Capítulo
1
Os
milagres da fé
[...].
Quando Edwiges nasceu, em 1174, em Andesh, na região hoje conhecida como Bavária, o mundo estava em ebulição. Para alguns historiadores, a evolução ocorrida nessa época, quando tem início a formação dos Estados europeus (decomposição feudal) e a expansão do comércio e do cristianismo, só pode ser comparada ao processo desencadeado, séculos depois, pela Revolução Industrial e tecnológica. A antiga organização econômica, com pequenas cidades, industrias dispersas e mercados locais, começa a dar lugar a um sistema com outros industriais densamente povoados, produção em grande escala e comércio de âmbito mundial. A Europa se preparava, então, para viver o que alguns historiadores modernos chamam de “a Renascença do século XIII”. p.14
Enquanto
a igreja alertava para “o pecado da usura e do lucro excessivo”, a Europa
estava condenada a conhecer, em pouco tempo, a figura do mercador ou
“intermediário” nas transações comerciais. Em temos históricos, era o
surgimento da burguesia como extrato social ativo producente.
No
aspecto religioso, o mundo cristão na Idade Média era uma chama viva ameaçando
a soberania muçulmana no Oriente, consequência das Sete Cruzadas que tinham
como objetivo primário resgatar a cidade de Jerusalém (desde 1174 nas mãos de
Saladino, líder muçulmano) e restabelecer a ordem depois do Império Romano.
Mesmo em nome de Jesus, e apesar do aspecto contraditório dessa iniciativa, foi
grande o derramamento de sangue durante quase duzentos anos.
Ao
contrário dos mártires surgidos nos primeiros anos do cristianismo, produtos do
período conhecido como de “caça aos cristãos”, Edwiges não se debatia contra o
estigma da discriminação religiosa. Sua dor tinha origem no próprio sofrimento
pela perda do marido e dos filhos – e na solidariedade aos pobres e desvalidos.
Era o que os não-cristãos chamavam de carma (ou Karman, em sânscrito) – sistema
cósmico de justiça e definidor das forças que geram o destino. Mulher rica,
Edwiges dedicava sua vida a construir hospitais, conventos e manicômios,
edificando uma grande obra social, sempre em harmonia com os propósitos do
esposo, Henrique I, duque da Silésia, uma mistura equilibrada de cristão e
tirano. p.15.
As
invasões mongólicas e as batalhas entre os príncipes (na disputa de poder e
terras) aconteceram quando Edwiges era adulta e podem ser apontadas como a
causa imediata do seu martírio. Enquanto assistia com amargura à morte do
marido e dos filhos nos campos de batalha, a beata amenizaria sua dor abraçando
a causa dos miseráveis. Para melhor conduzir sua fé, isolou-se no mosteiro de
Trebnitz, da Ordem Cistercienses, que durante muito tempo seria administrado por
sua filha caçula Gertrudes.
[...].
Capítulo 2
A
menina de ouro
[...].
É
certo que Edwiges nasceu em berço nobre. Seu pai, Bertholdo III, um católico
fervoroso, ostentava vários títulos nobiliárquicos: era duque de Merânia, conde
o Tirol e príncipe da Coríntia, além de bisneto de Frederico I, o Barba-roxa,
que por sua vez era neto do imperador Otto, o patriarca. O poderoso Barba-roxa
foi, durante quarenta anos, a mais importante peça do xadrez imperial
germânico, com poderes semelhantes na Itália, onde o acumulou as funções –
entre 1155-1190 – com o Sagrado Império Romano.
A
mãe de Edwiges, Ignês Rochlethz, de família oriental, também católica, era
filha de Dedon V, conde de Rochlethz e marquês de Luzyce (ou Landesberch),
também de grandes riquezas e poderes. O nome Andesh, que designa a família de
Bertholdo e o castelo na Baviera, aparece pela primeira vez em documentos por
volta de 1080.
Quando
Edwiges nasceu, em dia e mês desconhecidos de 1174, já encontrou no mundo sete irmãos
– quatro homens e três mulheres. Sua chegada foi o desfecho de uma longa semana
de expectativa no Castelo de Andesh. Agora, finalmente, a princesa Ignês
entrava em trabalho de parto. Havia um clima de excitação no ar. As criadas
providenciavam tudo que médicos e parteiras solicitavam, deslizando rápidas
pelos corredores. O marido Bertholdo, apesar de experiente, demostrava
nervosismo. Os Acta Sanctorum registraram assim esta passagem:
-
A princesa Ignês acaba de ter uma criança, que passa bem.
A
mãe também está bem. É uma menina!
Quando
a criança foi depositada nos braços da mãe, ganhou um sinal-da-cruz na testa e
um beijo na face rosada. p. 19.
Dias depois da cerimônia de batismo, a alegria da família de Bertholdo era compartilhada com a sociedade de Andesh e das regiões vizinhas, numa festa que contou com a presença destacada do arcebispo, uma das maiores autoridades da região. O ponto algo foi o banquete, quando se consumiu muita carne de caça e vinho. As damas de honra e senhoras da nobreza comentavam:
-
A criança vai se chamar Edwiges.
[...].
Um retrato de época
A
essa altura do século XII, os ensinos católicos representavam a própria
vanguarda da elite europeia. A criação da universidade de Paris, em 1150, pelos
abades de Saint-Germain-des-Prés, subordinada diretamente ao papa, representava
o triunfo da Igreja como centro irradiador de cultura. A iniciativa teve como
consequência a fundação da universidade de Oxford, 15 anos depois, por
estudantes e professores ingleses que haviam passado pela universidade de
Paris. A Igreja se havia transformado em suporte e garantia de uma sociedade da
qual ela própria era primeira beneficiária: tudo era cristandade.
Do
ponto de vista da educação, era a febre do saber, o privilégio das elites, o
poder da informação. Uma febre que atingiria até mesmo a pequena Edwiges, ainda
em fase de alfabetização, que passou a considerar a possibilidade de permanecer
para sempre no convento de Kitzingen, estudando e consagrando sua vida a Deus.
A madre Petrussa, sua principal monitora, quando ouviu a confidência
prontamente sugeriu uma reflexão mais profunda, ponderando: “Entregar-se ao
serviço de Jesus é uma bela causa, porém, somente Deus sabe qual o melhor lugar
para você servi-lo”. É certo, porém, que a partir desses dias – e por toda a
adolescência – Edwiges acalentaria o sonho de viver para sempre num mosteiro.
p.17.
A
rotina no convento e os estudos das obras sagradas, que se intensificaram após
a primeira comunhão, fizeram de Edwiges uma menina encantadora, que a todos
cativava com sua vivacidade e inteligência. Certa vez, como recebesse
regularmente a visita da família, ela comunicou ao pai Bertholdo,
laconicamente, em tom de descoberta:
-
Papai, aqui me ensinaram que os pobres verdadeiros são os preferidos de Deus.
E assim, na hesitação e na incerteza próprias da idade, ecoou em seus ouvidos o anúncio das Escrituras que diz que Deus está presente nos campos, nas florestas e que seu discurso é voltado para os simples. Desde cedo, levando tudo ao pé da letra, Edwiges começou a procurar do lado de fora do palácio os campos que Deus prestigia com sua presença. E, nisso, ela era obstinada.
Todos
comentavam que Edwiges, mesmo sendo uma menina, pensava como uma adulta. Suas
virtudes cristãs, manifestadas precocemente como resultado dos exercícios de
purificação da alma (auto de piedade), podem e devem ser interpretadas como uma
imitação de Deus, algo exemplar enquanto manifestação divina. Ou, como
registram os Acta Sanctorum, “ela sempre procurava a pureza da vida
inocente, evitando a leviandade e a insolência próprias da idade”.
Foi na abadia de Kitzingen que Edwiges teria recebido uma revelação divina, por intermédio da irmã Romundes, já velha, cega e doente, que lhe confidenciou:
-
O Senhor me revelou que, ao contrário do que você imagina, não será com as
grinaldas celestiais das esposas de Cristo que você será coroada, mas com coroa
terrena, adornada de ouro e pedras preciosas. E muito pesada, por causa de
sua responsabilidade. Lembre-se que Deus estará ao seu lado para aliviar o
peso, mas você será uma princesa de verdade.
Edwiges deixou os aposentos da irmã Romundes bastante intrigada, chocada mesmo, acreditando ter ouvido uma sentença capaz de lhe determinar o rumo do próprio futuro. Tudo ficaria mais claro, semanas depois, quando a irmã Berta lhe comunicou que seu pai estava vindo para buscá-la, era hora de voltar para casa. Chegara ao fim um longo e rico período de recolhimento e estudos. Do lado de fora, além dos muros da abadia, o que aguardava Edwiges era um mundo mergulhado em guerras e fanatismo. p. 29. [...].
Capítulo
3
Sinal
dos tempos
O casamento, como era visto e praticado na Idade Média, pode ser simbolizado por um jogo de cartas marcadas. Ou seja, enquanto instituição, o casamento estava a serviço de diversos interesses, inclusive da procriação e do amor. Mas, não foram estes certamente os sentimentos que aproximaram a pequena Edwiges do jovem polonês Henrique I, nessa época apenas duque da Silésia (mais tarde ele seria príncipe da Polônia, sucedendo seu pai, Boleslau). Havia interesses estratégicos nessa união, que simbolizou uma aliança de pacificação na fronteira entre os dois países – as culturas teutônicas e eslava viviam em choque e os casamentos funcionavam como uma espécie conciliação, trégua entre os nobres que defendiam seus patrimônios. Foi Bertholdo quem comunicou à filha, com alguma solenidade, que seu noivo, um jovem de família polonesa recém-cristianizada, estava a caminho de Andesh para conhece-la – e que não seria difícil para ela “simpatizar” como um rapaz com tantas virtudes: valente, forte e rico.
Henrique
chegou acompanhado de alguns cavaleiros da sua guarda e foi recebido com festa
no palácio. Sua alegria foi maior quando percebeu que Edwiges – além de rica –
era bela e formosa. Entre os dotes da moça havia um quesito particularmente
importante para o jovem duque, que investia em sua nova prática religiosa: ela
era católica fervorosa. E, como havia uma certa urgência nas decisões a serem
tomadas, o noivado foi formalizado e concluído em questão de dias, pois tudo
havia sido decidido previamente. págs. 31-32.
quando
o casamento foi celebrado, em 1186, por Godofredo de Heifenstein, bispo de
Wesburgo, Henrique tinha 18 anos e Edwiges, 12. Eles estavam particularmente
formosos nesse dia – Henrique com seu traje de nobre, espada reluzente na
cintura, e Edwiges no melhor vestido, confeccionado durante dias pelas melhores
costureiras. Na cabeça, uma grinalda ornamentada com pedras preciosas em forma
de coroa (porém, não era uma coroa), de formato baixo, mais parecida com uma
grinalda.
Os
convidados para a cerimônia em Andesh foram escolhidos a dedo e representavam a
fina flor das aristocracias alemã e polonesa. [...]. Esses mesmos convidados,
todos da nobreza, eram testemunhas do empenho das duas famílias em estabelecer
uma “união de forças” contra a invasão dos bárbaros, que perseguiam os
proprietários de terras e saqueavam suas mansões. O fato de estarem combatendo,
na condição de aliados, um inimigo comum ajudava a dissipar antigas mazelas e
desavenças entre os príncipes. Em tempo de guerra, era necessário adotar e
reconsiderar as estratégias – e o casamento era uma delas.
Para
Edwiges, a possibilidade de se afastar da família, depois da experiência de
seis anos no mosteiro de Kitzingen, não seria mais um grande sofrimento. Ela
estava experiente e podia encarar com alguma naturalidade o fato de, logo após
o casamento, ter que se mudar para a Silésia, na Polônia, onde seu jovem marido
era o senhor. Dias depois, quando as condições do tempo permitiram, uma pequena
comitiva uma pequena comitiva deixava o castelo de Andesh, em carruagens,
seguindo em direção ao leste. Uma violenta tempestade de neve, porém, iria
intercepta-los no meio do caminho. Eles ficaram abrigados num castelo
pertencente ao pai de Henrique, o nobre Boleslau.
O
imprevisto iria retardar em alguns dias a chegada do casal ao castelo de
Breslau, onde seriam recebidos pelo repicar de sinos e as boas vindas do bispo
Siroslau. Depois da bênção na catedral, todos rezaram pedindo que o nobre
Henrique I, agora adulto e no poder, tivesse serenidade para dirigir os
destinos da pátria, ou seja, da Silésia. p. 33.
[...].