A
doutrina dos antigos monges sobre os demônios é uma doutrina prática, e não
teórica. É mais importante sabermos conviver retamente com os demônios do que
especularmos sobre sua natureza e sua essência. Não obstante, é possível
encontrarmos algumas afirmações sobre sua natureza. Os demônios inicialmente
eram anjos. Mas separaram-se de Deus, e por isso tornaram-se maus. Agora eles
tentam seduzir os homens para o mal. Evágrio conhece três categorias de
seres racionais: os anjos, os demônios e os homens. E a cada uma
destas três ele atribui uma das três forças da alma, a “nous” (espírito)
aos anjos, o “thymos” aos demônios, e a “epithymia”
(o desejo) aos homens. O thymos é a parte
emocional da alma, a parte excitável, de onde surgem as emoções violentas, como
a ira, o ódio e a inveja. O demônio caracteriza-se pela predominância do thymos,
a parte da alma que pode se tornar excitada e confusa. A ira cega,
que se enfurece e que esbraveja contra os outros, é para Evágrio uma essência
do demônio. Uma vez ele chega a identificar o demônio com um homem possuído
e excitado pela ira:
Vício
algum faz a razão transformar-se de tal modo em demônio como a ira, porque ela
faz a parte emocional da alma revoltar-se [...]. Não julgues que o demônio seja
outra coisa senão o homem possuído pela ira.
Aos demônios os antigos monges também atribuíam um corpo, se bem que essencialmente mais leve do que o dos homens. Consiste sobretudo de ar. O ar é também a região onde os demônios se encontram. Eles podem mover-se mais rapidamente que os homens, eles voam. São frios como o gelo. Normalmente são invisíveis para nós, mas podem assumir determinadas aparências. Mas não podem transformar-se em um corpo, como os anjos, mas apenas imitar as formas e as cores de um corpo, e assim nos iludir. Mas também podem tornar-se perceptíveis para nós como vozes que se ouvem. O ponto de contato entre a capacidade do conhecimento humano e os demônios é a fantasia. Os demônios provocam em nós imagens da fantasia, ou fazem-nos sonhar enquanto dormimos. Como possuem um corpo, os demônios também estão ligados a objetos corpóreos, através dos quais eles agem sobre a fantasia. Provocam imagens de coisas visíveis na alma do homem, e de acordo com sua natureza de thymos eles fazem estas imagens ser acompanhadas de violentas emoções.
Frequentemente utilizam-se de nossas lembranças, e
então provocam emoções com as imagens da memória, através das quais podem
impelir-nos na direção intencionada. Seu instrumento usual para agir sobre
nós são os maus pensamentos. Com frequência os maus pensamentos são
identificados com os demônios, de tal forma que nem sempre se pode saber se os
maus pensamentos são eles próprios os demônios ou se são provocados pelos
demônios. A luta com os demônios realiza-se sobretudo como luta com os próprios
pensamentos, onde trata-se sempre de pensamentos carregados de afetos, portanto
nunca pensamentos puramente intelectuais. Pois só os pensamentos de caráter
emocional é que são por Evágrio atribuídos aos demônios. Ele distingue
pensamentos angélicos, pensamentos demoníacos e pensamentos puramente humanos.
Os pensamentos que nos são inspirados pelos anjos fazem indagações a respeito
das coisas, por que elas foram criadas, para que servem, qual sua natureza e o
que elas simbolizam. Os pensamentos puramente humanos, só podem reproduzir no
espírito a forma de uma coisa. Os pensamentos provenientes dos demônios sempre
veem as coisas com paixão e emoção. Eles consideram, por exemplo, como podemos
possuir as coisas, que prazer elas nos proporcionam, ou se podem atrair para
nós fama. [1].
Os
demônios são espertos, traiçoeiros, eles mentem e enganam. Em comparação com os
anjos são ignorantes. Eles não podem olhar para o íntimo da alma do homem, mas
dependem dos comportamentos visíveis para reconhecer o estado da alma humana:
da atitude corporal, da voz, da maneira de andar. Não obstante, muitas vezes
eles provocam espanto nas pessoas predizendo-lhes os acontecimentos. Antão
explica esta capacidade através da leveza de seu corpo. Quando irmãos se põem a
caminho para fazer-nos uma visita, eles correm à frente e antecipam-nos sua
chegada. [...] p. 19.
Os
demônios são capazes de dominar um homem de tal forma que ele se torna
possesso. Provocam doenças como esquizofrenia, epilepsia, loucura e histeria.
As histórias dos monges descrevem os mais diversos sintomas das doenças
psíquicas, por eles atribuídas aos demônios. Um monge come suas próprias fezes
(coprofagia), ou se coça até provocar feridas. Outros são empurrados pelos
demônios para um lado e para outro, alguns impelidos ao suicídio.
Se
analisarmos mais de perto as afirmações dos monges a respeito dos demônios,
percebemos que são tentativas de explicar os fenômenos. Não são definições, nem
pretendem saber exatamente o que os demônios realmente são. Em sua linguagem
mitológica os monges descrevem realidades psíquicos. Jung, como empirista,
tenta abordar os mesmos fenômenos descritos pelos monges em sua demonologia. As
duas tentativas de abordar a realidade devem simplesmente ser postas lado a
lado, sem se emitir qualquer juízo sobre qual é a que explica melhor a
realidade. [...].
Jung
fala dos demônios em conexão com sua doutrina dos complexos autônomos.
A projeção é “uma transferência inconsciente e não intencionada de um fato
psíquico subjetivo para um objeto exterior”. Quando nós transferimos
desejos ou emoções para o outro, não estamos vendo nele a realidade.
Deixamo-nos enganar por nossas próprias projeções, somos dominados por elas.
Esta situação era descrita pelos antigos como ser enganado por um demônio. De
modo semelhante, era através do demônio que se entendia o efeito das projeções
alheias sobre nós. Quando outros nos lançam suas projeções, eles com isto
exercem sobre nós um poder a que fica difícil subtrair-nos. As projeções são
como uma espécie de projétil que um homem mau nos atira e que nos faz adoecer.
M. L. von Franz, uma discípula de C. G. Jung, escreve a respeito deste efeito
negativo que as projeções alheias provocam sobre nós:
“Logo
que uma pessoa projeta sobre outra um pouco de sua sombra, esta se sente
estimulada a tais discursos maldosos. As palavras (acusações, indiretas) que
atingem o outro como projéteis simbolizam o fluxo de energia negativa que
alguém projeta sobre o outro. Quando somos alvo das projeções negativas de
outra pessoa, muitas vezes nós sentimos quase que fisicamente o ódio do outro,
como se fosse um projetil”.
Para
Jung, a causa das projeções são os complexos. Jung define o complexo como...
“A
imagem de uma determinada situação psíquica possuidora de viva carga emocional,
e que além disto comprova-se como incompatível com a situação ou a atitude
habitual da consciência. Esta imagem possui uma forte unidade interior, possui
sua integridade própria, além de dispor de um grau de autonomia relativamente
elevado”.
Na
raiz de um complexo encontra-se um conteúdo com ênfase no sentimento, e cuja
menção desperta em nós emoções violentas, mas que nós reprimimos de nossa
consciência. Um complexo leva-nos a “um estado de falta de liberdade, a
pensarmos e a agirmos compulsivamente”. p. 22
Ele
possui uma certa autonomia. No sonho os complexos aparecem personificados. Por
isso Jung mostra compreensão para o fato de os antigos haverem considerado os
como seres autônomos. Com bastante frequência eles vêm ao nosso encontro como
se fossem pessoas. Para Jung eles são partes da psique sob tensão e, sendo
inconscientes, muitas vezes conseguem alcançar o domínio sobre o eu. Jung chama
isto então de identidade de complexo, e acha:
“Perfeitamente
moderno, na Idade Média este conceito possuía um nome diferente: chamava-se
possessão. Não achamos, de certo, que esta situação seja inofensiva, mas em
princípio não existe diferença entre um complexo comum e as selvagens
blasfêmias de um possesso. Trata-se apenas de uma diferença de grau”.
[...].
Jung
faz distinção entre dois complexos diferentes: o complexo da alma
e o complexo do espírito. O complexo da alma ele o
atribui ao inconsciente da pessoa. Portanto ele surge por repressão
de conteúdos que por razões morais ou estéticas foram
excluídos da convivência. O complexo da alma precisa ser integrado pelo
homem. A “perda” de um complexo da alma é sentida como doentia. O complexo do
espírito surge quando determinados conteúdos do inconsciente coletivo
penetram na consciência. O complexo do espírito é percebido pelo
homem como estranho, como uma coisa a um tempo ameaçadora e fascinante. Logo
que tal conteúdo é retirado da consciência, a pessoa sente-se aliviada. No
complexo do espírito algo de estranho vem ao nosso encontro, sobrevêm-nos
pensamentos estranhos e inauditos, o mundo se modifica, a gente sente-se
ameaçado, atacado.
No complexo do espírito não nos resta outra escolha senão expulsá-lo da esfera da mente. Os antigos expressavam isto dizendo que os demônios têm que ser expulsos. Franz fez a experiência de que com alguns pacientes não existia outra alternativa senão subtrair-se ao confronto com o demônio interior através da fuga.
Não
se pode senão aconselhar ao paciente que na medida do possível mantenha-se
longe das condições e situações que possam entrar em contato com o complexo
[...]. De fato, frente a determinadas poderes sombrios no próprio íntimo não se
pode fazer outra coisa senão fugir, ou de alguma maneira mantê-los afastados.
Jung
vê uma íntima ligação entre o complexo e o afeto. Ele acha que “todo afeto
tende a transformar-se da hierarquia da consciência e se possível arrastar
atrás de si o eu”. Jung lembra-nos a experiência que fazemos quando nos
deixamos arrastar por declarações imprudentes. Dizemos então que “a língua nos
traiu”, com o que manifestamente estamos expressando que o discurso
transformou-se em uma entidade autônoma, que nos arrastou e nos levou consigo.
Por isso não é senão muito natural que os antigos vissem aí a atividade de um
espírito, de um demônio. O demônio seria a imagem de um afeto autônomo – um
afeto personificado.
Retomando das explanações de Jung para a demonologia dos monges da Antiguidade, precisamos primeiramente fazer algumas distinções. Jung se ocupa sobretudo com o fenômeno da possessão, por conseguinte da doença. Também os antigos monges relacionam a possessão com os demônios. Mas para eles não é a possessão que constitui o fenômeno mais importante. Jung é médico, e como médico ele está interessando em curar doentes. Mas para os monges a cura dos possessos é apenas uma consequência do reto convívio com os demônios. Para os monges o que importa na luta com os demônios é o ocupar-nos todos os dias com o mal, a maneira de nos comportarmos quando somos desafiados e tentados. [...]. p. 24.
Neste
sentido o ocupar-se com os demônios é uma maneira proveitosa de lidar com o
inconsciente, sobretudo com os afetos e emoções. Projetando certas realidades
íntimas sore os demônios, as coisas e as pessoas se libertam de ficar presas às
projeções. Na demonologia os monges ficam conhecendo o mecanismo de projetarmos
sobre os outros nossos próprios desejos e emoções. Não é o próximo que é
culpado por ficarmos com raiva, mas sim um demônio, que através de uma pessoa
ou de um comportamento que os perturba que provocar raiva em nós, para nos
acorrentar ao afeto negativo. p. 25.
Quando
falam dos demônios, os monges estão levando em conta a seriedade e
multiplicidade das ameaças que mal significa para nós. Não é apenas com um
pouquinho boa vontade que se vence o mal. Pelo contrário, o mal nos enfrenta
como um demônio refinado e com técnicas bem boladas. Quando o homem se abre à
sua própria realidade, ele sente-se atacado e em perigo por causa do abismo
impenetrável do mal. É esta experiência que é expressa pelos monges quando
atribuem as ameaças do mal ao demônio. O que importa não é conceito, mas sim o
fenômeno que o conceito ou imagem do demônio deseja interpretar. O que importa
para a demonologia, é dar-nos uma orientação para lidarmos corretamente com o
mal em nós. Mais importante, portanto, do que conhecer a essência dos demônios
é conhecer as suas técnicas. GRÜM. Anselm. p. 25.

