segunda-feira, 3 de abril de 2023

TRECHOS SELECIONADOS DE ALGUNS CAPÍTULOS: Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl (2ª Parte)

 

Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl; livro; Jesus
3. Preenchendo o vazio existencial

A MULHER SAMARITANA (cf. Jo 4,4-27)

Tinha de atravessar a Samaria.
Chegou, pois, a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto do terreno que Jacó tinha dado ao seu filho José. Ficava ali o poço de Jacó. Então Jesus, cansado da caminhada, sentou-se, sem mais, na borda do poço. Era por volta do meio-dia. Entretanto, chegou certa mulher samaritana para tirar água. Disse-lhe Jesus: “Dá-me de beber”. Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos. Disse-lhe então a samaritana: “Como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber a mim que sou samaritana? “É que os judeus não se dão bem com os samaritanos. Respondeu-lhe Jesus: “Se conhecesses o dom que Deus tem para dar e quem é que te diz: 'dá-me de beber', tu é que lhe pedirias, e Ele havia de dar-te água viva!” Disse-lhe a mulher: “Senhor, não tens sequer um balde e o poço é fundo... Onde consegues, então, a água viva? Porventura és mais do que o nosso patriarca Jacob, que nos deu este poço donde beberam ele, os seus filhos e os seus rebanhos?” Replicou-lhe Jesus: “Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede; Mas, quem beber da água que Eu lhe der, nunca mais terá sede: a água que Eu lhe der há de tornar-se nele em fonte de água que dá a vida eterna”. Disse-lhe a mulher: “Senhor, dá-me dessa água, para eu não ter sede, nem ter de vir cá tirá-la”. Respondeu-lhe Jesus: “Vai, chama o teu marido e volta cá”.
A mulher retorquiu-lhe: “Eu não tenho marido”. Declarou-lhe Jesus: “Disseste bem: 'não tenho marido',
Pois tiveste cinco e o que tens agora não é teu marido. Nisto falaste verdade”. Disse-lhe a mulher: “Senhor, vejo que és um profeta! Os nossos antepassados adoraram a Deus neste monte, e vós dizeis que o lugar onde se deve adorar está em Jerusalém”. Jesus declarou-lhe: “Mulher, acredita em mim: chegou a hora em que, nem neste monte, nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. Mas chega a hora, e é já em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são assim os adoradores que o Pai pretende. Deus é espírito; por isso, os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade”. Disse-lhe a mulher: “Eu sei que o Messias, que é chamado Cristo, está para vir. Quando vier, há de fazer-nos saber todas as coisas”. Jesus respondeu-lhe: “Sou Eu, que estou a falar contigo”. Nisto chegaram os seus discípulos e ficaram admirados de Ele estar a falar com uma mulher. Mas nenhum perguntou: 'Que procuras?', ou: 'De que estás a falar com ela?'


A história da mulher samaritana junto ao poço é a história de toda pessoa cuja vida se caracteriza por um vazio interior, por um vácuo espiritual. Para Frankl, a necessidade humana primordial é preencher esse vazio, encontrar um sentido pessoal para a vida. Todas as demais necessidades, seja a de satisfazer a fome ou de saciar o apetite sexual, seja a de alcançar status ou poder são secundárias com relação à busca fundamental de sentido.

A partir do momento em que o homem encontra e se agarra ao sentido da vida, sua capacidade de suportar tribulações se torna praticamente infinita. Durante os anos que passou nos campos de concentração, Frankl observou que aqueles que não conseguiam sobreviver aos rigores da vida confinada eram, em geral, os que haviam perdido toda consciência de um sentido da vida. “O prisioneiro que perdia sua fé no futuro – o seu futuro – estava condenado”. A afirmação de Nietzsche corrobora a convicção de Frankl: “Quem tem um porquê viver pode suportar quase qualquer como”. p. 58.

[...].

Muitos casos de longevidade podem ser atribuídos a uma forte consciência do sentido da vida. O grande poeta alemão Goethe viveu apenas dois meses após completar a segunda metade da sua obra-prima, Fausto, morrendo aos oitenta e três anos. Escrevendo sobre ele, Frankl diz: “Eu diria que, biologicamente, ele viveu os últimos sete anos de sua vida além dos seus recursos. Seus dias já estavam contados, mas ele viveu até concluir sua obra e realizar o seu sentido de vida”. Praticamente todos nós conhecemos o definhamento físico que pode afetar um homem aparentemente saudável depois da aposentadoria. Sem trabalho, sem o sentido que uma missão a cumprir proporciona, praticamente não há motivo para continuar vivendo. p. 59.

 

Sem dúvida, objetivos secundários se tornam às vezes objetivos principais. A fome, por exemplo, pode transformar-se numa necessidade absoluta. Mas Frankl esclarece que um objetivo secundário só se torna principal nos casos em que a busca de sentido deixa de ser o ponto de referência ou é abandonada. Refutando o argumento freudiano de que, sob condições de miséria, o instinto não satisfeito assume a precedência sobre todos os demais, Frankl diz: “Nos campos de concentração, testemunhamos o contrário; vimos que, diante de uma situação idêntica, um homem degenerava enquanto outro alcançava praticamente um estado de santidade”. Objetivos secundários se tornam objetivos principais quando a busca de sentido foi abandonada, deixando um vazio em seu lugar. Na tentativa de preencher o vazio, objetivos inapropriados para o homem assumem a prioridade. Essa era a situação da mulher samaritana junto ao poço de Jacó. Págs. 59 – 60.

A samaritana apresenta um quadro vívido do que Frankl chama de vazio existencial. A rotina monótona e sem sentido da sua vida está expressa graficamente no apelo espontâneo que ela dirigiu a Jesus quando ele rompeu suas defesas externas: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem tenha de vir mais aqui para tirá-la”. O sentido mias exato do texto grego poderia ser expresso assim: “Dá-me dessa água para que eu não precise mais vir, dia após dia, e fazer esse trabalho penoso e maçante de tirar água na rotina sem sentido da existência cotidiana”. O ritual dos afazeres diários só lhe trazia aborrecimentos e enfado porque ela perdera toda consciência de sentido em sua vida.

Todo terapeuta contemporâneo pode atestar que a experiência do vazio existencial é bem comum. Num comentário de grande perspicácia, a psicóloga Edith Weiss-Kopf-Joelson diz que a psicanálise atual não tem uma classificação clara para o “vazio existencial”. Ela observa que, na época de Freud, os padrões neuróticos classificavam-se em categorias bem distintas: histeria (transformar problemas emocionais em sintomas físicos), obsessões e compulsões (tornar-se obsessivo com uma ideia ou sentir-se compelido a praticar um determinado ato) e fobias (medos descabidos ou infundados). Atualmente, porém, os sintomas mais comuns não se enquadram em nenhuma dessas síndromes, mas se caracterizam por uma sensação de vazio, por uma sensação de falta de sentido, pela monotonia da vida cotidiana e pela instabilidade dos valores. Págs. 60 – 61.  

A exemplo de Frankl, devemos observar que essa sensação de estar perdido no universo não é uma doença em sentido patológico (isto é, anormal). O vazio existencial não descreve tanto uma doença, mas uma condição que muitas vezes está presente onde não existe nenhuma patologia. Evidentemente, o vazio existencial pode também estar onde há doença, e, nesses casos, deve ser detectado e tratado simultaneamente a outros sintomas de caráter mais anormal. Mas de modo geral, a sensação de falta de finalidade na vida é uma característica de quem está física e mentalmente bem, mas espiritualmente doente. Recusar-se a admitir o vazio existencial pelo que ele realmente é, uma perda da consciência de sentido, e querer tratá-lo sem referência ao mundo dos valores é cair na falácia comum do psicologismo que considera questões de valor apenas como mecanismos de defesa secundários e não como preocupações conscientes absolutamente legítimas. Uma das pacientes de Frankl comentou, certa vez, como seu interesse pela vida espiritual fora ridicularizado por terapeutas ao longo dos anos:

Por que tenho vergonha de tudo o que diz respeito à religião? Por que tudo me parece constrangedor e motivo de zombaria? Bem, eu sei exatamente por que me envergonho das minhas necessidades religiosas. O princípio básico do tratamento psicológico a que me submeti durante 27 anos, adotado por outros médicos e clínicas, sempre foi que esses anseios espirituais são especulações absurdas, próprias de solteironas; só o que se vê e ouve é importante, todo o resto é bobagem, criado por traumas, ou é apenas uma fuga para a doença (para escapar da vida). Assim, quando eu falava da minha necessidade de Deus, sempre temia que voltassem a me prender com a camisa de força. Todos os tratamentos até agora fracassaram. p. 62.

[...].

A abordagem direta de Jesus à mulher samaritana e sua imoralidade nos lembra que alguns problemas humanos simplesmente resultam de ações irresponsáveis e não devem ser explicados por interpretações psicodinâmicas. p. 63. [...]. Mostrar a essa mulher a inutilidade que representa procurar a felicidade através da satisfação do prazer sexual foi um aspecto importante do ministério de Jesus voltado a ela. Sabendo que ela tentara preencher o vazio existencial com a busca de prazer, Jesus não hesitou em levantar o problema. Como no caso do filho pródigo, se Jesus podia ajudá-la a tomar consciência, ela poderia tomar consciência de que a realização pessoal através da busca do prazer é invariavelmente um beco sem saída. O prazer não resulta da sua busca, mas da satisfação de preencher o lugar responsável que cabe a cada um na vida. p. 64.

[...].

[...]. Diferentemente da resposta a que ela estava habituada, Jesus não reagiu defensivamente. Ele aceitou a mulher e sua atitude defensiva sem revidar na mesma moeda. Ele se recusou a rejeitá-la como ela o rejeitou; mas também não permitiu que ela ditasse os termos da relação entre eles. Recusando-se a afastar-se dela e da sua situação difícil, ele no entanto, acolheu o tema da conversa que lhe foi oferecido, redirecionou-o para uma área de relevância pessoal para ela e relacionou a necessidade dela à dimensão mais ampla que incluía Deus. A implicação era muito clara; o único caminho para uma vida com sentido verdadeiro para ela (“água viva”) era esclarecer o problema moral que impossibilitava um relacionamento verdadeiro tanto com seus semelhantes como com Deus. Págs. 65 – 66.

[...].

[...]. A aceitação de um comportamento destrutivo é apenas “pseudopermissividade” e, na realidade, opõe-se aos seus melhores interesses do aconselhado. A reação da samaritana soa verdadeira. Em vez de rejeitar o confronto posto por Jesus, ela aplaude sua profunda compreensão da situação de vida dela, inclusive esquecendo-se de terminar a tarefa que a levava até o poço, retirar água, em consequência de sua aflição perante o novo e severo que foi obrigada a dirigir a si mesma. A melhor prova possível da eficácia do ministério de Jesus para ela é o convite que ela faz aos habitantes do lugar a irem ao encontro de Jesus. Ela queria ajuda para chegar a outros aspectos da sua vida que não tinham sentido. Ela precisava de ajuda para aprender que a vida, orientada a diferentes objetivos, podia adquirir sentido. Págs. 66 – 67.

 

4. Realizando o “eu” no compromisso responsável

O FARISEU SIMÃO (cf. Lc 7, 36-50)

Um fariseu convidou-o para comer consigo. Entrou em casa do fariseu, e pôs-se à mesa.
Ora certa mulher, conhecida naquela cidade como pecadora, ao saber que Ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume.
Colocando-se por detrás dele e chorando, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas; enxugava-os com os cabelos e beijava-os, ungindo-os com perfume.
Vendo isto, o fariseu que o convidara disse para consigo: “Se este homem fosse profeta, saberia quem é e de que espécie é a mulher que lhe está a tocar, porque é uma pecadora!” Então, Jesus disse-lhe: “Simão, tenho uma coisa para te dizer”. “Fala, Mestre” - respondeu ele.
“Um credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos denários e o outro cinquenta. Não tendo eles com que pagar, perdoou aos dois. Qual deles o amará mais?”
Simão respondeu: “Aquele a quem perdoou mais, creio eu”. Jesus disse-lhe: “Julgaste bem”. E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: “Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; ela, porém, banhou-me os pés com as suas lágrimas e enxugou-os com os seus cabelos. Não me deste um ósculo; mas ela, desde que entrou, não deixou de beijar-me os pés.
Não me ungiste a cabeça com óleo, e ela ungiu-me os pés com perfume. Por isso, digo-te que lhe são perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas àquele a quem pouco se perdoa pouco ama”. Depois, disse à mulher: “Os teus pecados estão perdoados”. Começaram, então, os convivas a dizer entre si: “Quem é este que até perdoa os pecados?” E Jesus disse à mulher: “A tua fé te salvou. Vai em paz”.

O fariseu Simão é um bom exemplo de um homem que nunca chegou a um entendimento, de fato, consigo mesmo. Complacente em sua moralidade, não via a necessidade do perdão em sua própria vida, e, por isso, como destaca a parábola nesse incidente, pouco conhecia a respeito do amor. Jesus expôs a questão de forma bem suscinta: “Aquele a quem pouco foi perdoado mostra pouco amor”. Empenhado em realizar-se através da obediência literal à lei religiosa, Simão estava demasiadamente envolvido na busca do seu próprio modo de viver correto, para abrir espaço em sua vida a outras pessoas. Nem Jesus nem a mulher que fora pecadora receberam mais do que uma atenção superficial, pois ele estava inteiramente voltado à realização de si mesmo através da lei.

Há, sem dúvida, uma escola de pensamento para a qual a realização do eu é o objetivo supremo da existência humana, o que em certo sento é verdade. As pessoas mais felizes são aquelas que realizaram suas potencialidades. Já vimos como uma vida não vivida, como capacidade não desenvolvidas podem tornar-se destrutivas. Admitimos a validade da posição que enfatiza a necessidade de tirar proveito máximo das capacidades de que fomos dotados, e concordamos com a visão segundo a qual o desenvolvimento de personalidade multifacetada é uma das formas mais apropriadas de extrair o máximo da vida. [...]. p. 82.

Dá-se muito ênfase, no mundo terapêutico, ao processo que consiste em desembaraçar os fios emaranhados que resultam em conflitos internos, impedindo assim a realização do eu. Muito se pode dizer a favor do princípio da homeostase, que consiste em atender aos apelos conflitantes do id, do ego, e do superego, de modo que a personalidade não se fragmente em consequência de distúrbios internos, mas consiga funcionar sem conflitos indevidos. Quando Sullivan fala da euforia como objetivo da vida, está se referindo a esse estado livre de tensões em que o ego, supostamente, está livre para seguir qualquer direção escolhida sem ser detido por problemas pessoais não resolvidos ou por necessidades neuróticos não satisfeitas. O conceito de paz de espírito tem o mesmo objetivo de eliminar as ansiedades quem mantêm a personalidade desestruturada e incapaz de mover-se em qualquer sentido. Págs. 82 – 83.

[...]. Com efeito, o sentido mias completo de paz de espírito só é, em geral, vivido após o cumprimento bem-sucedido de uma missão, uma missão que orientou o seu executor para longe dele mesmo e em direção a alguma outra coisa maior do que ele mesmo. A verdadeira paz de espírito provém não de uma situação distensa, mas da finalização de uma tarefa geradora de tensões. Contrariamente ao modo de pensar popular predominante, o estado distenso de tranquilidade e prazer leva com mais frequência à frustração de um vazio existencial do que a uma paz de espírito verdadeira. De modo similar, a autorrealização, como objetivo em si mesma, raramente é alcançada. Frankl observa que “a tensão neurótica depois da ‘felicidade’ no amor leva, precisamente por causa da tensão envolvida, à ‘infelicidade’”. Desse modo, é raro alcançar-se a autorrealização quando procurada diretamente; como a felicidade, ela surge como subproduto. [...].

Simão, como os fariseus que ele representava, era um bom homem, no sentido geralmente aceito do termo. De fato, em sua observância estrita da lei, era tão bom a ponto de não simpatizar com outros que eram menos rígidos em suas práticas religiosas. Sua preocupação com sua própria moralidade, transformada em fim em si mesma, cegava-o para o objetivo que poderia tê-lo ajudado de fato a realizar suas potencialidades. Preocupado em tentar evitar o pecado, ele não simpatizava com os que não eram fortes como ele. Sua condenação tácita, mas evidente, da mulher pecadora denunciou um descontentamento básico em sua vida, uma insatisfação que nascia da falta de relacionamentos com as pessoas. A situação desagradável em que se viu envolvido foi semelhante à vivida mais tarde por Saulo de Tarso, que só conseguiu desembaraçar-se dela efetuando uma mudança radical em seu modo de viver. Págs. 84 – 85.

O problema com que Simão se deparou é o que qualquer pessoa enfrenta quando se deixa absorver pelo pensamento sobre si mesma. A preocupação com o próprio progresso, a sensibilidade exacerbada com relação ao próprio avanço impede a pessoa de efetuar o progresso desejado. Veja, por exemplo, como a atenção voltada ao desejo de dormir dificulta pegar-se no sono, ou como a determinação de manter-se desperto estimula o sono. Ou observe como o artista demasiado consciente da produção artística que está criando descobre que essa autoconsciência dificulta seu melhor desempenho.

[...].

[...]. Frankl diz muito claramente: “O interesse primordial do homem não está na realização do seu eu, mas na realização de valores e na realização das potencialidades de sentido, que devem ser encontradas no mundo e não dentro de si mesmo ou dentro da própria psique como um sistema fechado”. A sensação da verdadeira realização procede não dos esforços mais vigorosos por autorrealização, mas do contato mais significativo como o mundo objetivo, externo. Entende-se melhor esse contato com o mundo exterior em termos de responsabilidade pessoal. p. 86. [...]. Frankl aplica frequentemente o princípio da ampliação de interesses. Ao escrever para uma enfermeira que se desesperava porque sua doença a impedia de realizar o trabalho que tanto a satisfazia, ele relata:


Procurei ajudá-la a compreender que trabalhar oito, dez ou sabe Deus quantas horas por dia não é lá grande coisa. Muitas pessoas fazem isso. Mas ser tão ansioso por trabalhar como ela era e ser incapaz de trabalhar, e mesmo assim não desesperar seria um feito que poucos conseguiriam realizar. E então perguntou-lhe: “Na realidade, você não está sendo injusta com todos os milhares de pessoas doentes a quem você dedicou sua vida como enfermeira? Você não está sendo injusta agindo, agora, como se a vida de uma pessoa doente ou incurável – isto é, de alguém incapaz de trabalhar – não tivesse sentido?”. Eu disse: “Se você se desespera nessa situação, você se comporta como se o sentido da nossa vida consistisse em ter condições de trabalhar nisso ou naquilo muitas horas por dia, mas agindo desse modo você tira de todas as pessoas doentes e incuráveis o direito de viver e a justificativa da existência delas”. Págs. 89 – 90.


Ao trabalhar com um grupo de pessoas com mais de 65 anos, é corriqueiro descobrir que todos os tipos de doenças preenchem rapidamente o vácuo de horas vazias depois da aposentadoria, a não ser que novos interesses sejam descobertos ou que antigos sejam retomados. Na fé cristã, o conceito de compromisso sempre foi primordial. A pessoa encontra sua vida não se apegando a ela, não a guardando com ciúme, mas dando-a livremente, perdendo-a no interesse de outros. E o paradoxo exposto por Jesus se revela inevitavelmente verdadeiro: “Aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” (Mt 16,25).

[...].

É esse interesse por valores mais fundamentais que caracteriza a logoterapia de Frankl. O aspecto mais distintivo da logoterapia está em sua insistência numa responsabilidade pessoal que significa muito mais do que o desenvolvimento do potencial pessoal; é um senso de responsabilidade que reconhece diferentes valores e escolhe uma relação com os valores mais elevados. Nessa ênfase, Frankl sublinha a abordagem característica de Jesus.

Não há passagem melhor do que esta, do encontro de Simão com Jesus, para identificar o método peculiar com que Jesus interpelava os fariseus. Registros em outras passagens mostram com clareza que Jesus denunciava abertamente o modo de vida farisaico: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que limpais o exterior do copo e do prato, mas por dentro estais cheios de rapina e de intemperança!” (Mt 23,25). Não obstante, esse encontro com Simão é mais coerente com o teor geral do ministério de Jesus. Ele usou a circunstância imediata, do momento, para expor o problema na vida de Simão, apresentando a Simão, com delicadeza, mas também com firmeza, os fatos do seu comportamento. Primeiro, Jesus deixou que Simão julgasse a si mesmo, em seguida, Jesus apresentou sua visão. E para a mulher pecadora tanto na casa de Simão como na praça do templo, suas palavras foram as mesmas: “O teu arrependimento purifica o teu passado. Encara o futuro com novas forças, não mais movida pela compulsão a pecar, mas livre para viver uma vida de responsabilidade e de compromisso”. Págs. 91 – 92.


Link para a continuação do post: TRECHOS SELECIONADOS DE ALGUNS CAPÍTULOS: Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl (3ª Parte)



quarta-feira, 15 de março de 2023

TRECHOS SELECIONADOS DE ALGUNS CAPÍTULOS: Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl (1ª Parte)

 

Jesus e a Logoterapia: O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl; livro; Jesus; Evangelho; Logoterapia

1. PRESCRUTANDO A PSICOLOGIA DAS ALTURAS 


A TENTAÇÃO DE JESUS (cf. Lc 4, 1-13)

Cheio do Espírito Santo, Jesus retirou-se do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, onde esteve durante quarenta dias, e era tentado pelo diabo. Não comeu nada durante esses dias e, quando eles terminaram, sentiu fome. Disse-lhe o diabo: “Se és Filho de Deus, diz a esta pedra que se transforme em pão”. Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: Nem só de pão vive o homem”. Levando-o a um lugar alto, o diabo mostrou-lhe, num instante, todos os reinos do universo e disse-lhe: “Dar-te-ei todo este poderio e a sua glória, porque me foi entregue e dou-o a quem me aprouver. Se te prostrares diante de mim, tudo será teu”. Jesus respondeu-lhe: “Está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto”. Em seguida, conduziu-o a Jerusalém, colocou-o sobre o pináculo do templo e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo, pois está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu respeito, a fim de que eles te guardem; E também: Hão de levar-te nas suas mãos, com receio de que firas o teu pé nalguma pedra”. Disse-lhe Jesus: “Não tentarás ao Senhor, teu Deus”. Tendo esgotado toda a espécie de tentação, o diabo retirou-se de junto dele, até um certo tempo.

 

O relato das tentações de Jesus nos oferece uma descrição clássica da luta interna que se trava na alma de cada homem. A experiência da tentação não só ilustra os princípios que Jesus escolheu para reger sua vida; ela também revela as escolhas básicas com que cada homem se depara à medida que deixa o abrigo da família e entra na arena da vida. Estabelecidas algumas diretrizes fundamentais nas principais áreas de escolha, as decisões cotidianas passam a depender de princípios, não de caprichos pessoais. Definidos previamente os princípios básicos segundo os quais viverá sua vida, o indivíduo não precisa mais se angustiar com cada decisão nem deixar sua conduta à mercê do puro acaso. Com efeito, característica distintiva da maturidade é a recusa a agir puramente ao sabor da ocasião; a decisão atinente a cada ato é tomada em referência a um princípio.

Uma insistência básica da fé cristã é que o homem é livre para tomar suas decisões conscientemente. Sem desconsiderar a influência de fatores inconscientes em operação na vida da pessoa, o cristianismo afirma, contudo, de modo inequívoco, que o resultado final da aventura do homem na vida depende de sua resposta pessoal. Sejam quais forem as experiências nefastas que o acometam, o fator decisivo não está nas condições, mas na resposta pessoal a essas condições. O psiquiatra Viktor E. Frankl descreve o homem religioso como aquele que diz “sim” à vida, como o homem que, apesar de tudo o que a vida lhe impõe, ainda encara sua existência com a convicção básica de que vale a pena viver. Págs. 17 - 18.

 

[...].

 

Seguramente, a visão de vida centrada em Deus foi agudamente contestada pelo reducionismo de uma visão científica que reduz tudo às suas origens primordiais e às suas formas mais primitivas. Mas a tarefa mesma da religião é mergulhar abaixo do nível dos fatos e explorar as dimensões mais profundas da vida. Um dos principais méritos de se estudar o registro bíblico é que nele, de modos simbólicos, as experiências mais profundas do homem, incluindo seus esforços para abrir canais entre ele próprio e o mundo sobrenatural, são apresentadas em forma gráfica. A imagem bíblica persistente do homem respondendo ao apelo de Deus é o modo dramático de dizer que a consciência é mais do que uma advertência introjetada dos pais; é também o homem se prontificar a realizar o potencial pleno para o qual foi criado. Como diz Frankl, “A consciência é a voz da transcendência; o homem ouve a voz, mas não a origina”. Págs. 19 - 20.

 

[...].

 

[...]. As tentações de Jesus ilustram vividamente que o princípio unificador das muitas facetas da sua personalidade foi o fato de ele relacionar todas as questões da vida à dimensão que incluía Deus. Quando procuramos compreender a origem do seu poder, descobrimos que ele estava em sua intimidade com Deus. Quando procuramos compreender a paciência do seu ministério, descobrimos que ela estava em sua constante busca de Deus. Quando procuramos compreender a coragem da sua fraqueza, descobrimos que ela estava em sua consciência da presença do Espírito de Deus em sua vida. Ainda mais do que isso, porém, a experiência das tentações deixa claro para nós o caminho pelo qual ele chegou ao senso inabalável de direção que caracterizou todo o seu ministério. p. 21.

 

A primeira tentação que assediou Jesus, e que importuna a todos nós, foi a de deixar prevalecer o princípio do prazer, a tentação de satisfazer os desejos sensuais imediatos sem levar em consideração objetivos de longo prazo. Para ver como essa tentação é comum, basta apenas lembrar como a fome extrema tende a anular todos os outros interesses, como uma dor aguda tende a dissipar todas as outras preocupações, como extremos inesperados de temperatura tendem a reduzir a eficiência humana. A tendência comum é satisfazer as solicitações urgentes do corpo para livrar-se da fome (física ou sexual), da dor ou do frio. No entanto, provas as mais diversas demonstram, de forma cristalina, que a lei da autopreservação não é a única que vigora entre os homens. Onde há compromisso com uma missão de vida, onde existe lealdade a um valor supremo, ali se revela falsa a perspectiva que insiste em sustentar que todos os valores superiores dependem da satisfação prévia dos impulsos mais primitivos.

 [...].

Quando Frankl afirma que nos campos havia “muitos exemplos – frequentemente heroicos – que provavam que mesmo nos campos os homens... não precisavam se submeter às leis internas aparentemente onipotentes da deformação psíquica”, ele está salientando o que Dorothy Thompson escreveu depois de visitar Dachau e de estudar os históricos de vida dos internos: “Os que continuavam sendo homens, em condições da mais desumana brutalidade, serviam a uma imagem e a um ideal muito superiores às realizações mais elevadas do homem”. Frankl descreve como a falta de vínculos como valores espirituais resultava na manifestação de características bestiais:


O responsável último pelo estado do eu interior do prisioneiro não eram tanto as causas psicofísicas enumeradas, e sim o resultado de uma decisão livre. Observações psicológicas dos prisioneiros mostram que apenas os que permitiam que sua lealdade interior ao seu eu moral e espiritual diminuísse acabavam caindo vítimas das influências aviltantes do campo. Conquanto a hipótese freudiana da onipresença do princípio do prazer apresente evidências óbvias que lhe dão sustentação em alguns casos, ela é apenas uma hipótese, e ainda uma hipótese baseada em evidências seletivas. O homem simplesmente não vive de pão apenas; nem sua necessidade de pão precisa ser satisfeita antes que ele atenda às necessidades de outros. Na verdade o preceito “Primeiro sobreviver, depois filosofar” perdeu sua validade nos campos. Frankl é muito claro ao dizer que “o que valia no campo era exatamente o contrário;... filosofar antes, morrer depois”. Quando o modo de viver do homem inclui invariavelmente a Deus, a expectativa futura assume maior importância do que o desejo imediato. Pág. 23.


[...].

Assim, a primeira decisão que Jesus tomou foi a de renunciar à gratificação imediata em proveito de objetivos futuros mais valiosos. Ele definiria sua linha de ação não de acordo como o que parecia impor-se como o melhor para ele no momento, mas segundo o que os objetivos de longo prazo exigiam, conforme vistos à luz da vontade de Deus para ele. Nem sempre lhe era fácil ver a vontade de Deus, fato que fica muito claro na oração angustiante no Jardim do Getsêmani, cujas palavras finais são, “Contudo, não a minha vontade, mas a tua seja feita!” (Lc 22,42).

A segunda tentação enfrentada por Jesus e com a qual todos nos defrontamos é a de deixar que o princípio do poder predomine; colocar a ambição pessoal por posição e prestígio acima de tudo. Essa tendência chega a ser tão imperiosa que Alfred Adler viu nela a motivação básica da vida. Ao enfatizar a importância da autoestima, vários analistas da cultura (Sullivan, Horney, Fromm) demonstram como é comum as pessoas lutarem por posições elevadas movidas pela ânsia de poder. Ninguém está totalmente livre da tentação de aproveitar-se de outros para fortalecer sua posição. 

Não há como negar a necessidade de uma autoestima saudável. Como a psicanálise nos ajudou a compreender, é óbvio que antes de amar o próximo precisamos amar a nós mesmos “apropriadamente”. Uma relação positiva como o próximo brota de um sentimento positivo a respeito do próprio eu. Estamos começando a entender que, em vez de condenar uma pessoa por uma atitude sua repreensível, precisamos compreender que o que ela precisa realmente é descobrir um valor maior em si mesma. É lamentável constatar que, em nossa sociedade impessoal, muitas pessoas com baixa autoestima só encontram aceitação de fato numa relação formal com um terapeuta, da qual extraem uma avaliação mais positiva de si mesmas.

 [...]. Por fim, alcança-se a posição, não correndo atrás dela, mas merecendo-a. Quando buscamos o poder diretamente, seja curvando-nos diante do diabo ou dando o lugar de honra aos objetivos demoníacos da riqueza, da posição ou da fama, o resultado é evidente. A ânsia de poder leva à subserviência ao demônio. Em termos de lealdades divididas, é alto demais o custo da submissão dos padrões superiores aos inferiores, da repressão dos relacionamentos pessoais para proveito do sucesso organizacional. Em última análise, como salienta Frankl repetidamente, a ânsia de poder nunca é satisfeita diretamente, e só encontra sua realização como subproduto. A autoestima nasce de “avaliações refletidas” positivas dos que foram ajudados. Essa é a resposta que Jesus dá ao diabo e que é mais especificada no decorrer do seu ministério: a posição de honra cabe a quem serve. (ver especificamente Jo 13, 3-16). [...].

A terceira tentação, sofrida por Jesus e também por nós, é a de eximir-se da responsabilidade pessoal. Mas insidiosa do que as duas anteriores, essa tentação assumiu proporções alarmantes, especialmente na cultura estadunidense, que é tão absolutamente dominada pelo determinismo psicológico e sociológico. Sem dúvida, a forma específica que a tentação assume para nós tem pouco a ver com lançar-se do pináculo do templo, mas o princípio é igualmente válido. Para nós, a tendência específica é justificar o nosso comportamento presente considerando-o consequência de um trauma lamentável sofrido na infância, de um relacionamento conturbado com os pais ou da pouca atenção recebida. p. 26

 A psicologia profunda nos ajudou a perceber que só podemos compreender o presente em termos do passado. O que agora precisamos, no entanto, é dar-nos conta de que o futuro não depende do passado, mas é moldado por nossa decisão consciente no “agora”. [...]. O homem é responsável por suas escolhas. De fato, o traço mais característico do ser humano é a responsabilidade. Além de todas as influências condicionantes, a vida do homem desenrola-se à medida que ele exerce sua liberdade de tomar decisões conscientes. Jesus não transferia para Deus, para seus pais ou para terceiros a responsabilidade que, por direito, lhe cabia. Ele exerceu se direito humano de aceitar a responsabilidade pelas consequências de suas ações, e ao fazê-lo ele também definiu o padrão para a nossa vida. Págs. 26 - 27.

[...]. No geral, o mundo terapêutico mantém-se indiferente com relação ao modo como o paciente vê sua vida. A insistência de Frankl em se assumir responsabilidade pelo que se é e pelo que se pode vir a ser, então, é uma mudança oportuna com relação a grande parte do determinismo que o mundo da terapia ensinou, [...]. É necessário, então, que uma psicologia das profundezas seja suplementada com uma psicologia das alturas que não desconsidere as dimensões abismais escuras do ser do homem, mas que também reconheça as altitudes que ele pode alcançar. Sem por um momento sequer reduzir a importância do esforço de Freud de trazer à tona as forças demoníacas que se ocultam no inconsciente, eu gostaria de dizer, ecoando Frankl, que existe também um inconsciente espiritual e que o homem só encontra sua orientação básica para a vida à medida que se entende com essas duas dimensões. [...]. Com muita propriedade, Frankl assim se expressa: em vez de dizer que “o homem é um animal sublimado, podemos demonstrar que ele esconde dentro de si um anjo reprimido”.

É na atmosfera de uma psicologia das alturas que termina a experiência das tentações. De que forma melhor o resultado poderia ser registrado do que dizendo que “os anjos de Deus se aproximaram e puseram-se a servi-lo” (Mt 4,11)? Quando foram tomadas decisões fundamentais sobre uma orientação de vida, quando foi escolhida uma direção que mantém a vida da pessoa aberta a Deus e, por consequência, aos valores supremos da vida, uma sensação de contentamento sereno preenche o coração, uma sensação tão diferente da angústia da luta espiritual quanto são os anjos diferentes do diabo. p. 29.

 

 2. ACIONANDO O PODER DESAFIADOR DO ESPÍRITO HUMANO 


ZAQUEU (cf. Lc 19, 1-10)

Tendo entrado em Jericó, Jesus atravessava a cidade.

Vivia ali um homem rico, chamado Zaqueu, que era chefe de cobradores de impostos. Procurava ver Jesus e não podia, por causa da multidão, pois era de pequena estatura. Correndo à frente, subiu a um sicómoro para o ver, porque Ele devia passar por ali.

Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe: Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casaEle desceu imediatamente e acolheu Jesus, cheio de alegria. Ao verem aquilo, murmuravam todos entre si, dizendo que tinha ido hospedar-se em casa de um pecador.

Zaqueu, de pé, disse ao Senhor: Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais.

Jesus disse-lhe: Hoje veio a salvação a esta casa, porque ele também é um filho de Abraão; pois, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido.


De todos os relatos sobre os encontros de Jesus com seus contemporâneos, nenhum é mais límpido e minucioso do que o episódio envolvendo Zaqueu. Deparamo-nos com a história atemporal de uma luta por posição que resultou em alienação pessoal e em afastamento da comunidade. E nos deparamos com uma amostra de como a pessoa alienada pode reintegrar-se à comunidade. De muitas formas, Zaqueu tipifica o homem contemporâneo de maneira muito mais decisiva do que talvez queiramos admitir. A sensação de alienação ou isolamento é normalmente percebida como marca característica da vida urbana contemporânea; basta consultar as estatísticas relativas ao número de pessoas que moram sozinhas em um ou dois cômodos para perceber como isso é verdade. [...]. Págs. 31 - 32.

[...].

Vendo Zaqueu sob essa luz, como um homem excluído dos relacionamentos, impelido à posição do inimigo por sempre deparar-se com a rejeição em suas tentativas de alcançar uma posição adequada na comunidade, começamos a entender o verdadeiro significado do episódio do Evangelho.  Sim, Zaqueu é descrito como uma pessoa de estatura baixa, fato que ele procura compensar subindo na árvore. Num sentido mais profundo, porém, ele estava no “alto de uma árvore”, ou seja, não conseguia encontrar as pessoas no nível do chão, numa relação face a face. [...]. p. 35.

Uma contribuição importante da psicologia profunda consiste em revelar a relação existente entre causa e efeito. Todo comportamento pressupõe um motivo, e esse motivo muitas vezes oculto no início, pode ser descoberto. A explicação da sequência causa-efeito tanto no nível consciente como inconsciente contribuiu imensamente para uma efetiva compreensão do homem. Por exemplo, aceitar, como aceita Harry Stack Sullivan, que cada indivíduo desenvolve sua “operação de segurança” específica, suas próprias formas de defesa do seu senso de autoestima e de seus sentimentos de significado pessoal, é começar a entender que a ação, apesar de inexplicável, está imbuída de um propósito. No caso de Zaqueu, o motivo pra assumir a odiada posição de coletor de impostos, para se tornar um lacaio do inimigo estrangeiro, passa a fazer sentido à luz do conceito de “operação de segurança”. Não conseguindo atuar de modo significativo no seio da própria comunidade, sendo levada a se sentir alienada e isolada da comunidade, a pessoa encontrará uma posição de prestígio em formas opostas à comunidade que a rejeitou inicialmente. Págs. 35 - 36.

 [...]. A pessoa se torna seletivamente desatenta às oportunidades de tentar alguma outra alternativa. Daí que a operação de segurança tende a se tornar cada vez mais o método habitual de reação. Como o padrão habitual de comportamento foi originalmente uma manobra de defesa e proteção, arriscar uma mudança é expor o eu, tornar-se vulnerável à angústia pessoal. Daí que a mudança de comportamento originalmente escolhida como mecanismo de defesa se torna cada vez mais difícil. Assim Zaqueu, tentando proteger uma autoestima vacilante, abandona seu próprio povo e resolveu arriscar-se com os odiados conquistadores. Mas ele não era feliz. Preso em sua própria operação de segurança, ainda alimentava a esperança de poder mudar sua situação de algum modo. Incapaz de ir ao encontro de Jesus, que despertara sua curiosidade, ele só podia tentar vê-lo a distância. [...]. p. 36.

[...].

O próprio Zaqueu podia mudar. Criticado como “colaboracionista”, traidor da própria comunidade, envolvido em transações desonestas e ardilosas, embaraçado em emaranhados físicos, psicológicos e sociológicos, não obstante ele podia mudar. [...]. É a partir do mundo da psiquiatria que redescobrimos a chave para a mudança tão vividamente demonstrada nesse encontro de Jesus com Zaqueu. Mais importante do que qualquer teoria, mais básica do qualquer técnica, mais significativa do que qualquer ensinamento é a relação de pessoa a pessoa existente entre dois indivíduos. Quer seja interpretada em termos de transferência e contratransferência ou de aumento da autoestima através de avaliações refletidas positivas ou de percepção mais realista do eu conforme refletida e definida por um terapeuta empático, a chave para a mudança está claramente na qualidade do relacionamento com outra pessoa. Além da aceitação compreensiva implícita em todo aconselhamento responsável, com fator que torna a relação eficaz está claramente demonstrado no incidente de Zaqueu: Jesus se arrisca de modo tão sincero e verdadeiro que Zaqueu encontra coragem para assumir o risco de mudar a si mesmo. Págs. 40 - 41. 

[...]

[...]. Para “enfrentar” a crítica da multidão, Jesus se põe na relação íntima de um convidado à casa de Zaqueu. Nesse simples ato, ele põe de lado toda prerrogativa de autoridade e se torna aquele em quem Zaqueu confia para cuidar de sua necessidade humana de renovação e de sua necessidade espiritual de companhia. Ignorando totalmente a multidão, ele demonstra, nesse modo ativo e específico, sua aceitação do forasteiro. A transformação que se segue é apenas o resultado esperado da aceitação demonstrada nessa grande profundidade. O convite de Jesus supunha que essa mudança podia ocorrer. Não era uma aceitação que se baseava na mudança, mas que antecipava a mudança. [...]. A máxima de Goethe, seguidamente citada por Frankl, diz muito claramente: “Considerando as pessoas como elas são, nós a pioramos. Tratando-as como se fossem o que deveriam ser, as ajudamos a se tornar o que são capazes de ser”. Era assim, invariavelmente, que Jesus agia com as pessoas. Págs. 42 - 43. 

[...].

[...] a promessa de reparação pelos males praticados deixa claro que o primeiro passo para uma mudança já foi dado, a aceitação da responsabilidade pessoal para moldar padrões de relações futuras. Que a mudança se completou está implícito nas palavras finais de Jesus. Salvação significa uma nova espécie de relação que inclui o humano e o sobrenatural. A salvação (ou “Saúde” na tradução de Tyndale) só pode ser completa quando as relações são positivas tanto na dimensão humana, de homem para homem, quanto na dimensão sobre-humana, de homem para Deus. Uma mudança só é verdadeira quando chega a todos os níveis, conciliando o homem não só com seus semelhantes, mas também com Deus. p. 43. [...].


Link para a continuação do post: TRECHOS SELECIONADOS DE ALGUNS CAPÍTULOS: Jesus e a Logoterapia. O ministério de Jesus interpretado à luz da psicoterapia de Viktor Frankl (2ª Parte)


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

LIVROS DO AUTOR CRISTÃO: MAX LUCADO PARA DOWNLOAD

 


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terça-feira, 13 de dezembro de 2022

PUREZA, A VIRTUDE QUE SE VÊ MAIS DESPREZADA (PARTE 2)

Artigo; Bíblia; Evangelho; Jesus Cristo; Livro; Santo Afonso MAria de Ligório; Tratado da Castidade
O que nos prejudica não é tanto o olhar casual como o premeditado, o mirar. Razão porque Santo Agostinho diz (Reg. ad Serv. Dei, n. 6): "Se vossos olhos casualmente caírem sobre uma pessoa, cuja vista vos pode ser prejudicial, guardai-vos, ao menos, de fitá-la". E São Gregório diz: "Não é lícito contemplar ou extasiar-se com a vista daquilo que não é lícito desejar, pois, ainda que expulsemos os maus pensamentos que costumam seguir o olhar voluntário, deixam sempre uma mancha na alma". Tendo se perguntado ao irmão Rogério, franciscano, dotado de uma pureza angélica, por que se mostrava tão reservado em seus olhares, quando tratava com mulheres, respondeu: "Se o homem foge à ocasião, Deus o protege; caso se expõe a ela, Nosso Senhor o abandona e facilmente cairá no pecado".

[...].

Está fora de dúvida que um cristão que vive sem recolhimento de espírito não pode praticar as virtudes cristãs da humildade, da paciência, da mortificação, como deveria. Guardemo-nos, por isso, de olhares curiosos, e só olhemos para objetos que elevam para Deus o nosso espírito. "Olhos baixos elevam o coração para o Céu", dizia São Bernardo. São Gregório Nazianzeno (Ep. ad Diocl.) escreve: "Onde habita Cristo com Seu amor, reina aí a modéstia". Com isso não quero, porém, dizer que nunca se deva levantar os olhos ou considerar coisa alguma; pelo contrário, é até bom, às vezes, olhar coisas que elevam nosso coração para Deus, como santas imagens, prados floridos, etc, já que a beleza dessa criatura nos atrai à contemplação do Criador.
Deve-se notar também que a modéstia dos olhos é necessária não só para nosso próprio bem, como para a edificação do próximo. Só Deus vê o nosso coração; os homens veem apenas nossas obras externas e, ou se edificam, ou se escandalizam com elas. "Pelo rosto se conhece o homem", diz a Escritura (Ecli 19, 26), isto é, pelo exterior se depreende o que é o homem interiormente. Todo cristão, por isso, deve ser o que era São João Batista, conforme as palavras do Salvador (Jo 5, 35): "Uma lâmpada que arde e ilumina". Interiormente deve arder em amor divino; exteriormente, alumiar, pela modéstia, a todos os que o veem. Também a nós se podem aplicar as palavras que São Paulo dirigiu a seus discípulos (I Cor 4, 9): "Somos o espetáculo dos anjos e dos homens". "A vossa modéstia seja conhecida de todos os homens" (Filip 4, 5).
Pessoas devotas são observadas pelos anjos e pelos homens, e, por isso, sua modéstia deve ser notória a todos, do contrário, deverão dar rigorosas contas a Deus no dia do Juízo. Observando a modéstia, edificamos sumamente os outros e os estimulamos à prática da virtude. É celebre o que se conta de São Francisco de Assis: Uma vez deixou ele o convento junto a um companheiro, dizendo que ia pregar; tendo dado uma volta pela cidade com os olhos baixos, entrou novamente no convento. 'Mas quando farás o sermão?', perguntou-lhe o companheiro. 'Já o fiz, respondeu-lhe o Santo, consistiu todo no resguardo dos olhos, do que demos exemplo ao povo'.

[...].

Nosso ideal mais perfeito de modéstia foi, porém, o nosso Divino Salvador mesmo, pois, como nota um célebre autor, os Evangelistas dizem, várias vezes, que o Redentor levantou os olhos em certas ocasiões, dando a entender, com isso, que tinha ordinariamente os olhos baixos. Por isso exalta o Apóstolo a modéstia de seu Divino Mestre, escrevendo a seus discípulos: "Rogo-vos pela mansidão e modéstia de Cristo" (II Cor 10, 1). Concluo com as palavras de São Basílio a seus monges: "Se quisermos que nossa alma tenha suas vistas sempre postas no Céu, filhos queridos, conservemos nossos olhos sempre voltados para a terra". De manhã, ao despertar, devemos já pedir, com o Profeta: "Afastai meus olhos, Senhor, para que não vejam a vaidade" (Sl 118, 37).


IV. DA GUARDA DO CORAÇÃO


A modéstia dos olhos pouco nos servirá se não vigiarmos sobre o nosso coração. "Aplica-te com todo o cuidado possível à guarda do teu coração, diz o Sábio (Prov 4, 27), porque é dele que procede a vida". É aqui o lugar apropriado para se dizer algumas palavras sobre as amizades e, primeiramente, sobre as santas, depois sobre as puramente naturais e, afinal, sobre as perigosas.

[...].

Tais amizades são recomendadas pela Escritura mesma, em termos eloquentes: "Nada se pode comparar com o valor de um amigo fiel, e o valor do ouro e da prata não iguala a bondade de sua fidelidade" (Ecli 6, 16). "Um amigo fiel é um remédio para a vida e a mortalidade, e os que temem o Senhor encontram um tal" (Idem).

[...].

Os que, vivendo no mundo, desejam dedicar-se à prática da virtude verdadeira e sólida, precisam, pelo contrário, de se unir aos outros por uma amizade santa e edificante, para poderem, por meio dela, se animar, se auxiliar e se estimular ao bem. Há no mundo poucas pessoas que tendem à perfeição e muitas que não possuem o Espírito de Deus e, por isso, é preciso que os bons, quanto possível, evitem os que podem impedir seu adiantamento espiritual e travem amizade com os que os podem auxiliar na prática do bem.

2) Quanto às amizades puramente naturais, deve-se dizer que elas têm seu fundamento na nossa natureza, que nos compele a amar nossos pais, nossos benfeitores e todos aqueles em quem vemos belas qualidades e com quem simpatizamos. Esta espécie de amizade é o laço da família e da sociedade, mas facilmente degenera em amizades falsas; por exemplo, se os pais, por um carinho demasiado, toleram as faltas de seus filhos, ou se um amigo ofende a Deus para agradar a seu amigo, etc. As amizades naturais só são agradáveis a Deus se as santificarmos por meio da boa intenção; por exemplo, amando a nossos pais e amigos por amor de Deus.

3) Por amizades perigosas entendem-se, em particular, as sensuais, isto é, aquelas que se baseiam sobre uma complacência sensual, sobre a fruição comum de prazeres dos sentidos, sobre certas qualidades fúteis e vãs de espírito e coração. Essas amizades são já por si perigosas, mesmo que, no começo, nada tenham de inconveniente, e devemos guardar nosso coração desembaraçado delas.
a) "Quem não evita relações perigosas, cai facilmente no abismo", diz Santo Agostinho (Serm. 293). O triste exemplo de Salomão bastaria para nos encher de terror. Depois de ter sido amado tanto por Deus, servindo ao Espírito Santo de mão para escrever, travou relações com mulheres pagãs, já na sua velhice, e caiu tão profundamente que chegou a sacrificar aos deuses. Isso, porém, não nos deve estranhar, pois, será para admirar que alguém se queime, permanecendo no meio das chamas? - pergunta São Cipriano (De sing. cler.).

[...].

Não é só grande a perda espiritual que se sofre com essas amizades baseadas sobre certas qualidades externas duma pessoa, mas, principalmente se for doutro sexo, é também enorme o perigo que se corre de se se perder eternamente. No começo, tais amizades parecem indiferentes, mas tornam-se pouco a pouco pecaminosas e, enfim, arrastam a alma ao pecado mortal. "São como o fogo e a palha, e o demônio não cessa de assoprar até irromper o incêndio", diz São Jerônimo.
Pessoas de diferentes sexos abrasam-se por causa da muita familiaridade, com a mesma facilidade com que a palha atingida pelo fogo, e, em certo sentido, até com mais facilidade, porque o demônio emprega tudo quanto é apto para atiçar o fogo. Santa Teresa viu-se um dia transportada ao inferno, onde Deus lhe mostrou o lugar que lhe preparara, se não rompesse com um apego puramente natural a um seu parente.
b) Se sentires em teu coração, alma cristã, uma tal afeição para com alguém, não há outro remédio para te libertares dela, senão cortá-la resolutamente de uma vez para sempre, pois, se quiseres renunciá-la pouco a pouco, crê-me, nunca chegarás a desfazer-te dela. Essas cadeias são dificílimas de romper, e só o conseguirá quem as quebrar violentamente, duma só vez. E não venhas com a desculpa de que, até agora, nada ocorreu de inconveniente, pois deves saber que o demônio não começa com o pior, mas só pouco a pouco leva a alma imprudente às bordas do precipício e, então, com um leve empurrão, precipita-as no abismo.
É uma máxima aceita por todos os mestres da vida espiritual de que, neste ponto, não há outro remédio senão fugir e afastar-se da ocasião. São Filipe Néri costumava dizer que, nesse combate, só os covardes saem vencedores, isto é, os que fogem da ocasião. Podemos resistir aos outros vícios ficando na ocasião, diz São Tomás (De mod. conf., c. 14), fazendo violência contra nós mesmos; mas o vício contrário à pureza, porém, só o poderemos vencer fugindo da ocasião e renunciando às afeições perigosas.
Se sentires, porém, teu coração livre e desembaraçado de tais afeições, toma todo o cuidado possível para não te emaranhares em laço algum, como já se tem dado a muitos em razão de sua negligência. Eis o conselho que te dá São Jerônimo (Ep. ad Eust.): "Se, no trato com alguém, notares que alguma afeição desregrada se quer apoderar de teu coração, apressa-te a sufocá-la antes que se torne um gigante. Enquanto o leão é ainda pequeno, pode ser facilmente trucidado; uma vez crescido, tornar-se-á mui difícil e humanamente impossível".
Coisa verdadeiramente lamentável e vergonhosa seria se permitisses que fizessem, em tua presença, gracejos indecentes. Não julgues que não pecas calando-te e simplesmente ouvindo tais gracejos; se não evitares o mais depressa possível a companhia de um homem tão insolente, já cooperaste com o seu pecado e te fizeste réu dele. [...].

c) Não repliques também que não há perigo, porque a pessoa de que se trata é piedosa. São Tomás de Aquino diz (De mod. conf., c. 14): "Quanto mais santas são as pessoas pelas quais sentimos afeição particular, tanto mais devemos nos acautelar, porque o alto apreço que fazemos de sua virtude mais nos estimula ainda a amá-las". O padre Sertório Caputo, da Companhia de Jesus, diz: "O demônio, a princípio, nos inspira amor à virtude daquela pessoa, depois o amor à própria pessoa e, finalmente, nos lança na perdição". O Doutor Angélico faz notar que o demônio sabe perfeitamente esconder um tal perigo: no começo não dispara seta alguma que pareça envenenada, mas só tais que excitem a afeição, ocasionando leves feridas do coração; em seguida, quando o amor já está aceso, essas pessoas já não se tratam mais como anjos, mas como homens de carne e sangue: trocam repetidos olhares e palavras amorosas, desejam estar muitas vezes a sós, juntas e, por fim, a piedade espiritual degenera em amor carnal.

d) São Boaventura indica cinco sinais dos quais se pode deduzir se a afeição que a alguém nos prende é impura. Primeiro: se se entretêm conversas inúteis; e inúteis são todas as que levam muito tempo. Segundo: se ocorrem olhares e louvores mútuos. Terceiro: se se desculpam as faltas reciprocamente [evitando correções para não desagradar]. Quarto: se aparecem pequenos ciúmes. Quinto: se a separação causa certa inquietação. Eu ajunto ainda: Se se sente grande prazer e gosto nas maneiras ou gentileza natural da pessoa amada, se se deseja que a afeição seja correspondida, e se se não gosta de que outros observem, ouçam ou falem disso.

[...].

Do filho de Tobias podemos aprender como os jovens devem se preparar para o casamento. Na cidade de Ragés, na Média, vivia uma piedosa donzela, de nome Sara, filha de Raguel. Estava profundamente aflita porque sete rapazes, que a haviam sucessivamente desposado, haviam sido mortos pelo demônio da impureza, Asmodeu, na primeira noite depois das núpcias. Ora, o anjo Rafael, que acompanhara o jovem Tobias em sua viagem a Ragés, aconselhou-o a pedir Sara em casamento. Ele, porém, a par do ocorrido com os outros homens, temia expor-se ao mesmo perigo. O Anjo, porém, tranquilizou-o, dizendo: "Ouve-me... o demônio só tem poder sobre aqueles que abraçam o estado conjugal excluindo a Deus de seus pensamentos, para satisfazerem unicamente a sua concupiscência, como o cavalo e a mula, que não têm entendimento.
Tu, porém, quando receberes a Sara, entra com ela no teu quarto por três dias e três noites, guardando continência, e não te entregues a outra coisa que à oração, e então a receberás em matrimônio no temor do Senhor, levado mais pelo desejo de ter filhos que pela concupiscência, para que sejas abençoado e teus filhos sirvam e glorifiquem a Deus; então nada terás a temer do demônio". O jovem Tobias seguiu esse conselho, e seu casamento foi muito abençoado por Deus.
Notemos igualmente as quatro exortações dadas a Sara por seus pais, ao se despedirem dela: Primeiro, honra a teu sogro; segundo, ama a teu marido; terceiro, cuida em governar bem tua casa; quarto, porta-te em tudo irrepreensivelmente. Estes avisos devem servir de norma a todos os jovens que pretendem contrair matrimônio.

[...].

g) Aqui na terra cada um de nós anda por caminhos escabrosos e em trevas, e se, além disso, ainda um anjo mau, isto é, um mau companheiro, que é pior que um demônio, nos persegue e impele à perdição, como poderemos escapar ilesos? Já Platão dizia: "Tomarás os mesmos modos daqueles com quem convives". Segundo São João Crisóstomo, para se certificar dos hábitos de alguém, basta saber com quem ele anda, já que os amigos ou são ou fazem-se semelhantes uns aos outros. E isso por duas causas: primeiro, porque um se esforça por imitar o outro para lhe ser agradável; segundo, porque o homem, como nota Sêneca, é inclinado a fazer o que vê os outros fazerem.
Dos israelitas lemos: "Eles se mesclaram com os gentios e aprenderam suas obras" (Sl 105, 35). Devemos, portanto, não só fugir do comércio com os impuros, diz o Sábio, mas também nos conservarmos longe de seus caminhos: "Meu filho, não andes com eles e não ponhas o pé em seus caminhos" (Prov 1, 15). Devemos evitar todo o trato com eles, suas conversas ou presentes, com os quais procuram nos enredar. "Meu filho, se os pecadores te atraírem com seus afagos, não condescendas com eles" (Prov 1, 10). "Cairá, talvez, uma ave, no laço armado na terra, sem a isca?" (Am 3, 5). O demônio serve-se dos maus amigos como de iscas, segundo Jeremias, para prender as almas em suas redes de pecado. "Meus inimigos, sem motivo, prenderam-me como se prende uma ave" (Jer 3, 52). Ele diz 'sem motivo' porque, perguntou-se a um tal sedutor por que aliciou sua pobre vítima ao pecado, responderá: não havia motivo; eu só queria que ela fizesse como eu. É exatamente essa a astúcia do demônio, diz Santo Efrém: "Capturada uma alma em sua rede, serve-se dela como de uma armadilha para prender a outra" (De rect. viv. rat., c. 22).
Fujamos, pois, a toda familiaridade com tais escorpiões infernais, como se foge da peste. Digo: fujamos à familiaridade, isto é, não travemos amizade com homens viciosos, evitando tomar parte em sua mesa, banquetes ou outros convívios com eles. É impossível evitar todo o comércio com eles, porque então teríamos de sair deste mundo, segundo o Apóstolo (I Cor 5, 10); contudo, é bem possível evitar um trato mais familiar com eles, seguindo o conselho do mesmo Apóstolo: "Eu vos escrevi que não tenhais comunicação com eles... com um tal não deveis nem sequer cear". Disse ainda: Fujamos de tais escorpiões, pois o profeta Ezequiel designa assim os sedutores: "Pervertedores estão contigo e habitas com escorpiões" (Ez 2, 6).

[...]

NOTA: Teria mais dois temas a serem abordados, mas ficaria por demais prolixo o texto neste post, os subtítulos ou temas, seriam: V) Da virgindade; e do VI) Do voto da castidade. Mas, para quem estiver interessado a ler o capítulo deste livro, deixarei o link no post, para que o baixem, e o leem na íntegra.




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1 Aquele que recebeu a semente entre espinhos é o que ouve a palavra, mas os cuidados deste mundo e a sedução da riqueza sufocam a palavra que, por isso, não produz fruto. (Mt 13:22)

2 O perigo do adultério — Há duas espécies de coisas que multiplicam os pecados, e uma terceira que provoca a ira: a paixão que arde como fogo aceso e que não se apaga enquanto não se consumar; o homem entregue à sensualidade, que não cessa enquanto o fogo não o devorar; o homem sensual, para o qual todo alimento é doce, e não se satisfaz enquanto não morrer; o homem que trai o leito matrimonial, dizendo: “Quem me vê? As trevas me envolvem e as paredes me escondem. Ninguém me vê. O que tenho a temer? O Altíssimo não se lembrará dos meus pecados”. Ele só tem medo do que os homens veem, e não sabe que os olhos do Senhor são mil vezes mais luminosos que o sol, porque veem todos os caminhos dos homens e penetram os lugares mais escondidos. Deus conhecia as coisas, ainda antes de criar o universo, e o mesmo acontece depois que as criou. Tal homem será castigado na praça da cidade e será preso onde não espera. O mesmo acontece com a mulher que abandona o marido e gera um herdeiro com outro homem. Em primeiro lugar, ela desobedece à lei do Altíssimo; em segundo, ofende o seu marido; em terceiro, se prostitui com o adultério e gera filhos de um estranho. Ela será arrastada diante da assembleia, e sobre os seus filhos se fará uma pesquisa. Seus filhos não criarão raízes e seus ramos não darão frutos. A memória dela será amaldiçoada, e sua infâmia nunca será apagada. Os sobreviventes saberão que nada é melhor do que o temor do Senhor, e nada é mais doce do que observar os seus mandamentos. Eclo 23:16-27

3 “Porquanto o clamor de Sodoma e Gomorra se tem multiplicado, e porquanto o seu pecado se tem agravado muito, descerei agora, e verei se com efeito têm praticado segundo o seu clamor, que é vindo até mim; e se não, sabê-lo-ei.” (Gênesis 18:20,21)



Referências

Bíblia Sagrada

SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO, Escola da Perfeição Cristã, compilação de textos do Santo Doutor pelo padre Saint-Omer, CSSR, tradução do padre José Lopes, CSSR, IV Edição, Editora Vozes, Petrópolis: 1955.



DOWNLOAD DO CAPÍTULO DO LIVRO: TRATADO DA CASTIDADE (BEM- AVENTURADOS OS PUROS)





PUREZA, A VIRTUDE QUE SE VÊ MAIS DESPREZADA

Artigo; Livro; Jesus Cristo; Evangelho; Bíblia; Pureza; Santo Afonso Maria de Ligório; Tratado da castidade
"UM HOMEM BOM É LIVRE, MESMO QUANDO É ESCRAVO. UM HOMEM MAU É ESCRAVO, MESMO QUANDO É REI. NÃO SERVE A OUTROS HOMENS, MAS A SEUS CAPRICHOS. TEM TANTOS SENHORES QUANTOS VÍCIOS". SANTO AGOSTINHO


A pureza da alma é uma das principais virtudes que existe, pois é através dela que somos conduzidas as demais virtudes. Mas a grande parcela da humanidade está somente mais preocupada com as coisas concernentes deste mundo, que recusa a mais essencial de todas! E isso é um fato incontestável, que vemos contumaz nos nossos dias. A maioria das pessoas querem viver uma vida mais saudável e para que isso ocorra, utilizam métodos nutricionais e de práticas esportivas que os farão serem longevos e com saúde. O interesse de suas vidas está unicamente no corpo, buscam em detrimento do espiritual, estar mais cautelosos em cuidar do corpo que de suas almas. “O exercício físico de pouco serve, mas a piedade é útil para tudo, pois tem a promessa da vida presente e da futura”. 1Tm 4:8.

Aliás, preocupar-se com o corpo e buscar ter saúde não seria de todo errado, se procurássemos em primeiro lugar o Reino do Pai e a piedade com nossos irmãos, assim saberíamos conciliar os dois, encontrando um equilíbrio, como o próprio Senhor Jesus Cristo nos disse: “Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo.” Mt 6: 33. Mas estes estão vivendo completamente alienados do mundo espiritual, para eles a única realidade existente é a palpável. Querem a todo custo, aproveitar a vida e usufruir dos bens e prazeres terrenos. Algumas destas pessoas, porém, chegam ao acréscimo de suas iniquidades, ao escarnecer do Senhor e dos que o adoram e o servem. Através de programas televisivos nefastos, festas imorais e pagãs, ridicularizam os santos mandamentos, e zombam de tudo o que é sagrado que pertence ao Eterno.

Um outro grupo de pessoas buscam na religiosidade, como o próprio Senhor orientou, mas de uma forma medíocre e materialista de obter o “milagre” da casa própria, do emprego, do carro, e etc. Quando estão nas igrejas que congregam, personificam uma falsa santidade e, quando estão com os pés fora da igreja, agem similarmente aos mundanos que desejam satisfazer a concupiscência da carne. Estão inseridas no contexto da parábola do semeador, especificamente no que se refere aos que se deixaram levar pelas riquezas, e que por isso, não produziram frutos
1. Infelizmente, não se arrependeram de suas más obras e nem pretendem a santificação de suas almas, mas fazem aquilo que o Apóstolo Paulo, adverte em Fp. 3: 17-20: “Sede todos meus imitadores, irmãos, e olhai atentamente para aqueles que procedem conforme o modelo que tendes em nós. É que muitos de quem várias vezes vos falei e agora até falo a chorar são, no seu procedimento, inimigos da cruz de Cristo: O seu fim é a perdição, o seu Deus é o ventre, e gloriam-se da sua vergonha, esses que estão presos às coisas da terra. É que, para nós, a cidade a que pertencemos está nos céus, de onde certamente esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo”.

O preâmbulo de início, destaca o quanto ilusório é a cobiça e a ambição por riquezas que fenecerão, tudo que 
o mundo nos concede é passageiro, mas Deus nosso Pai, nos oferece algo infinitamente maior que tudo que há no mundo. Através de nosso SENHOR E SALVADOR JESUS CRISTO, temos o acesso ao Pai e a graça de um dia sermos revestido com a imortalidade, que Ele dará aos que creram e confiaram em Seu Filho. Ao encontrá-lo no outro lado do lago, perguntaram-lhe: Rabi, quando chegaste cá? Jesus respondeu-lhes: “Em verdade, em verdade vos digo: vós procurais-me, não por terdes visto sinais miraculosos, mas porque comestes dos pães e vos saciastes. Trabalhai, não pelo alimento que desaparece, mas pelo alimento que perdura e dá a vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará; pois a este é que Deus, o Pai, confirma com o seu selo”. Jo. 6:25-27

O resultado de não estarem alicerçados em Deus, é que o demônio terá total controle sobre o homem ou a mulher, que desejam somente satisfazer aos prazeres carnais. Este ser espiritual os induzirá à devassidão e a luxúria, e a tendência destes indivíduos é se afundarem mais e mais nos vícios sexuais e em outros mais funestos. E, estando aprisionados nas trevas, farão a vontade de seus senhores, pervertendo principalmente a essência humana, que Deus atribuiu de conceber filhos e filhas na santidade e no temor de Deus. Por outro lado, a sexualidade dentro dos princípios cristãos, foi planejado na família a partir da fidelidade, do amor do casal e dos seus filhos. “Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher, E serão os dois um só. Portanto, já não são dois, mas um só. Pois bem, o que Deus uniu não o separe o homem. De regresso a casa, de novo os discípulos o interrogaram acerca disto. Jesus disse: Quem se divorciar da sua mulher e casar com outra, comete adultério contra a primeira. E se a mulher se divorciar do seu marido e casar com outro, comete adultério”. Mc 10: 7-12

Quando ocorrem adultérios
2 e outras práticas imorais de consentimento dos casais, acontece que a alma, o espírito e a consciência das pessoas vão se maculando. Isto vai distorcendo a tomada de decisões, para o dever de cada um de nós na sociedade, portanto o “certo vira errado e o errado, o certo”. Há uma inversão de valores. Não é de admirarmos que a sociedade se encaminha a uma perversão moral, ética e social, nunca vistas! Muito mais agravante do que aconteciam em Sodoma e Gomorra3. Pois onde dominam ideologias progressistas e humanistas: a favor do aborto, políticas que defendem a ideologia de gênero como “normalidade,” dentro do comportamento humano, pautas a favor da liberação de drogas, fomento de culturas: na arte e na música, que abrangem a desvalorização das mulheres e a sexualização precoce das crianças. É deste modo, que vamos testificando como as coisas vão progressivamente, se encaminhando para a decadência total do ser humano, quanto principalmente aos seus valores. As profecias da Sagrada Escritura, nunca estiveram equivocadas, e se comprovam a cada dia com todos estes eventos; os homens por este meio, deixaram de lado a Deus e a Cristo, não o reconheceram como Senhor e Salvador de suas vidas, pois era o único que poderia mudar o destino de cada um deles. Mas eu confio em ti, SENHOR; e digo: "Tu és o meu Deus. O meu destino está nas tuas mãos; livra-me dos meus inimigos e perseguidores. Brilhe sobre o teu servo a luz da tua face; salva-me pela tua misericórdia." SENHOR, que eu não seja confundido, pois te invoquei; sejam, antes, confundidos os pecadores e reduzidos ao silêncio no sepulcro. Sl 31:15-18.

A esperança e a fé de um mundo vindouro e eterno, são frustradas, deixaram-se vencer pelos instintos carnais, o mais importante como dizem: “é viver a vida!” “Como foi nos dias de Noé, assim acontecerá na vinda do Filho do Homem. Nos dias que precederam o dilúvio, comia-se, bebia-se, os homens casavam e as mulheres eram dadas em casamento, até ao dia em que Noé entrou na Arca; E não deram por nada até chegar o dilúvio, que a todos arrastou. Assim será também a vinda do Filho do Homem. Então, estarão dois homens no campo: um será levado e outro deixado; Duas mulheres estarão a moer no mesmo moinho: uma será levada e outra deixada. Vigiai, pois, porque não sabeis em que dia virá o vosso Senhor”. Mt 24: 37-42.

Quem se dedica a exercitar a ascese, a partir do estudo Bíblico, e de livros espirituais de autores que estimulam a prática da caridade, através de uma plena comunhão com Deus e os irmãos. Estarão cientes dos quais hábitos devem vislumbrar para que consigam adquirir a pureza de coração. A primeira coisa a ser feita nas exortações, é buscar na moderação, principalmente no que os olhos veem, que pode levar a malícia. Não dirigir a atenção em coisas que pervertem os pensamentos, sejam nos atos libidinosos, na beleza de mulheres que não nos pertencem, práticas corruptas, e, outros enganos para que nos façam cair em vícios, e em outras práticas humanas que nos trarão tropeços e problemas posteriores as nossas vidas.

O Senhor Jesus Cristo, declarou bem-aventurados os puros de coração, pois estes triunfarão e poderão ver a Deus. “Felizes os puros de coração, porque verão a Deus”. Mt 5:8. Este é um requisito basilar, para que possamos um dia estarmos vivendo na eternidade, no Reino do Pai Eterno. As riquezas amealhadas sem o nosso Criador, fazem-nos parecermos a trapos imundos, pois somente Deus é que tem o poder de nos santificar. E, quando comungamos e damos ouvidos aos hereges, estes nos desviam do caminho da santidade, principalmente consoante a imoralidade sexual, e a adoração de ídolos. Salomão, foi um dos homens mais sábios que já existiram, mas se deixou corromper por suas muitas mulheres. Estas mulheres que provinham de povos pagãos, Deus de antemão, orientou aos filhos de Israel que não tomassem elas como esposas, pois praticavam o culto aos falsos deuses. “Na idade senil de Salomão, as suas mulheres desviaram-lhe o coração para outros deuses; e assim o seu coração já não era inteiramente do SENHOR, seu Deus, contrariamente ao que sucedeu com David, seu pai. Foi atrás de Astarté, deusa dos sidónios, e de Milcom, abominação dos amonitas. Salomão fez o mal aos olhos do SENHOR e não seguiu inteiramente o SENHOR, como David, seu pai. Por essa altura, ergueu Salomão um lugar alto a Camós, deus de Moab e a Moloc, ídolo dos amonitas, sobre o monte que fica mesmo em frente de Jerusalém. E fez o mesmo por todas as suas mulheres estrangeiras, que queimavam incenso e sacrificavam aos seus deuses. O SENHOR irritou-se contra Salomão, pois o seu coração se afastara do SENHOR, Deus de Israel, que se lhe tinha revelado por duas vezes, E lhe ordenou sobre estas coisas para não seguir os deuses estrangeiros. Ele, porém, não cumpriu o que o SENHOR lhe prescrevera”. 1Rs 11: 4-10.

No Sermão da Montanha, Jesus Cristo faz uma comparação figurada e antagônica, sobre os lírios do campo, e a vida luxuosa de Salomão. Mesmo com a sabedoria e riquezas obtidas, Salomão havia perdido a mais essencial de todas que era a pureza. O lírio do campo possui a representatividade da pureza, ela que lança suas raízes na “simplicidade” dos prados, possui mais esplendor, e se veste muito mais majestoso que os ricos que “desfrutam” as suas vidas no lodo do pecado. O destino de muitos destes homens e mulheres, é mais tarde, se culparem por não terem feito as boas escolhas. Pois esta reflexão se dará, quando se verem infelizes, aflitos e angustiados, perecendo na mais vil e tortuosa miséria da alma. “Qual de vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar um só côvado à duração de sua vida? Porque vos preocupais com o vestuário? Olhai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam! Pois Eu vos digo: Nem Salomão, em toda a sua magnificência, se vestiu como qualquer deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã será lançada ao fogo, como não fará muito mais por vós, homens de pouca fé?” Mt 6: 27-30.


OUVIR O TEXTO PRINCIPAL?


Anexado a este artigo, postarei alguns parágrafos do livro: Tratado da Castidade, de Santo Afonso Maria de Ligório. Nesta obra publicada, existem exortações e advertências dos santos da Igreja. Os exemplos de suas experiências ascéticas, estão em paralelo ao que as Escrituras Sagradas, nos aconselham como regras de vida cristã. A fim de sermos santos e irrepreensíveis diante de Deus e dos homens.


I. EXCELÊNCIA DA CASTIDADE

Ninguém melhor que o Espírito Santo saberá apreciar o valor da castidade. Ora, Ele diz: "Tudo o que se estima não pode ser comparado com uma alma continente" (Ecli 26, 20), isto é, todas as riquezas da terra, todas as honras, todas as dignidades, não lhe são comparáveis. Santo Efrém chama a castidade de "a vida do espírito"; São Pedro Damião, "a rainha das virtudes"; e São Cipriano diz que, por meio dela, se alcançam os triunfos mais esplêndidos. Quem supera o vício contrário à castidade, facilmente triunfará de todos os mais; quem, pelo contrário, se deixa dominar pela impureza, facilmente cairá em muitos outros vícios e far-se-á réu de ódio, injustiça, sacrilégio, etc.
A castidade faz do homem um anjo. "Ó castidade, exclama Santo Efrém (De cast.), tu fazes o homem semelhante aos anjos". Essa comparação é muito acertada, pois os anjos vivem isentos de todos os deleites carnais; eles são puros por natureza; as almas castas, por virtude. "Pelo mérito desta virtude, diz Cassiano (De Coen. Int., 1. 6, c. 6), assemelham-se os homens aos anjos"; e São Bernardo (De mor. et off., ep., c. 3): "O homem casto difere do anjo não em razão da virtude, mas da bem-aventurança; se a castidade do anjo é mais ditosa, a do homem é mais intrépida". "A castidade torna o homem semelhante ao próprio Deus, que é um puro espírito", afirma São Basílio (De ver. virg.).
O Verbo Eterno, vindo a este mundo, escolheu para Sua Mãe uma Virgem, para pai adotivo um virgem, para precursor um virgem, e a São João Evangelista amou com predileção porque era virgem, e, por isso, confiou-lhe Sua santa Mãe, da mesma forma como entrega ao sacerdote, por causa de sua castidade, a santa Igreja e Sua própria Pessoa. Com toda a razão, pois, exclama o grande doutor da Igreja, Santo Atanásio (De virg.): 'Ó santa pureza, és o templo do Espírito Santo, a vida dos Anjos e a coroa dos Santos!". Grande, portanto, é a excelência da castidade; mas também terrível é a guerra que a carne nos declara para no-la roubar. Nossa carne é a arma mais poderosa que possui o demônio para nos escravizar; é, por isso, coisa muito rara sair-se ileso ou mesmo vencedor deste combate. Santo Agostinho diz (Serm. 293): "O combate pela castidade é o mais renhido de todos: ele repete-se cotidianamente, e a vitória é rara".
"Quantos infelizes que passaram anos na solidão, exclama São Lourenço Justiniano, em orações, jejuns e mortificações, não se deixaram levar, finalmente, pela concupiscência da carne, abandonaram a vida devota da solidão e perderam, com a castidade, o próprio Deus!"
Por isso, todos os que desejam conservar a virtude da castidade devem ter suma cautela: "É impossível que te conserves casto, diz São Carlos Borromeu, se não vigiares continuamente sobre ti mesmo, pois negligência traz consigo mui facilmente a perda da castidade".


II. DA VIGILÂNCIA SOBRE OS PENSAMENTOS


[...]

a) Almas que temem a Deus e não possuem o dom do discernimento e são inclinadas aos escrúpulos, pensam que todo mau pensamento que lhes sobrevêm é já um pecado. Elas estão enganadas, porque os maus pensamentos em si não são pecados, mas só e unicamente o consentimento neles. A malícia do pecado mortal consiste toda e só na má vontade, que se entrega ao pecado com claro conhecimento de sua maldade e plena deliberação de sua parte. E, por isto, Santo Agostinho ensina que não pode haver pecado onde falta o consentimento da vontade.

[...]

c) Toda a malícia do mau pensamento está, porém, no consentimento. Havendo pleno consentimento, perde-se a graça de Deus e chama-se sobre si a condenação eterna, quer se tenha o desejo de cometer um pecado determinado, quer se pense ou reflita com prazer no pecado como se o estivesse cometendo. Esta última espécie de pecado chama-se uma deleitação deliberada ou morosa, e deve-se distinguir bem da primeira, isto é, do pecado de desejo.

[...].

a) O primeiro é humilhar-se continuamente diante de Deus. O Senhor castiga muitas vezes os espíritos soberbos, permitindo que caiam em qualquer pecado impuro. Sê, pois, humilde, e não confies em tuas próprias forças. Davi confessa que caiu no pecado por não ter se humilhado e ter confiado demais em si mesmo: "Antes de me haver humilhado, eu pequei" (Sl 118, 67). Devemos temer sempre a nossa própria fraqueza e colocar em Deus toda a nossa confiança, esperando firmemente que nos preserve desse vício.

[...]

e) O quinto meio é a fuga da ociosidade. O Espírito Santo diz (Ecli 33, 21): "A ociosidade ensina muita coisa má", isto é, ensina a cometer muitos pecados. E o profeta Ezequiel (Ez 16, 49), assevera que foi a ociosidade a causa das abominações e ruína final dos habitantes de Sodoma. Conforme São Bernardo, a ociosidade motivou a queda de Salomão. Por isso São Jerônimo exorta a Rústico (Ep. ad Rust., 2) que esteja sempre ocupado, para que o demônio não o preocupe com suas tentações. "Quem trabalha é tentado por um demônio só; quem vive ocioso, é atacado por uma multidão deles", diz São Boaventura.


III. DA MODÉSTIA DOS OLHOS

[...].

Vigie, pois, cada um sobre seus olhos, se não quiser chorar uma vez com Jeremias: "Meus olhos me roubaram a vida" (Jer 3, 51); as afeições criminosas que penetraram em meu coração por causa dos meus olhares, lhe deram a morte. São Gregório diz (Mor. 1, 21, c. 2): "Se não reprimires os olhos, tornar-se-ão ganchos do inferno, que a força nos arrastará e nos obrigará, por assim dizer, a pecar contra a nossa vontade". "Quem contempla objeto perigoso, acrescenta o Santo, começa a querer o que antes não queria". É também o que diz a Sagrada Escritura (Jdt 16, 11), quando diz que a bela Judite escravizou a alma de Holofernes, apenas este a contemplou.
Sêneca diz que a cegueira é mui útil para a conservação da inocência. Seguindo esta máxima, um filósofo pagão arrancou-se os olhos para guardar a castidade, como nos refere Tertuliano. Isso, porém, não é lícito a nós, cristãos; se queremos conservar a castidade, devemos, contudo, fazer-nos cegos por virtude, abstendo-nos de olhar o que possa despertar em nós os maus pensamentos. "Não contemples a beleza alheia; disso origina-se a concupiscência, que queima como o fogo" (Ecli 9, 8). À vista seguem-se as imaginações pecaminosas, que acendem o fogo impuro.

[...]. Julgue-se agora quão grande é a imprudência e temeridade dos que, não possuindo a virtude dum desses Santos, ousam passear suas vistas em todas as pessoas, não excetuando as de outro sexo, e querendo ainda ficar livre de tentações e do perigo de pecar. São Gregório diz (Dial. 1.2, c. 2) que as tentações que levaram São Bento a revolver-se sobre espinhos, provieram de um olhar imprudente sobre uma senhora. São Jerônimo, achando-se na gruta de Belém, onde continuamente orava e macerava seu corpo com as mais atrozes penitências, foi por longo tempo atormentado pela lembrança das damas que vira tempos antes em Roma. Como, pois, poderemos ficar preservados de tentações, quando nos expomos ao perigo, olhando e até fitando complacentemente pessoas de outro sexo?

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