objetivos, aquela que seria considerada – no futuro – uma grande obra social. Foi nesse contexto que surgiu uma nova gravidez, a terceira, ainda incapaz de trazer esperança ou otimismo ao desalentado Henrique.
Dessa vez, porém, Edwiges resolveria passar a gravidez longe do clima conturbado da casa, refugiando-se no castelo de Laenhaus, onde certo dia assistiu a uma cena chocante: alguns servos arrastavam um homem pelo pátio, amarrado a uma corda. Era um devedor de impostos em estado de inadimplência com o burgomestre – como era chamado o funcionário encarregado de arrecadar os dízimos. O pobre homem, todo esfolado, implorava clemência e prometia resolver o problema em questão de horas, caso fosse libertado. O episódio chegou ao fim com a interferência de Edwiges, que pagou 2 marcos de prata pela liberdade do camponês. Apesar de nobre, ela sabia que a vida desses camponeses não era nada fácil. Além do trabalho pesado, estavam sujeitos a diversos impostos e taxas que pagavam ao senhor do feudo. Moravam em pequenas e desconfortáveis casas, muitas vezes de um cômodo e chão de terra batida. Mas havia um alento, no momento em que eles começaram a ser protegidos por Edwiges.
Semanas depois, numa noite de outono de 1191, os sinos repicaram na catedral de Breslau: Edwiges, aos 17 anos, dava à luz um menino forte e sadio, que seria batizado como o nome do pai, Henrique II. O nascimento do primeiro filho começava a dar contornos de família ao núcleo do casal. A maternidade deixava Edwiges mais bela e madura. Uma maturidade que seria acentuada com a morte do pai, Bertholdo, em 1204. Logo depois, viria um outro filho, Conrado, para reconstituir de maneira trágica, num futuro próximo, a história bíblica de Esaú e Jacob, sobre a desavença entre dois irmãos. Neste sentido, os Acta Sanctorum dedicam um capítulo inteiro a analisar as origens desse dissídio. Existem fortes evidências de que, apesar de o primogênito ser considerado o herdeiro natural da fortuna do pai, acontecia de Conrado – conhecido como Crespo, o favorito de Henrique – ficar com as honras de sucedê-lo. A despeito das regras tradicionalmente estabelecidas, ele foi o eleito. Em contrapartida, Henrique II receberia a cumplicidade e o apoio da mãe. p. 36-37.
A primeira obra
A ideia de construir um mosteiro em Trebnitz, tornando concreto um antigo sonho de Edwiges, surgiria após uma caçada nos pântanos da Silésia, quando Henrique (agora conhecido com o Barbado, influenciado pelo estilo dos monges) correu risco de vida ao embrenhar-se de maneira imprudente na floresta. Ele e o cavalo ficaram presos num atoleiro, e a cada movimento feito ne tentativa de escapar, afundavam-se mais. Durante a noite fria, reconhecendo-se em risco de morte e muito longe de casa, Henrique fez a promessa pensando em Edwiges: “Se eu sobreviver a isso, vou realizar o sonho dela”. Diante da gravidade da situação, a fé de Henrique ganhou contornos de oração. Foi quando algo estranho aconteceu – ele diria depois que um “vulto” teria saltado sobre o lodaçal, tomando as rédeas da situação, afastando o cavalo para um terreno seco. De qualquer maneira, tudo foi muito rápido. Quando Henrique voltou-se para agradecer, não encontrou ninguém, apenas a escuridão. Qualquer que seja a interpretação desse episódio, pelo lado místico ou casual, o fato é que, na volta a Breslau, com o dia amanhecendo, seu estado era lamentável. Apesar disso, Henrique procurou Edwiges para dizer:
- De hoje em diante vou prestar mais atenção em você. Tudo que eu puder fazer para realizar suas obras, eu farei.
Esse episódio, em última análise, revela o prestígio de Edwiges como força espiritual. Mais tarde, Henrique diria: “Naquela noite eu pedi por um milagre. E ele aconteceu”. A construção do mosteiro em Trebnitz, que consumiu seis anos entre planejamento e trabalhos forçados, finalmente chegou ao fim em 1203.
Era uma obra monumental e cara, pois tinha as paredes e parte do teto revestidas de chumbo. O edifício havia sido construído no mesmo lugar onde Henrique sofrera o acidente no pântano. Era o primeiro monastério exclusivamente para mulheres de se chamaria mosteiro de Trebnitz [1]. A restrição ao sexo feminino foi um pedido expresso de Henrique. Numa carta datada de 1208, ele explica: “Existem na minha terra três claustros, de três ordens diferentes, todas com representantes do sexo masculino, que podem se recolher para cuidar da salvação de suas almas. Mas, para as mulheres, não existe um claustro. As representantes do sexo feminino também têm o direito de se recolher para expiar seus pecados”.
[...].
Dizem os relatos dos Acta Sanctorum que durante o período de construção de Trebnitz, nenhum condenado à morte pelas barras dos tribunais foi executado. Por sugestão de Edwiges, todos os castigados pela pena máxima receberam indultos e foram deslocados para trabalhar na obra. Ela conseguiu tirar do cadafalso, às vésperas da morte, pessoas condenadas por dívidas ou pequenos furtos. Suas visitas aos presídios eram regulares. Ela levava comida, agasalhos e providenciava a limpeza das roupas sujas. Como as prisões eram escuras, deixava velas e tochas para que os lugares fossem iluminados. Pobres, enfermos e encarcerados estavam descobrindo o caminho do mosteiro de Trebnitz onde, a partir de agora, poderiam contar com o plantão permanente de Edwiges.
Os núcleos das abadias medievais se parecem com pequenas cidades. Em torno delas eram construídas igrejas, bibliotecas e oficinas para a produção e conservação de ferramentas e carroças, estrabarias e cocheiras. O edifício principal estava quase sempre localizado no centro de uma grande propriedade, onde se cultivava trigo, cevada, centeio e cuidava-se de videiras. Em espaços separados da casa, eram criados porcos, galinhas, patos, vacas e cavalos. Além do trabalho pesado, que acontecia até o pôr-do-sol, boa parte do tempo era dedicada à oração e ao canto sacro.
A enfermaria de um mosteiro era um lugar especial e a doença – contagiosa em particular -, uma marca do pecado. As pessoas atingidas pelo estigma da lepra (mal de Hansen), por exemplo, deveriam ser afastadas até a purgação. Ficavam isoladas nas florestas e eram frequentemente molestadas quando apareciam em local público. Quando muito, eram recolhidas por uma embarcação conhecida como Stultifera Navi e levadas para uma ilha deserta. Acreditava-se, então, que as doenças se espalhavam pelo mau hálito que, por sua vez, expressava o resultado dos “pecados da alma”. Na visão de Edwiges, essa situação de isolamento era infamante e representava uma excrescência do ser humano. p. 39.
[...]
O amor sublime
No palácio, Henrique e Conrado já eram meninos crescidos quando outros filhos vieram: Boleslau, Ignês, Sofia e Gertrudes, que foram batizados com os nomes de avós e tias. Os Acta Sanctorum registraram uma controvérsia sobre a ordem correta de nascimento dessas crianças. Em alguns documentos, Gertrudes aparece como a primogênita, seguida por Henrique II. É certo, porém, que após o parto do sexto filho, em 1208, o casal decidira formalizar, ajoelhados diante do bispo Lourenço, os solenes votos de castidade, jurando manter-se em estado de abstinência sexual até o fim da vida. era o que se chamava de “uma vida de continência”. Henrique tinha 42 anos e Edwiges 36. A cerimônia formal, oficiada no domingo da Paixão de 1209, seria acompanhada por um coral de meninos cantando Magnificat, [2], enchendo a catedral de Breslau com sons e acordes majestosos. Sobre essa situação, os Acta Sanctorum registraram o grau de cerimônia entre eles, a partir desse momento:
Por estas razões, Edwiges procurava evitar companhia e as conversas com o marido, para não ficar próxima a ele. Só o procurava quando tinha algum assunto importante a tratar, assunto que dizia respeito às obras de piedade, negócios religiosos ou auxílio aos miseráveis. E mesmo assim, em público ou na igreja, na presença de todos. Era claro que para ela o relacionamento não se oferecia à libidinagem. Quando seu marido estava doente, ela não o visitava sozinha, mas com sua nora Ana (mulher de Henrique) ou outras mulheres.
É fácil perceber que ao educar os filhos na fé cristã, incutindo-lhes um forte sentimento de piedade e apontando-lhes o caminho das virtudes. Edwiges transformava sua casa numa verdadeira igreja. Esse registro dos Acta nos permite conhecer melhor essa devoção:
Durante toda a vida, Edwiges tratou de guardar a maior honestidade em suas palavras e ações, quer nas conversas com Deus ou perante os homens. Ela sempre tratou de conservar a família sob cuidados diretos, principalmente as mulheres. Dos camareiros e outros empregados exigia disciplina e correção. Não queria intimidade com delatores, aqueles que sempre têm duas palavras, como se fossem duas almas que interferem entre si, a alma que vê e a alma que ouve, como o veneno e a mordida de uma serpente. E considerava este tipo de gente instrumento do demônio. p. 42.
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1.Trebnitz
– gíria que significa “nada” ou “não preciso de nada”. Uma
referência aos votos de abstinência e pobreza. Assim, sempre que perguntavam às
freiras do mosteiro se elas precisavam de alguma coisa, elas respondiam apenas:
Trebnitz.
2.
Canto religioso em forma de hino falando do encontro da Virgem Maria, mãe de
Cristo, com sua prima Isabel. Faz parte da obra o Evangelho Segundo Lucas, terceiro
livro do Novo Testamento.