6 de fevereiro de 2020

Antônio: O santo do amor (Parte 1)

Antônio: Livros; Antônio: O santo do amor parte 1; Fernando Nuno
UMA VOCAÇÃO EM APURO (COMEÇO DE 1220; INVERNO)

E só então me pergunto: Que estou fazendo aqui?
Que faço nesta terra inóspita e insalubre, em que sou estrangeiro, em que o solo duro do deserto e as dunas de areia escaldante começam logo à frente?
Contemplei a Deus, e Ele me contempla. Ouvi o chamado do Senhor. E vim. Ele me trouxe até aqui.
O som das cornetas dos encantadores de serpentes me chega através dos finos orifícios que dão para a Djemaâ, por onde quase não entra luz nem o ar necessário para respirar, mas que parecem amplificar, tantas vezes quantos são eles, os ruídos lá de fora, lá de cima. Da pra aqui ao lado, ouço ainda a modulação da voz dos contadores de histórias misturada aos sons cantados dos vendedores de água e de haxixe, apenas pressinto os confusos ruídos dos dromedários que chegam do deserto ao fundo, além. Sinto fiapos de odores, das comidas que preparam e vendem na Djemaâ, das flores, da água de rosas da pequena vendedora sentada ali fora bem perto, junto às frestas do porão.
Quero morrer de amor por Aquele que morreu de amor por todos os outros homens e mulheres deste mundo que pertence a Ele próprio, pois que além de homem é Deus. Que me dessem a morte por tanto Vos amar, que me torturassem em nome do amor divino que frutificaria na conversão dos ímpios; mas acabar assim, estendido sobre uma tábua áspera, ignorado por aqueles que deviam me perseguir e conhecido apenas pela doença intratável que, parece, irá dar cabo de mim? Queria tanto morrer por Vós, mas a que serve isto agora, qual é Vosso plano, Senhor?
De algo que está aqui dentro saltam as dúvidas, as perguntas, mas sobretudo a resposta necessária que se forma entre os abalos causados pelo mal-estar da doença. Ardo em febre, perco a consciência, recobro os sentidos amparados pelos braços de frei Filipino e frei Leão a oferecer-me o odre de água tépida, o calor os sufoca tanto quanto a mim.
Sinto que posso morrer, mas não na forma que desejava. Longe das ânsias do martírio pela fé, do sacrifício do meu corpo dado em oferenda a um homem como eu mas que também é Deus.
Está cumprida minha missão? Para isto me chamastes? Aceito o jugo que me impusestes, seja feita a Vossa vontade.
Aqui prostrado na tábua rija sobre o solo duro, sem mesmo uma enxerga que me sirva de colchão, a delirar numa língua absurda para os habitantes desta terra estrangeira de que é tão difícil aprender os costumes, vestido com o roto roupão cinzento dos que professam a mesma regra, sinto-me esvair rapidamente, sinto a tristeza dos companheiros assustados.
Pelas pequenas aberturas por onde entram os finos feixes de luz a iluminar o ar abafado e pestilento do porão, penetra agora também, como a pairar sobre a massa de ruídos e de cheiros, o canto do muezim a chamar para a oração aquela gente de outra fé.
Pai, em Vossas mãos entrego meu corpo e minha alma. Alegre estou porque posso ir para junto de Vós. Seja feita a Vossa vontade...
O sonho de morrer em nome do Senhor às mãos dos inimigos, glória almejada por tantos fiéis nesses séculos de furor religioso, está cada vez mais distante para o jovem frade português que atravessou o mar apenas para encontrar o fim de sua breve vida em Mrakch, a cidade que dá nome ao país de que é centro e que depois será conhecida como Marrakech.
Seu corpo frágil está subjugado pela doença, solar ou alimentar que seja. Nos breves intervalos de lucidez, ele começa a se perguntar se é essa realmente a vontade de Deus, se a glória divina, para se manifestar em todo o esplendor e ser ainda mais engrandecida, realmente precisa do sacrifício de sua carne e de seu sangue. Ter chegado ao coração da terra inimiga lhe parece agora, nos raros momentos em que consegue pensar, haver sido jornada vã. Os infiéis agem como se não se dessem conta do perigo que ele e seus companheiros representam, ao que tudo indica consideram inexpressiva e insignificante a sua presença, ou mesmo inexistente.
Que missão, portanto, Deus lhe confiaria, se não essa, do martírio? A morte inglória pela doença? Não haveria coisas mais importantes a fazer, outras missões que ele sequer imaginava, em lugares que nem supunha um dia vir a pisar?

O jovem frade delira. Num lapso de consciência, diz apenas:

- ... Seja feita a Vossa vontade!

Em seguida, balbucia mais algumas palavras que parecem sem sentido, escuta a voz de frei Filipino, companheiro de missão, que o chama pelo nome. Mas o cérebro febril parece ouvir ainda, confundido os apelos do amigo com os de outra voz vinda de algum lugar distante no tempo e no espaço, uma voz querida de mulher a chamar alguém, um menino. As ideias se dissolvem, sobram apenas os nomes, e ele mistura os nomes, os nomes apenas:

- Antônio!

- Fernando! 


OS NOMES FAZEM OS MITOS, OS MITOS FAZEM OS NOMES

Esse menino, que um dia viria a ser conhecido como um dos mais populares e queridos símbolos da cristandade sob o nome de Santo Antônio, chamou-se Fernando Martins de Bulhões e Taveira de Azevedo. Nome comprido, um tanto incomum numa época em que as outras pessoas quase todas só têm um nome próprio, além de um outro, o patronímico, que diz de quem é filho o seu portador. Poderá até nem haver tido tantos nomes, mas foi o maior que ficou para a História e para os livros.
Quando nasce o menino, os pais, Martinho e Teresa, dão-lhe o nome germânico de Fernando. No início do século V, quase oitocentos anos antes da história que estamos contando, os povos chamados “bárbaros” tinham invadido o que restava da parte ocidental do Império Romano. Desses grupos germânicos a conquistar a península Ibérica – e que explicam a maior parte da incidência de pessoas de cabelos e olhos claros até hoje em Portugal e Espanha –, foram os visigodos que prevaleceram, estabelecendo um reino que durou pouco mais de trezentos anos, até a invasão dos árabes, nos século VIII.
Ao tempo em que se inicia a história que estamos contando, decorridos mais de cinco séculos de ocupação muçulmana e começado o processo da Reconquista da península pelos reinos cristãos, a população tomava grande gosto nos nomes próprios de origem germânica, como os terminados em “ando” e “berto”. Fernando, nome que significa guerreiro audaz, pareceu ao pai cavaleiro e à mãe devota – guerra e devoção iam de mãos dadas nesses tempos de Cruzadas – bastante apropriado para o filho. Além do mais, era também o nome de um tio, irmão de Teresa e padre, dos primeiros, da catedral lisboeta ainda em final de construção. Mas talvez nem fosse o significado o importante, e sim o fato de que os nomes preferidos remontavam, como já sabemos, ao reino cristão anterior à ocupação mulçumana, o visigodo, e assim se revestiam do orgulho de pertencer a uma estirpe ibérica pré-moura. Os mouros eram a tribo de árabes (ou de povos arabizados) que, vinda da África, mais especificamente da Mauritânia (daí o nome de mauros, ou mouros, e daí a palavra “moreno” para se referir à pele menos clara), havia conquistado as terras ibéricas aos visigodos.
Ao nome de Fernando seguia-se o patronímico, Martins (que em outros lugares se poderia escrever Martin’s), ou seja, “Martim”, filho de Martim. Ou Martinho – afinal, nesta época em que tão poucos leem e escrevem e até os reis são analfabetos, os nomes flutuam ao sabor de quem os pronuncia. Por isso tanto dá também que tenhamos “Fernão” ou “Fernando”. Como se faz registro escrito das cerimônias religiosas, sendo os clérigos dos conventos quase as únicas pessoas que sabem ler e escrever letras, e como o registro se dá em latim, lá se encontra, nos assentamentos da ordem franciscana, a forma “Fernandus Martini” – consignada quando este menino Fernando Martins, que por enquanto mora e brinca em frente à sé de Lisboa, vier a se tornar, já adulto, seguidor da regra e do exemplo de Francisco de Assis.
Depois, uma vez que nos encontramos entre pessoas de importância na sociedade medieval, além do patronímico Martins, o pai legará a este menino algo não tão comum na época, isto é, um sobrenome próprio, a saber, Bolhom, e, por consequência, o menino se chama Fernando Martins de Bulhões (pois Bolhom, assim como Bulhão, é uma das formas medievais de Bulhões).
Aqui começa o mito a mesclar-se à verdade, sem que possamos deslindar e separar um da outra, de tal modo os séculos e as crenças construídas ao longo deles atravessam e fundem ambas as coisas.
O nome Bulhões vem de Bouillon, a região da Flandres de onde saiu o nobre Godofredo na Primeira Cruzada para tornar-se em 1099 rei de Jerusalém, o santo lugar em que pregou e morreu - e ressuscitou - Jesus Cristo Nosso Senhor.

[...].

O MUNDO TAMBÉM CONSPIRA PARA FORMAR SANTOS

As décadas de 11190 e de 1200 assistem a vários acontecimentos marcantes – não fossem também aquelas em que, na infância, se moldaram os anseios que norteariam a vida do santo mais popular dos países latinos.
Transcendendo as décadas, o mundo europeu vive conflitos que estão na raiz mesma do mundo moderno. Por um lado, o que opõe os cristãos à maré montante do islamismo, traçando uma linha fronteiriça entre duas forças que passa pelo interior da península Ibérica e se estende pelo Mediterrâneo, com eventuais reentrâncias muçulmanas no continente europeu e cristãs no Oriente Próximo.
Dentro do cristianismo, ocorre outra série de conflitos: o primeiro, mais genérico, que opõe a cristandade ocidental católica à oriental ortodoxa. Esse desentendimento ocasionará, durante a adolescência de Fernando Martins, como veremos, a invasão e o saque da capital ortodoxa – Bizâncio, ou Constantinopla – por forças católicas que na verdade supunha-se deverem confrontar o domínio do islã, geograficamente um pouco mais adiante.
Ao mesmo tempo, no interior do mundo católico, assiste-se ao conflito de poder pela supremacia material (ou temporal) entre o papa e o imperador do Sacro Império Romano, que ocupa a porção central do continente (essencialmente a Alemanha, a Áustria e o norte da Itália). O imperador pretende nomear não apenas bispos de seu território como também fazer ou destituir o próprio papa. Já o pontífice de Roma acredita estar num plano de ordens superior ao do Império: Inocêncio III (o papa que virá a aprovar as atividades da ordem franciscana, em que Santo Antônio irá se destacar) declara que não pode correr o risco de coroar um imperador ímpio ou assassino, ou sem condições mentais de exercer o poder.
Por esse lado, vários reis se colocam em estado de sujeição ao papa: soberanos de países distantes entre si como Portugal e a Dinamarca, a Inglaterra e a Hungria, se declaram vassalos do sumo pontífice e lhe enviam tributos.
Outro conflito de grandes dimensões já se prenuncia, entre Inglaterra e França. Em 1152, a duquesa da vasta região da Aquitânia. Alienor (ou Eleonora), tivera anulado seu casamento com o rei da França Luís VII. Já no mesmo ano, ela se casara com o rei inglês Henrique II, levando como dote seu ducado. Essa situação, pela qual o rei da Inglaterra se tornava senhor feudal de uma parcela substancial da França, viria a provocar rusgas intermitentes entre os dois reinos durante séculos. Os ingleses chegarão a dominar quase metade do que virá, séculos mais tarde, a constituir o território francês, e dali a duzentos anos os dois países se encontrarão (ou desencontrarão) em meio à calamitosa Guerra dos Cem Anos.
Não menos importante que essas dissensões é a das seitas heréticas, proliferam durante o período. Por conta dela ocorrerão grandes sanguinolências, que Fernando Martins, quando se tornar frade, tentará suprimir ou minorar com o poder de sua palavra coerente e firme. A atuação pela palavra estará na essência de sua santidade.

A INFÂNCIA EM MUNDO TURBULENTO

Está, assim, posto o quadro em que se desenvolve a infância de Fernando Martins de Bulhões, talhado para se tornar Santo Antônio.
Nasce num país jovem, Portugal, tornado independente apenas cinquenta anos, mais ou menos, antes de seu nascimento, que ocorre em... Não fizemos ainda a data, aí há outra controvérsia.
Seguindo antiga tradição, convencionou-se datar o nascimento do santo do dia festivo da Assunção de Maria, 15 de agosto, devido à intensa devoção que ele teve pela Virgem. Outra tradição firmada pelo tempo dá 1195 como ano de seu nascimento. Assim, em 1995 comemorou-se oficialmente o oitavo centenário de Santo Antônio. No entanto, como essa data não se acerta totalmente bem com a cronologia de sua vida, estudiosos apontam para distintos anos, a partir de 1188.
As medições antropométricas feitas em sua ossada, em 1981, levaram à conclusão de que tratava dos restos de um homem que havia pouco passara dos quarenta anos. Creditaremos, portanto, com boa dose de confiabilidade, a 1189 ser o ano do nascimento de Fernando Martins, ou Santo Antônio.
Com o tempo, como vimos, firmou-se também a fluida crença de que Martinho de Bulhões, seu pai, teria sido prefeito de Lisboa, burguês comerciante rico ou nobre cavaleiro. Seja como for, podemos concluir que seja um fidalgo, que mora com a mulher, Maria Teresa Taveira, e os quatro filhos numa bela casa bem em frente à antiga igreja que os mouros tornaram mesquita e que dom Afonso Henriques resolveu transformar em catedral da cidade, mandando construir torres que lhe acentuam o aspecto de fortificação. Nessa catedral é batizado o menino Fernando Martins, e ainda oito séculos depois a pia batismal em que ele se tornou cristão será venerada e visitada por uma multidão de fiéis.
Levando a estudar, pelo tio padre Fernando, na escola episcopal que a mando de dom Afonso Henriques o bispo de Hastings instalara junto à sé, Fernando Martins aprende a ler na época, tendo como colegas filhos de outros cavaleiros ou homens-bons do reino que vivem na cidade que é o posto avançado do reino. O primeiro conjunto de disciplinas estudadas é uma introdução ao trívio, composto pelas três artes liberais – a gramatica, a retórica e a dialética –, e depois, já bem entrados os alunos na adolescência, é que se envolvem nos princípios das artes liberais complementares – a aritmética, a geometria, a música e a astronomia –, as matérias que constituem o quadrívio. Nas décadas seguintes, com o desenvolvimento progressivo das primeiras universidades, o trívio e o quadrívio virão a constituir, na plenitude, o currículo acadêmico básico.
Aos quinze anos, concluída essa parte da educação, julga-se que seu pai o encaminha para as artes da cavalaria. Poucos têm recursos para possuir um cavalo, e dom Martinho está entre esses. Acima de tudo, o país precisa de soldados. O inimigo está logo ali, do outro lado do Tejo, ameaçador e voltando a flexionar os músculos.
No mesmo ano em que o primeiro rei português tomou Lisboa ao império almorávida, essa dinastia moura sofria importante derrota. Um outro grupo muçulmano, o do almôadas, tendo declarado a “guerra santa” aos almorávidas, conquistou justamente a capital de seu império, a cidade de Marrocos, ou Marrakech.
Com a troca de dinastia, os mouros tornam a ameaçar o que agora é território português: os almôadas vão gradualmente tomando os restos do império almorávida no norte da África e em parte da península Ibérica. Em Portugal, retomam territórios no Alentejo e chegam a fazer investidas bem ao norte de Lisboa, deixando bastante temerosos os que vivem na cidade. E atacam em várias frentes: em 1203, quando Fernando tem seus catorze anos, chegam a conquistar as ilhas Baleares, onde fica Maiorca, ao lado da Catalunha.
Enquanto isso, em Portugal, com a morte de dom Afonso Henriques, seu filho Sancho o sucedera em 1185, o que poderia revitalizar também o ânimo dos ibéricos envolvidos na Reconquista. No entanto, dom Sancho I não tem o mesmo impulso belicoso do pai e, preferindo manter a paz a se aventurar a novas conquistas de território, procura consolidar as instituições do jovem reino. Mesmo assim, o novo rei enfrentará a fase mais difícil desse combate. Antes de mais nada, pacifica as relações com os reinos cristãos vizinhos, Leão e Castela (que, como vimos, trezentos anos depois, já unidos, formarão o que hoje conhecemos como Espanha ao se juntarem, por sua vez, ao reino de Aragão). O rei português percebe que a paz entre os defensores da cruz é indispensável para enfrentar a ofensiva moura renovada. Com efeito, a situação de seu pequeno reino tornava-se delicada: os ataques muçulmanos a regiões ao norte de Lisboa haviam ocorrido em 1190 e 1191, na época do nascimento de Fernando Martins.
Como parte dessa nova maré montante do islamismo, um ex-escravo que se tornou valoroso líder guerreio, de nome Saladino, retoma Jerusalém em 1187, na frente oriental da grande batalha da época. Assim, a Cidade Santa acaba por permanecer sob domínio cristão por apenas cem anos, desde sua conquista pelos francos chefiados por Godofredo de Bulhões.
Outro movimento importante das peças no grande tabuleiro bélico da época se dá também no período em que nasce Santo Antônio, quando em 21 de janeiro de 1189, os reis Filipe Augusto da França e Henrique II da Inglaterra, em conjunto com o sacro imperador romano Frederico Barba-Roxa, convocam tropas para formar a Terceira Cruzada.
Essa cruzada, que irá durar três anos, acaba redundando em fracasso: Barba-Roxa morre afogado na Armênia, no ano seguinte, Ricardo Coração de Leão, que sucede a seu pai Henrique II, ainda conquista a ilha de Chipre e, junto com Filipe Augusto, toma a cidade do Acre, no litoral palestino. Logo em seguida, Filipe é atacado por uma doença e volta para a França; Ricardo chega a tomar a cidade de Jafa, mas acaba derrotado às portas de Jerusalém. Depois de perder também Acre, a cruzada é dada por encerrada. Na volta para a Inglaterra, para remate de males, Ricardo Coração de Leão se torna prisioneiro, em 1193, do sucessor de Frederico Barba-Roxa, o imperador Henrique VI; este pede resgate aos ingleses pela libertação de seu rei. É apenas um exemplo do respeito e da fidelidade às alianças que tem a maioria dos grandes líderes de qualquer época. Filipe Augusto aproveita a ocasião para retomar dos ingleses parte do território francês que se encontra sob domínio da Inglaterra.
Enquanto isso, no nordeste da Europa se estabelece – quando Fernando Martins, pelas nossas contas, tem um ano de idade – a organização dos cavaleiros teutônicos (ou alemães), com o objetivo declarado da defesa da Terra Santa. Essa ordem, no entanto, irá se destacar nos séculos seguintes menos pelas atividades religiosas e mais pelas comerciais e bélicas em sua própria região, que terão seu papel histórico na formação da Alemanha.
Do outro lado, no entanto, a situação não é menos complicada. O sultão Saladino morre em Damasco e começa a guerra civil entre os seus herdeiros pela liderança dos muçulmanos.
Como se vê, é um mundo (não muito diferente, talvez, daquele em que viverão tantas gerações futuras) em que ninguém parece poder confiar em ninguém, pelo menos entre os líderes dos povos, os senhores da guerra, e a paz é artigo raro. Se há alguma coisa visível a contrapor-se ao predomínio do belicismo, é o fato de que cresce o movimento monástico por toda a Europa. Além disso, inicia-se a construção das grandes catedrais e surgem universidades, que constituirão, em ambos os casos, monumentos de perenidade.
E, se nos detivemos ao longo de tantos parágrafos e pincelar as grandes questões históricas desse momento conturbado, é porque seu conhecimento será fundamental para a compreensão da vida e da atuação do santo que no corpo e na alma de Fernando Martins se revelará. Pois, atuando pela paz, além dele, a se por a tantas carnificinas, surgem vários homens e mulheres nessa mesma época que formarão entre os principais santos da religião católica, como São Domingos e São Francisco e Santa Clara de Assis.
Santo Antônio, além de passar por terras muçulmanas, também virá a pisar solo papal, assim como o do Império e o da França das heresias: sua vida e sua vocação serão fortemente moldadas e marcadas por todos esses conflitos.

O CAVALEIRO DESARMADO

Acredita-se que o pai destinasse o jovem adolescente ao ofício das armas. Para tal, dom Martinho de Bulhões providencia o treinamento que fará do filho um cavaleiro sem jaça nem par: tendo em vista desenvolver-lhe a habilidade física, ele contrata os melhores instrutores das artes marciais da tradição, equitação e esgrima – com isso, Fernando deve tornar-se apto a participar sem desaire de qualquer torneio. Os hábitos cortesãos também devem ter sido incutidos no jovem por um mestre das regras, juntamente com o código de honra de um bom cavaleiro – ninguém poderá reprochar-lhe o modo de comportar-se em sociedade. Tudo isso – esse tipo de educação marcial e cortesã – representa para a mentalidade geral, um passo a mais sobre a introdução às matérias do trívio e do quadrívio propiciada pela escola da sé de Lisboa, as práticas prevalecendo sobre as teorias.
Fernando certamente não se afaz aos exercícios extenuantes, em que se pratica o dia inteiro, até a exaustão, o lançamento do dardo na direção de um manequim vestido de mouro. O treino para a luta, vestido de cota de malha, com o capacete a cobrir-lhe a cabeça, tudo tão incômodo, não representa para o rapaz devoto necessariamente algo que equivalha às brincadeiras de infância, em que brincava de lutar com os amigos, com um pedaço de pau, ou investia contra as abóboras do quintal, semelhantes, para ele, às cabeças dos mouros com seus turbantes. O rapaz devoto virá a preferir outro tipo de rigores físicos.
Tampouco sente a mesma emoção da infância quando, com o pai, vai à casa de um vizinho, também homem-bom do rei, mais um dos amigos nobres de dom Martinho. Ele tem na sala um capacete que ainda guarda as marcas do machado mouro, os sabres, as lanças e os estandartes tomados ao inimigo – elementos decorativos que, o rapaz percebe agora, já não lhe excitam da mesma forma a imaginação.
Tornar-se cavaleiro, suceder o pai – seria esse o caminho considerado mais natural. Outra vocação, porém, quase desde a infância foi se delineando em seu íntimo. Fernando quer ser um cavaleiro de outro tipo, de outra ordem. Tornou-se um adolescente reservado e avesso à turbulência muito comum na idade; ganhou o gosto pelo estudo, pelo recolhimento, pelos livros. A religiosidade vem completar essa tendência.
É certo que sua vida não apresenta grandes dificuldades, é querido e tem tudo de que precisa materialmente, mas sente falta de algo mais significativo. A vida na cidade de Lisboa não mais o atrai. A partir dos quinze anos, começa a viver uma grande crise pessoal; próximo de fazer vinte, percebe que nada daquilo lhe agrada inteiramente, pois não se deixa convencer por valores do mundo das aparências. Almeja outras conquistas. Só que não anseia por elas à custa da luta física, da morte do adversário.
Seu coração pende para outro tipo de riqueza, é introspectivo, identificou-se mais com a busca da espiritualidade. Como a quase totalidade das pessoas religiosas, sonha em converter os fiéis de outra crença, mas o uso das armas não o seduz. Pode até morrer defendendo a religião, mas não em combate, não em batalha de força física. Fernando pretende ser um cruzado de outro tipo: o cruzado da palavra, arauto da paz e do convencimento pelo poder da persuasão.
A educação cristã que recebeu em casa desde a primeira infância e, em seguida, na escola da sé, a proximidade com os elementos místicos da vida, apesar de tão intensa quanto a instrução dos princípios bélicos, prevalece nele. Como Antônio diria mais tarde, em um de seus famosos sermões, Fernando não se sentia à vontade na busca de fortuna individual nem apreciava qualidades como o orgulho e a vaidade pessoal. E acrescentaria: onde a riqueza é abundante, esconde-se a lepra da luxúria. Se não resistimos à luxúria, morre tudo o que parece bom. A luxúria jamais diz: basta. Com ela vem a arrogância, a soberba, que é o princípio de todos os pecados. Assim ele evocaria mais tarde com pesar o que viria a considerar os maus hábitos da juventude, e aos quais havia fugido: a ambição, a luxúria e, sobretudo, o orgulho.
Sua ambição, seu ideal de beleza, portanto, como supusemos, estavam em outra parte. Págs. 40-42.


AO ABRIGO DE SANTO AGOSTINHO

Durante suas crises, suas indecisões, o jovem Fernando tinha vindo várias vezes buscar tranquilidade e reforço espiritual nesse local. Já está familiarizado àquele lugar alto, de onde se vê quase toda a cidade e o rio, quando se decide a pedir admissão ao claustro. É um bom termo para os cinco anos críticos decorridos sem saber ao certo o que fazer da vida. O gosto pela ordem e pelo estudo, o anseio de sentir-se mais próximo do sagrado, do divino: tudo isso significa afastar-se do mundo para requerer sua entrada como noviço para o mosteiro agostiniano de São Vicente de Fora. Págs. 47-48.

[...].

TEMPO DE CRUZADAS

Fernando Martins entra para São Vicente de Fora em 1209 ou 1210, com prováveis vinte ou vinte e um anos de idade. Longe do burburinho ligado a sua vida passada, cresce-lhe o desejo de santidade, começa a se formar o caráter que o definirá. Segundo a Legenda assídua, sua primeira biografia, escrita por volta de 1232, o jovem religioso que não quis ser cavaleiro foi para lá, “em cata de disciplina mais austera e de recolhimento mais frutuoso [...] Sua pretensão não era mudar de lugar, mas melhorar os costumes. [...] Sua memória era como biblioteca que sempre tinha ao dispor. Nela arranjava o que lia nas Divinas Escrituras e nas obras dos Santos Padres; e o que nela guardava no momento preciso lhe vinha à lembrança”. Como Santo Antão no deserto, foge para a solidão a fim de melhor ouvir a Deus.
Enquanto Fernando Martins se interna em São Vicente de Fora, em busca de paz e silêncio para estudar e praticar tranquilamente suas devoções, o mundo lá fora vive a ebulição do movimento geral da cristandade para retomar os territórios que lhe haviam sido arrebatados pela maré montante do islamismo durante os cinco séculos anteriores.
Esse movimento – que, deixando de apenas opor resistência ao avanço muçulmano, passa a atacar o inimigo nos lugares que antes eram cristãos, mas agora são seus domínios – deriva seu nome da cruz, tomada então como símbolo maior dos seguidores de Cristo, e será conhecido como Cruzadas.
A base teórica ou legal das Cruzadas é o Édito de Tessalonica, promulgado em 397, que definiu como oficialmente cristãs as terras que faziam parte do Império Romano. Portanto, a ideia inicial das Cruzadas, e seu fundamento legal, é recuperar terras que se considera indevidamente ocupadas por outras fés, principalmente a muçulmana – como a península Ibérica, mas em especial a região em que viveu o Senhor Jesus Cristo, a Terra Santa, na Palestina.
Ao entrar para o mosteiro Agostiniano, Fernando Martins passa a fazer parte de um grupo de pessoas que, por sua vez, compõe uma rede ainda maior de clérigos espalhados pelo continente. Esses clérigos compartilham informações durante as constantes viagens de estudo ou de peregrinação que empreendem. Vários dos cônegos de São Vicente de Fora já estiveram em Paris, Bolonha ou Roma, em jornadas que contribuem para a manutenção da unidade da doutrina religiosa. Se é verdade que muitas das futilidades do mundo exterior atravessam as paredes monásticas e dominam as preocupações de vários internos, também são muitas e acaloradas as discussões sobre o que acontece no ambiente lá fora, no terreno político-religioso.
As notícias das convulsões do mundo, como tantas outras que chegam pelos monges itinerantes, certamente se discutem acaloradamente nos mosteiros, a provocar as almas mais inflamadas. Alguns almejam a glória do martírio, relembrando os tempos dos primeiros cristãos sob o Império Romano, não têm medo de morrer em nome de Deus às mãos dos inimigos da cristandade para com seu próprio sangue irrigar e fortalecer a fé; outros, ao contrário, o que desejam é exterminar os infiéis, também para revigorar a fé com o sangue – só que, nesse caso, o dos adversários. E nessa dualidade as grandes religiões se parecem. Pág. 52-54.

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Referência

Nuno, Fernando. Antônio: O santo do amor. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.



Link para a continuação do post: Antônio: O santo do amor (PARTE 2)

15 de julho de 2019

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: SOFRER POR AMOR A DEUS E AOS IRMÃOS

b) Um grande desejo de padecer, mas sossegado e tranquilo, inteiramente subordinado à vontade adorável de Deus. Escreve Santa Teresa:

O segundo efeito é um grande desejo de padecer, mas não de modo a inquietá-la, como acontecia antes; porque é tão extremado o desejo destas almas de que se faça nelas a vontade de Deus, que acham bom tudo o que Sua Majestade faz: se quiser que ela padeça, seja muito em boa hora; se não quiser, não se mata por isso como costumava fazer antes.1


A cruz sempre constitui uma verdadeira obsessão para almas autenticamente enamoradas do divino Redentor. O heroísmo de Jesus crucificado as subjuga e elas ardem em desejos de se crucificar com Ele. Enquanto o fogo do divino amor ainda não se apodera do mais fundo do espírito, a chama faísca e lança para fora centelhas acesas (penitências extremas, loucuras de amor, etc.); mas quando o amor divino se apodera totalmente da alma, até o mais íntimo e profundo dela, a chama já não faísca; a alma se converte em brasa muito mais ardente do que antes, porém sossegada, tranquila, sem aquele alvoroço interior. Só querem que se cumpra em tudo a vontade divina, como disse Santa Teresa.
É a percepção clara e intuitiva do verdadeiro valor e hierarquia das coisas. O sofrimento sublimado pelo amor a Deus é altamente santificador, sem dúvida alguma, mas muito menos do que o cumprimento perfeito da vontade adorável de Deus; porque a vontade de Deus se identifica com a própria essência de Deus (é Deus mesmo) enquanto que sua glória é o resplendor extrínseco da essência da mesma. Se, por uma hipótese impossível e absurda, a glória de Deus pudesse empreender uma grande obra contrariando sua divina vontade, haveríamos de renunciar imediatamente a lhe glorificar da forma anterior, para não nos afastarmos um milímetro sequer de sua divina vontade: Santa Teresa suspendeu imediatamente seus trabalhos para a reforma do Carmelo, até obter o beneplácito de seus próprios superiores, como havia lhe ordenado o Senhor: “Obedece-lhes: já lhes mudarei Eu o coração para que te mandem o que Eu quero”.
c) Gozo na perseguição. Tolerar a perseguição em silêncio por amor a Deus já é uma obra de grandíssima virtude. Mas se comprazer nela, considerar-se feliz nela, bendizer a Deus e amar com predileção aos que nos perseguem e caluniam (Mt 5,43-48) é o cúmulo do heroísmo e da santidade. A estas sublimes alturas remontaram as almas transformadas. Santa Teresa esfregava as mãos de que alguém a caluniava. Era conhecido de todos um procedimento infalível para conquistar sua simpatia e predileção: insultá-la ou humilhá-la de alguma maneira. Eis aqui como descreve o que heroicamente praticava. 

Têm também estas almas um grande gozo interior quando são perseguidas, com muito mais paz do que ficou dito anteriormente, e sem nenhuma inimizade para com aqueles que lhes fazem mal ou desejam fazer, do contrário, passam a ter por eles um amor particular, de tal maneira que, se os vêem em algum sofrimento, sentem-no ternamente e tomariam qualquer sacrifício sobre si para os livrar dele, e sempre encomendam-nos a Deus com muita devoção, e gostariam mesmo de se privar de algumas das graças que Sua Majestade lhes concede para que Ele a concedesse a eles, para que não ofendessem a Nosso Senhor.2

Essas últimas palavras nos dão a chave para entender esse sublime heroísmo. Definitivamente, é o amor a Deus que aqui prevalece, como em tudo o mais que essas almas fazem. As perseguições e calúnias não lhes afetam pessoalmente em nada, antes se regozijam e se recreiam nelas. O único que sentem é quando seus inimigos ofendam a Deus com as perseguições; e para evitar essa ofensa divina, com gosto lhes concederiam algumas mercês que Deus as faz, mesmo em troca de ficar sem elas. É o amor a Deus e ao próximo levado até o último extremo de acabamento e perfeição.
d) Zelo ardente pela salvação das almas. Já não desejam morrer para gozar a Deus (“morro porque não morro”) senão, ao contrário, viver muitos anos, “até o fim do mundo” (Vida 37,2), para empregarem-se no serviço de Deus na salvação das almas. Escutemo-la: 

O que mais me espante de tudo isso é que já deveis ter visto os sofrimentos e aflições que estas almas tiveram de querer morrer, ansiosas para desfrutarem de Nosso Senhor; agora é tão grande seu desejo de servi-lo e louvá-lo que não só não querem mais morrer como desejam viver muitos anos padecendo enormes sofrimentos – se tivessem esperança de o Senhor ser louvado por meio deles, ainda que fosse em mínimas coisas. E se soubessem com certeza que, quando a alma sai do corpo, há de se deleitar com Deus, não se preocupariam com isso, nem pensam na glória dos santos ou desejam por enquanto verem-se nela. Toda a glória que cobiçam é a de ajudar em algo ao Crucificado, especialmente quando O vêem ser tão ofendido, e que são poucos aqueles verdadeiramente preocupados em zelar pela honra de Deus, desapegados de todo o resto.3 

Tais são os sublimes sentimentos de todos os santos. Santo Inácio de Loyola chegou a dizer que preferiria ficar neste mundo servindo a Deus e ajudando as almas com perigo de se condenar, do que ir imediatamente ao Céu com prejuízo dessas almas. E antes dele, já São Paulo havia expressado o desejo de ser, se fosse preciso, “anátema de Cristo pela saúde de seus irmãos” (Rm 9,3). É uma vez mais, o esquecimento total de si mesmo e o amor de Deus levado até a loucura. 
e) Desprendimento de toda a criação, ânsias de solidão, ausência de sequidades espirituais. Compreende-se perfeitamente que uma alma que goze quase habitualmente dos inefáveis deleites que se seguem à união transformativa com Deus estime como lixo todas as coisas deste mundo, como disse repetidas vezes Santa Teresa e também São Paulo (Fl 3,8), e goste de estar a sós com Deus em doce e entranhável conversação. Ouçamo-la:

Há um desapego grande tudo, e um grande desejo de estar sempre a sós ou ocupados em coisa que seja de proveito para alguma alma. Não há aridez, nem sofrimentos interiores, mas sim uma contínua lembrança e ternura com Nosso Senhor, a ponto de desejar estar sempre dando-lhe louvores; e quando nisto se descuida, o mesmo Senhor a desperta, da maneira que foi dito, vendo-se claramente que aquele impulso, ou não sei como lhe chame, procede do interior da alma, como se disse a respeito dos ímpetos (...) me parecem bem empregados todos os sacrifícios que se passam para gozar destes toques de Seu amor, tão suaves de penetrantes.4

Págs. 360-366. 

[...].

______________
1 Moradas Séptimas, C.3,4.
2 Ibid., C.3,5.
3 Ibid., C.3,6.
4 Ibid., C.3,8-9.

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: A ORAÇÃO EM SI MESMA (ÚLTIMA PARTE)

5. EFICÁCIA INFALÍVEL DA ORAÇÃO 

Antes, vamos estabelecer com todo rigor uma tese teológica, a qual demonstraremos plenamente, como se faz nas escolas de teologia: 
TESE: “A oração, revestida das devidas condições, obtém infalivelmente o que pede, em virtude das promessas de Deus”.
Muitos teólogos consideraram essa tese como de fé, pela claridade com que se nos manifesta na Sagrada Escritura a promessa divina. Eis aqui alguns dos textos mais significativos: 


“Pedi e vos será dado! Procurai e encontrarei! Batei e a porta vos será aberta! Pois todo aquele que pede recebe, quem procura encontra, e a quem bate, a porta será aberta” (Mt 7,7-8).
“Tudo o que, na oração, pedirdes com fé, vós o recebereis” (Mt 21,22).
“E o que pedirdes em meu nome, eu o farei, a fim de que o Pai seja glorificado no Filho. Se pedirdes algo em meu nome, eu o farei” (Jo 14,13-12).
“Se permanecerdes em mim, e minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e vos será dado” (Jo 15,7).
“Em verdade, em verdade, vos digo: se pedirdes ao Pai alguma coisa em meu nome, ele vos dará. Até agora, não pedistes nada em meu nome. Pedi e recebereis, para que vossa alegria seja completa. Jesus venceu o mundo” (Jo 16,23-24).
“E esta é a confiança que temos em Deus: se lhe pedimos alguma coisa de acordo com a sua vontade, ele nos ouve. E se sabemos que ele nos ouve em tudo o que lhe pedimos, sabemos que possuímos o que havíamos pedido” (1Jo 5, 14-15).


É impossível falar com maior clareza e insistência mais premente. A promessa divina consta com toda certeza na divina revelação.
Ora, quais são as condições requeridas para que a oração alcance infalivelmente seu objeto, cumprindo-se de fato as divinas promessas?
Santo Tomás assinala quatro, e a elas podem se reduzir todas as demais assinaladas por outros autores. Aqui estão suas palavras:
“Logo, sempre obteremos o que pedimos, contanto que se estabeleçam estas quatro condições: pedir para si mesmo coisas necessárias à salvação, piedosamente e com perseverança”.
4 

[...].

6. A ORAÇÃO DOMINICAL: O PAI NOSSO 

Santo Tomás pergunta em um artigo da Suma Teológica “se são convenientes assinaladas as sete petições da oração dominical, o Pai-nosso” (83,9). Cremos que a maravilhosa doutrina exposta por Santo Tomás ao responder afirmativamente, faz desse artigo um dos mais sublimes e profundos de sua obra imortal, verdadeira fortaleza da Teologia Católica. 
Começa Santo Tomás dizendo que a oração dominical é perfeita, pois contém tudo o que devemos pedir e na ordem que se deve pedir. Aqui estão suas palavras:

A oração Dominical é perfeitíssima, porque como diz Agostinho, se oramos reta e convenientemente, não podemos pedir senão o que está formulado na Oração Dominical. Pois, sendo a oração, de certo modo, o intérprete do nosso desejo junto a Deus quando oramos, só podemos pedir com retidão o que com retidão podemos desejar. Ora, na Oração Dominical, não só pedimos todas as coisas que podemos retamente desejar, mas, ainda, na ordem em que são desejáveis. De modo que essa Oração não só nos ensina a pedir, mas também manifesta todo o nosso afeto.
Ora, é claro que o objeto primário do nosso desejo é o fim e o secundário os meios. Mas o nosso fim é Deus, para o qual o nosso afeto tende duplamente: por lhe querermos a glória, e por querermos gozá-la. E desses dois modos, o primeiro pertence ao amor com que amamos a Deus em si mesmo; o segundo, ao com que nos amamos, em Deus. Por isso, a primeira petição é assim formulada: Seja santificado o teu nome, pela qual pedimos a glória de Deus. A segunda assim: Venha a nós o teu reino, pela qual pedimos que alcancemos a glória do seu reino, isto é, alcançar a vida eterna.

Como se vê, as duas primeiras petições do Pai-nosso não podem ser mais sublimes. Na primeira pedimos a glória de Deus, ou seja, que todas as criaturas reconheçam e glorifiquem (isso significa aqui santificar) o nome de Deus. Tal é, precisamente, o fim último da criação; a glória de Deus, ou mais exatamente e teologicamente, Deus mesmo glorificado pelas criaturas. Essa glória de Deus constituía a obsessão de todos os santos. No topo da montanha da santidade se lê sempre indefectivelmente o rótulo colocado por São João da Cruz no alto de seu Monte Carmelo: “Só mora neste monte a honra e a glória de Deus”. O eu humano, terreno e egoísta morreu definitivamente.
Porém, Deus quis encontrar sua própria glória em nossa própria felicidade. Não nos proíbe, mas nos manda desejar nossa própria felicidade em Deus. Mas essa felicidade deve estar unicamente em segundo lugar, em perfeita subordinação à glória de Deus, na medida e grau de seu beneplácito divino: Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6,33). Ao pedir a Deus o advento de seu reino sobre nós, lhe pedimos na realidade a graça e a glória para nós, ou seja, a maior e mais sublime que podemos pedir depois da glória de Deus.

Depois do fim principal e secundário, deve-se desejar, logicamente, os meios para alcançá-lo. Escutemos a Santo Tomás:

Ora, ao fim supra referido um meio pode nos conduzir duplamente: por si mesmo e por acidente.
5 Por si, quando é um bem útil para o fim. Mas, um meio pode ser útil para o fim de dois modos. – De um modo, direta e principalmente, conforme o mérito com que merecemos a felicidade, obedecendo a Deus. E por isso é que a Oração diz: Faça-se a tua vontade assim na terra como no céu. – De outro modo, instrumentalmente e como nos ajudando a merecer. E é isto o que visa a petição. O pão nosso de cada dia dá-nos hoje. Quer o entendamos do pão sacramental, cujo uso quotidiano nos alimenta, e no qual se compreendem os outros sacramentos; quer do pão corporal, entendendo-se por pão todo o necessário à nossa subsistência, como diz Agostinho. Pois a Eucaristia é o sacramento principal como o pão é o alimento principal.

Como se vê, depois de ter pedido nas duas primeiras petições o relativo ao fim principal e ao secundário, se começa imediatamente a pedir o relativo aos meios. Também aqui se procede ordenadamente pedindo em primeiro lugar que cumpramos a vontade de Deus de maneira tão perfeita, se possível, como se cumpre no Céu. É porque o cumprimento da vontade de Deus é o único meio direto e imediato de glorificar a Deus e de santificar nossa alma. Ninguém se santificará nem poderá glorificar a Deus, a não ser cumprindo exata e rigorosamente sua divina e adorável vontade. Se Deus nos pede obscuridade e silêncio, enfermidade e impotência, vida escondida e desconhecida, é inútil que tratemos de lhe glorificar ou de nos santificar sonhando com grandes empresas apostólicas ou obras brilhantes à serviço de Deus; andaremos completamente fora do caminho. Nada glorifica a Deus nem santifica a alma senão o perfeito cumprimento de sua divina vontade.
Porém, ao lado desse meio fundamental e imediato, necessitamos também da ajuda dos meios secundários, simbolizados na palavra pão, que é alimento por excelência. Pedimos o pão, ou seja, o indispensável para a vida (nada de riquezas e honras, que são bem fugazes e aparentes, que tanto se prestam a nos desviar dos caminhos de Deus); e unicamente para hoje, “com o fim de ficar obrigados a pedi-lo amanhã e corrigir nossa cobiça” – como disse admiravelmente o catecismo – e para que descansemos confiantes e tranquilos nos braços da providência amorosa de Deus, que alimenta aos pássaros do céu e veste as flores do campo com soberana beleza (Mt 6,25-34).

Sigamos com a exposição de Santo Tomás:

Acidentalmente nós nos ordenamos à felicidade, pela remoção dos obstáculos. Ora, há três obstáculos que nô-la impedem. – O primeiro é o pecado, que diretamente nos exclui do reino, conforme o Apóstolo: Nem os fornicários, nem os idólatras., hão de possuir o reino de Deus. E a isto se referem as expressões: Perdoai-nos as nossas ofensas.
O segundo é a tentação, que nos impede obedecer a vontade divina. E a isto se referem as expressões: E não nos Deixeis cair em tentação, com que não pedimos para não sermos tentados, mas para não sermos vencidos pelas tentações, que é o sentido da expressão referida. O terceiro são as penas desta vida, que lhe tiram a plenitude. E a isso se referem as expressões; Livrai-nos do mal.

Através dessa magnífica exposição de Santo Tomás – que ainda completa com as soluções às objeções –, se adverte claramente que é impossível pedir a Deus mais coisas, nem melhores, nem mais ordenadamente, nem com menos palavras, nem com maior simplicidade e confiança do que na sublime oração do Pai-nosso. Por isso os santos, iluminados por Deus mediante os dons do Espírito Santo, encontram um verdadeiro “maná escondido” na oração dominical. Vivem dela anos inteiros, e ainda toda a vida, alimentando sua oração com suas divinas petições. Santa Teresinha do Menino Jesus chegou a não encontrar gosto senão no Pai-nosso e na Ave-Maria.
6 Santa Teresa o comenta magistralmente em seu Camino de Perfección.7 E muitas almas simples e humildes encontram nele pasto abundante para sua oração,8 e até para remontar aos mais altos cumes da contemplação e da união mística com Deus. Escreve Santa Teresa (Camino 37,1): “Espanta-me ver que em tão poucas palavras está toda a contemplação e perfeição encerrada. Parece não ser mister outro livro: basta estudar o Pai-nosso”. Págs. 291-294; 296-302; 306-312.

[...].

___________
4 II-II, 83,15 ad 2.
5 Santo Tomás emprega a formula escolástica per se y per accidens, que pode ser traduzida em nosso caso por direta ou diretamente.
6 Em suas próprias palavras: “Algumas vezes, quando meu espírito se encontra em grande aridez, de modo que não me ocorre nem um pensamento bom, rezo muito devagar um Pai-nosso e uma Ave-Maria. Estas orações são as únicas que me elevam, as que nutrem minha alma ao divino, elas me bastam”. (História de uma alma c.10, n.19).
7 SANTA TERESA, CAMINO DE PERFECCIÓN, CAPÍTULOS 27 ATÉ 47 (FINAL DO LIVRO).
8 Recordem o caso daquela vaqueira que, guardando suas vacas, passava longas horas de oração “pensando que Aquele que está no alto do Céu é meu Pai”. E chorava de emoção ao pensa-lo.

11 de julho de 2019

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: A ORAÇÃO EM SI MESMA

 A ORAÇÃO EM SI MESMA; TEOLOGIA
1. NATUREZA
A palavra oração pode ser empregada em diversos sentidos. Seu significado varia totalmente de acordo com sua acepção gramatical, lógica, retórica, jurídica ou teológica. Mesmo em sua acepção teológica, única que nos interessa aqui, foi definida de diversos modos, embora todos coincidam fundamentalmente. Eis algumas definições:

São Gregório de Nazianzo: “A oração é uma conversação ou colóquio com Deus”.

São João Crisóstomo: “A oração é falar com Deus”.

Santo Agostinho: “A oração é a conversão da mente a Deus. Com piedoso e humilde afeto”.

São João Damasceno: “A oração é a elevação da mente a Deus”. Ou também: “a petição da Deus de coisas convenientes”.

São Boaventura: “Oração é o piedoso afeto da mente dirigida a Deus”.

Santa Teresa: “É conviver em amizade, estando muitas vezes a sós com quem sabemos que nos ama”.


Como se vê, todas essas fórmulas – e outras muitas que não foram citadas – coincidem em seus fundamentos. Santo Tomás compilou as duas definições de São João Damasceno, e com elas propôs uma fórmula excelente, que recorre aos principais aspectos da oração. Soa assim: “A oração é a elevação da mente a Deus para louvar e pedir-lhe coisas convenientes à eterna salvação”. Vamos expô-la com mais detalhes, seguindo o Doutor Angélico.
1 É a elevação da mente a Deus: A oração é em si um ato da razão prática (83,1), não da vontade, como creram alguns escotistas. Toda a oração supõe uma elevação da mente a Deus, o que nos adverte que quem ora estando completamente distraído, em realidade não faz oração “mesmo que meneie muito os lábios” (Santa Teresa).

E dizemos “A Deus” porque a oração, como um ato de religião (83,3) se dirige propriamente a Deus, já que só dele podemos receber a graça e a glória, para as quais devem se ordenar todas as nossas orações (83,4); mas não há inconveniente em fazer intervir os anjos, santos e justos da Terra para que, com seus méritos e interseção, sejam mais eficazes nossas orações (ibid.).

a) Para louvar... é uma das finalidades mais nobres e mais próprias da oração.
Seria um erro pensar que a oração serve apenas como um puro meio para pedir coisas a Deus. A adoração, o louvor, a reparação dos pecados e a ação de graças pelos benefícios recebidos encaixam admiravelmente na oração (83,17).
b) Pedir-lhe... É a nota mais típica da oração estritamente dita. O próprio de quem ora é pedir. Quem ora se sente débil e indigente, e por isso recorre a Deus para que se apiede dele. É a oração de súplica ou de petição.
c) Coisas convenientes à salvação eterna. Não nos é proibido pedir coisas temporais (83,6); mas não principalmente, nem as colocando como fim último da oração, senão unicamente como instrumentos para melhor servir a Deus e tender para a nossa felicidade eterna. Em si, as petições próprias da oração são as que se referem à vida sobrenatural, as únicas que terão uma repercussão eterna. O temporal vale pouco, passa rápido e é fugaz como um relâmpago. Se pode pedir unicamente como acréscimo, com inteira subordinação aos interesses da glória de Deus e salvação das almas: “Buscai primeiro o reino de Deus e sua justiça, e tudo mais vos será dado por acréscimo” (Mt 6,33). 

[...]. 

3. O QUE SE PODE OBTER POR VIA DE ORAÇÃO 


Segundo estas noções, podemos obter por via da oração o acréscimo das virtudes infusas e dos dons do Espírito Santo que as acompanham, o que se traduzirá em um aumento ou desenvolvimento de nossa vida cristã; e também as graças atuais eficazes; sobretudo, a graça soberana da perseverança final, que ninguém absolutamente pode merecer – nem sequer os maiores santos –, por ser total e absolutamente gratuita. Só a oração pode alcançar essas graças que escapam em absoluto ao mérito propriamente dito.
A igreja nos dá o exemplo desta classe de petições quando em sua liturgia pede continuamente a graça da perseverança final ou o aumento das virtudes infusas: “Deus todo poderoso e eterno, aumenta nossa fé, esperança e caridade...”.
2  Escutemos a Santo Tomás expondo esta doutrina com sua clareza habitual:3 

Mesmo o que não merecemos, impetramos nas nossas orações; pois Deus ouve os pecadores que pedem dos pecados o perdão que não merecem, como claramente o diz Agostinho, comentando aquilo da Escritura: - Sabemos que Deus não ouve a pecadores (Jo 9,31). Pois, do contrário, o publicano teria dito em vão: Meu Deus, sê propício a mim pecador (Lc 18,13). E semelhantemente, pedindo, obteremos de Deus o dom da perseverança final, para nós mesmos ou para outrem, embora não o possam merecer. 

[...]. 

4. EFICÁCIA SANTIFICADORA DA ORAÇÃO 

Os santos padres e os grandes mestres da vida espiritual estão unânimes em ponderar a eficácia santificadora verdadeiramente extraordinária da oração bem feita. Sem oração – sem muita oração – é impossível chegar à santidade. 
São inumeráveis os testemunhos que se poderiam alegar sobre esta questão. Só por via de exemplo vamos citar o conhecido e bel texto de São Boaventura: 

Se queres sofrer com paciência as adversidades e misérias desta vida, sê homem de oração. Se queres alcançar virtude e fortaleza para vencer as tentações do inimigo, sê homem de oração. Se queres conhecer as astúcias de Satanás e defender-te de enganos, sê homem de oração. Se queres viver alegremente e caminhar com suavidade pelo caminho da penitência e do trabalho, sê homem de oração. Se queres afastar tua alma dos vãos pensamentos e cuidados, sê homem de oração. Se queres sustentar com a grandeza da devoção e trazê-la sempre cheia de bons pensamentos e desejos, sê homem de oração. Se queres fortalecer teu coração no caminho de Deus, sê homem de oração. Finalmente, se queres desarraigar de tua alma todos os vícios e plantar em seu todas as virtudes, sê homem de oração: porque nela se recebe a unção e graça do Espírito Santo, a qual mostra todas as coisas. E, ademais, se queres subir à altura da contemplação e gozar dos doces abraços do esposo, exercita-te na oração, porque este é o caminho por onde sobe a alma à contemplação e gosto pelas coisas celestiais.

[...].


Link para a continuação do post: TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: A ORAÇÃO EM SI MESMA (ÚLTIMA PARTE)

___________
1 Suma Teológica, II-II, 83, 1a et ad 2.
2 Missal Romano, Oração coleta do 300 domingo do Tempo Comum.
3 I-II, 114,9 ad 1.





5 de julho de 2019

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: AS VIRTUDES DERIVADAS OU ANEXAS (ÚLTIMA PARTE)

A HUMILDADE 

1. NATUREZA 
A humildade é “uma virtude derivada da temperança, que nos inclina a coibir ou moderar o desordenado apetite da própria excelência, dando-nos o justo conhecimento de nossa pequenez e miséria principalmente com relação a Deus”. Expliquemos um pouco a definição: 

Uma virtude, porque nos inclina a algo bom e excelente.
Derivada da temperança, através da modéstia, da qual é uma subdivisão.
Que nos inclina a coibir ou moderar, como todas as virtudes derivadas da temperança.
O desordenado apetite da própria excelência. Esta é, precisamente, a definição da soberba, o vício radicalmente oposto à humildade.
Dando-nos o justo conhecimento de nossa pequenez e miséria. Note que se trata do justo conhecimento, ou seja, da autentica realidade das coisas. Por isso dizia Santa Tereza: “a humildade é andar na verdade; e é uma grande verdade que de nós nunca vêm boas coisas, a não ser a miséria e insignificância; e quem não compreende isso anda na mentira”.
5 
Principalmente com relação a Deus. Esta é a verdadeira raiz da humildade e seu verdadeiro enfoque. Se estabelecemos a comparação com os demais homens, não há homem tão mau que não se possa imaginar outro pior; mas, se compararmos nosso ser e boas qualidades com a excelsa grandeza de Deus, não há santo tão elevado – até mesmo a Virgem Maria, Mãe de Deus – que não tenha de se afundar em uma abismo de humildade, como fez a Virgem ante o anuncio do anjo: “Eis aqui a serva do Senhor” (Lc 1,38) e ante sua prima Santa Isabel: “porque ele olhou para a humildade de sua serva” (Lc 1,48). Ante Deus ninguém é nem representa nada.
Por isso os verdadeiros humildes podem, sem faltar com a verdade, colocar-se aos pés de todos. Porque, como a humildade se refere propriamente e em todos os casos à reverência que o homem deve a Deus, qualquer homem pode submeter o mal que tem de si próprio – pecados, misérias, imperfeições – ao bem que Deus quis colocar num próximo qualquer – todas suas boas qualidades –; nesse sentido, pode-se considerar como mais indigno que ele. Em última instância, sempre podemos pensar que se o maior pecador do mundo tivesse recebido o cúmulo das graças e bênçãos recebidos por nós, haveria correspondido à graça mil vezes melhor do que nós. Logo, sempre e em todas as partes, qualquer homem tem motivos de sobra para se humilhar ante qualquer outro, sem deixar de “caminhar na verdade”, que é própria e característica da humildade.
A humildade, por conseguinte, se funda em duas coisas principais: na verdade e na justiça. A verdade nos dá o conhecimento cabal de nós mesmos: não possuímos nada de bom, a não ser aquilo que recebemos de Deus: “Pois quem é que te faz diferente? Que tens que não tenhas recebido? Mas, se recebestes tudo que tens, por que, então, te glorias, como se não tivesses recebido?” (1 Cor 4,7). E a justiça exige de nós dar a Deus toda honra e glória que pertencem exclusivamente a ele (1 Tm 1,7). A verdade nos autoriza ver e admirar os bens naturais e sobrenaturais que Deus quis depositar em nós; mas a justiça nos obriga a glorificar não a beleza de uma paisagem contemplada em uma pintura, e sim o Artista divino que a pintou. 

2. EXCELÊNCIA DA HUMILDADE 

A humildade não é a maior das virtudes. Acima dela estão as virtudes teologais, a prudência e a justiça (principalmente a legal). Mas, em certo sentido, a humildade é, com a fé, uma das duas virtudes fundamentais de todo o edifício sobrenatural. A fé é o fundamento positivo, algo como o esqueleto de ferro que sustenta todo o edifício que, sem ela, desmoronaria por completo. A humildade é o fundamento negativo, como o cimento do edifício, sem o qual também ruiria necessariamente. A fé estabelece o primeiro contato com Deus (fundamento positivo de todos os demais), e a humildade atua removendo os obstáculos (ut removens prohibens) para receber a influência da graça, sem a qual seria impossível, já que a Sagrada Escritura explicitamente nos diz: “Deus resiste aos soberbos, mas concede sua graça aos humildes” (Tg 4,6). Neste sentido, consequentemente, a fé e a humildade são as duas virtudes fundamentais que constituem todo o edifício sobrenatural: a fé como fundamento positivo e a humildade como fundamento negativo.6 

[...] 

4. A PRÁTICA DA HUMILDADE 

O reconhecimento teórico de nosso nada diante de Deus é algo simples e fácil. Em função de nossos inumeráveis pecados, não temos direito algum de presumir de nós mesmos em nosso interior, ou diante de nossos semelhantes. No entanto, o reconhecimento prático dessas verdades e as derivações lógicas que delas se desprendem em relação à nossa conduta ante Deus, ante nós mesmos e ante o próximo, é uma das coisas mais árduas e difíceis propostas pela vida cristã. E é justamente neste ponto que naufragam o maior número de almas. Com frequência se dá o fato curioso de uma alma recém decidida a ser “humilde de coração” ou “aceitar com agrado qualquer tipo de humilhação”, logo em seguida clamar aos céus quando alguém comete a imprudência de lhe ocasionar uma pequena moléstia ou uma involuntária e insignificante humilhação.
Três são, nos parece, os principais meios para se chegar à verdadeira e autêntica humildade de coração: 

Pedi-la incessantemente a Deus 

“Todo dom precioso e todo dádiva perfeita vêm descendo do Pai das luzes”, diz o apóstolo São Tiago (1,17). A humildade perfeita é um grande dom de Deus, que apenas ele pode conceder aos que pedem com profunda e incessante oração. É uma das petições que deveria brotar com maior frequência de nossos lábios e de nosso coração. 

Pôr os olhos em Jesus Cristo, modelo incomparável de humildade. 

Os exemplos sublimes de humildade deixados pelo divino Mestre são eficazes para nos impulsionar a praticar essa grande virtude, apesar de todas as resistências de nosso amor próprio desordenado. O próprio Cristo nos convidou a pôr os olhos n’Ele, quando nos disse com tanta suavidade e doçura: “sede discípulos meus, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29). Págs. 274 - 278; 279 - 280.

[...].


_____________ 

5 SANTA TERESA, MORADAS SEXTAS 10,7.
6 Cf. Santo Tomás, II-II, 161, 5C e ad 2.

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: AS VIRTUDES DERIVADAS OU ANEXAS (PARTE 3)

A VIRTUDE DA PIEDADE 

1. NOÇÃO 
Como virtude especial derivada da justiça, pode ser definida como: “Um hábito sobrenatural que nos inclina a tributar aos pais, à pátria e a todos os que se relacionam com eles a honra e os serviços devidos” (101,3).
[...] 

3. SUJEITOS 
Como acabamos de dizer, os sujeitos sobre os quais recaem a virtude da piedade são três:
a) Os pais, aos quais se refere principalmente, porque eles são, depois de Deus, os princípios de nosso ser, educação e governo.
b) A pátria, porque também ela é, em certo sentido, princípio de nosso ser, educação e governo, enquanto que proporciona aos pais – e por meio deles a nós – muitas coisas necessárias ou convenientes para isso.
c) Os consanguíneos, porque, mesmo que não sejam princípio de nosso ser e governo, neles estão representados, de algum modo, nossos próprios pais, já que todos procedemos de um mesmo tronco comum e “possuímos o mesmo sangue”, como disse Judá aos demais filhos de Jacó que queriam matar a seu irmão José por inveja (Gn 37,27).
Por extensão podem se considerar como parentes aqueles que formam como uma mesma família espiritual (p. ex. os mesmos de uma ordem religiosa, que chamam “pai” comum ao fundador da mesma).

III. A FORTALEZA E SUAS DERIVADAS 

Diferente das outras três virtudes cardeais, a fortaleza não tem partes subjetivas, senão unicamente partes integrais e potenciais ou derivadas, pela razão que vamos indicar. 
a) Partes subjetivas ou especiais
A fortaleza não tem partes subjetivas ou de diversas espécies, por se tratar de uma matéria muito especial e determinada, como são os perigos de morte. Mas, dentro dessa unidade específica subjetiva, destaca um certo ato principal que é o martírio, do qual diremos algumas palavras.

1. MARTÍRIO 

Pode ser definido como: “o ato principal da vida da fortaleza pelo qual se sofre voluntariamente a morte em testemunho da fé ou de qualquer outra virtude cristã relacionada com a fé”.
Segundo essa noção, o martírio se relaciona com quatro grandes virtudes cristãs:
a) Com a fortaleza, que é a virtude da qual brota diretamente (virtude elicitiva). Constitui seu ato principal, já que leva a uma máxima tensão a resistência contra o mal. Não há maior resistência contra o mal: antes entregar a vida do que trair a fé ou apartar-se do caminho da virtude.
b) Com a fé, que é a virtude final pela qual se sofre o martírio, mesmo se tratando de outra virtude cristã (p. ex. em defesa da castidade). Se não se relaciona com a fé não haveria verdadeiro martírio (p. ex. uma mulher que se deixa matar somente para conservar a honra, desde o ponto de vista puramente humano). Por isso se diz com razão que o mártir é uma testemunha da fé cristã, ao dar sua vida por ela.
c) Com a caridade, que é uma virtude imperante, ou seja, a virtude motora que impulsiona a sofrer o martírio por amor de Deus ou de Cristo. Sem ela, o martírio careceria de valor meritório, como diz expressamente São Paulo (1Cor 13,3). E como a virtude imperante influi no ato realizado com maior profundidade do que a própria virtude elicitiva, segue-se que o martírio é o maior ato externo de caridade que pode se fazer nesta vida: “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13).
d) Com a paciência, que brilha em grau heroico nos mártires, suportando, sobretudo, as longas privações e tormentos que costumam preceder ao próprio ato do martírio.

[...].

VI. A TEMPERANÇA E SUAS DERIVADAS 

A temperança, como virtude cardeal, tem partes integrais, subjetivas e potenciais (ou derivadas). Vamos nos limitar a um simples enunciado com clareza suficiente para nos dar uma ideia exata de cada uma delas.
a) Partes integrantes
São, como sabemos, aqueles elementos que integram uma virtude ou a ajudam em seu exercício. A temperança tem dois:
1º Vergonha. Não é propriamente uma virtude senão uma “certa paixão louvável que nos faz temer o opróbrio e confusão que se segue de um pecado torpe, impulsionando-nos a evita-lo”. Seu pecado oposto é, naturalmente, a desvergonha.
2º Honestidade. Como parte integral da temperança, a honestidade “é o amor ao decoro que provém da prática da virtude”. Coincide propriamente com o honesto e o espiritualmente decoroso. É uma certa limpidez ou pulcritude espiritual que se opõe frontalmente ao torpe, e por isso pertence à temperança. 
b) Partes subjetivas ou espécies
São as diversas espécies nas quais se subdivide uma virtude cardeal. Como a temperança tem por principal missão moderar a inclinação aos prazeres procedentes do gosto e do tato, suas partes subjetivas se distribuem em dois grupos?

i) Sobre o gosto ou a nutrição:
Na comida: abstinência
Na bebida: sobriedade

ii) Sobre o tato ou a geração Temporalmente: castidade
Perpetuamente: virgindade

c) Partes potenciais ou derivadas São as virtudes anexas ou derivadas, que se relacionam em alguns aspectos com sua virtude cardeal, embora não tenham toda sua força ou se ordenem somente a atos secundários. As correspondentes à temperança são as seguintes:
i) Contra as tentações desordenadas muito veementes: continência (refreando as paixões fortes). Moderando a ira segundo a reta razão: mansidão.
ii) Moderando o rigor do castigo: clemência. Moderando os movimentos internos e externos dentro de seus justos limites, segundo seu estado ou condição: modéstia, subdividida em outras cinco:

1. Na estima de si mesmo: humildade.

2. No desejo da ciência: estudiosidade.

3. Nos movimentos do corpo: modéstia corporal.

4. Nos jogos e diversões: eutrapelia.

5. Nos vestidos e adornos: modéstia no ornamento.


Tal é o maravilhoso cotejo das virtudes correspondentes às diversas partes da virtude cardeal da temperança. Ante a impossibilidade material de examiná-las todas dentro dos limites de nossa obra, é preciso fazer uma exceção com a mais importante de todas: a humildade, que é uma das duas grandes virtudes fundamentais que sustentam e levantam todo o edifício sobrenatural, como veremos na continuação. Págs. 265 - 269; 272 - 274.


Link para a continuação do post: TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: AS VIRTUDES DERIVADAS OU ANEXAS (ÚLTIMA PARTE)


26 de junho de 2019

TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: AS VIRTUDES DERIVADAS OU ANEXAS (PARTE 2)

II. JUSTIÇA E SUAS DERIVADAS 

Como nas demais virtudes cardeais, deve-se distinguir na justiça suas partes integrais, subjetivas e potenciais. Vamos examiná-las cuidadosamente.

a) Partes integrais2 
Em toda justiça, seja geral, seja particular, para que alguém seja chamado de justo em toda a extensão da palavra, são requeridas duas coisas:
1. Apartar-se do mal (não qualquer, mas o nocivo ao próximo à sociedade).
2. Fazer o bem (não um bem qualquer, mas o devido ao próximo).

Estas são, pois, as partes integrais da justiça, sem as quais – ou sem alguma delas – ficaria deficiente e imperfeita. Não basta não prejudicar o próximo (apartar-se do mal); é preciso dar-lhe positivamente o que lhe pertence (fazer o bem).
Como adverte Santo Tomás, o apartar-se do mal não significa aqui uma pura negação (simples abstração do mal), que não supõe nenhum mérito mesmo evitando a pena que nos acarretaria a transgressão, e sim um movimento da vontade rechaçando positivamente o mal (p. ex. ao sentir a tentação de fazê-lo), e isso é virtuoso e meritório (70,1 ad 2).
Notem também que o pecado de transgressão (fazer o mal) é mais grave em si mesmo do que o pecado da omissão (não fazer o bem). Sendo assim, peca mais o filho que injuria a seus pais do que aquele que se limita a lhes dar a honra devida sem injuriá-los. Contudo, o pecado de omissão pode ser mais grave do que o de transgressão; p. ex. é mais grave omitir culpavelmente a missa de domingo do que contar uma mentira jocosa (79,4).

b) Partes subjetivas ou espécies
3 
São três as espécies ou partes subjetivas da justiça: legal (ou geral) e particular, subdividida em outras duas: comutativa e distributiva.
1. A justiça legal é a virtude que inclina os membros do corpo social a dar para a sociedade tudo aquilo que lhe é devido em favor do bem comum. Chama-se legal porque é fundada na exata observância das leis que, quando são justas – unicamente então são verdadeiras leis – obriga seu cumprimento em consciência. Mais ainda: como o bem comum prevalece – em um mesmo gênero de bens – sobre o bem particular, os cidadãos estão por vezes obrigados, por justiça legal, a sacrificar uma parte de seus bens e até mesmo colocar em risco sua vida em defesa do bem comum (p. ex. em uma guerra justa). A justiça legal reside principal e arquitetonicamente no príncipe governante, e secundária e ministerialmente nos súditos (58,6).
2. A justiça distributiva é a virtude que impõe a quem distribui os bens comuns a obrigação de fazê-lo proporcionalmente à dignidade, méritos e necessidades de cada um. A ela se opõe o feio pecado da acepção de pessoas (63), que distribui os bens sociais e as cargas por capricho, favoritismo ou perseguição puramente pessoal, sem jamais ter em conta os verdadeiros méritos particulares nem as regras da caridade. Neste sentido, as chamadas recomendações, em virtude das quais se outorga um benefício ao que menos o merece (somente para comprazer quem o recomendou), constituem um verdadeiro atropelo da justiça distributiva.
3. A justiça comutativa – que realiza em toda sua plenitude e perfeição o conceito de justiça – regula os direitos e deveres dos cidadãos entre si. Sua definição coincide quase totalmente com a de justiça como virtude cardeal: é a constante e perpétua vontade de uma pessoa privada de dar a outra também privada o que lhe pertence em direito estrito e em perfeita igualdade. E assim, p. ex., quem recebeu mil reais deve devolver outros mil, nem mais nem menos. Sua transgressão envolve sempre obrigação de restituir.

c) Partes potenciais ou derivadas

São as virtudes anexas à justiça, relacionadas a ela enquanto convém em alguma de suas condições ou notas típicas, já assinaladas por nós ao estudá-la como virtude cardeal.
Se distribuem em dois grupos:
i) As que falham por defeito de igualdade entre o que dão e o que recebem.
ii) As que não se fundam em um direito estrito do próximo.
Ao primeiro grupo pertencem:
1. A religião, que regula o culto devido a Deus.
2. A piedade, que regula os deveres para com os pais.
3. A observância, dulia e obediência, que regulam os débitos para com os superiores. 


Ao segundo grupo pertencem:

1. A gratidão, pelos benefícios recebidos.
2. A vingança, o justo castigo contra os culpados.
3. A verdade, afabilidade e liberalidade no trato com nossos semelhantes.
4. A epiqueya ou equidade, que inclina a apartar-se com justa causa da letra da lei para cumprir melhor seu espírito.
Impossível estudar detalhadamente todas as virtudes.
4 Mas, dada sua excepcional importância, dedicaremos umas linhas à religião e à piedade para com os pais, limitando-nos à simples enunciação das demais.


A VIRTUDE DA RELIGIÃO
1. NOÇÃO


Pode ser definida como: “Uma virtude moral que inclina o homem a dar a Deus o culto devido como primeiro princípio de todas as coisas” (II-II, 81,3).
É a mais importante das virtudes derivadas da justiça e supera em perfeição sua própria virtude cardeal e a todas as demais virtudes morais em razão da excelência de seu objeto: o culto devido a Deus (81,6). Neste sentido é a que mais se aproxima das virtudes teologais, ocupando por conseguinte o quarto lugar na classificação geral de todas as virtudes infusas.
Alguns teólogos consideram a religião como verdadeira virtude teologal, mas sem fundamento algum. Não advertem que a religião não tem por objeto imediato o próprio Deus – como as teologais – mas o culto devido a Deus, que é algo distinto d’Ele. De todas as formas, é certo que é a virtude que mais se aproxima e se parece às teologais (81,5).
O objeto material da virtude da religião a constituem como os atos internos e externos do culto tributado por nós a Deus. E seu objeto formal ou motivo é a suprema excelência de Deus como primeiro princípio de tudo quanto existe.

2. ATOS 

A religião tem vários atos internos e externos. Os internos são unicamente dois: a devoção e a oração. Os externos, sete: a adoração, o sacrifício, as oferendas ou oblações, o voto, o juramento, o conjuro e a invocação do santo nome de Deus (II-II, 82 pról.). Vamos recordar brevemente.
1. A devoção consiste em uma prontidão de ânimo para se entregar às coisas que pertencem ao serviço de Deus (82,1). Os verdadeiros devotos estão sempre disponíveis e prontos para tudo quanto se refere ao culto ou serviço de Deus. Note-se, todavia, que essa pronta vontade de se entregar a Deus pode provir também da virtude da caridade.
Se pretende-se com ela a união amorosa com Deus, trata-se de um culto de caridade; se a intenção é o culto a serviço de Deus, é um ato da religião. São duas virtudes que se influem mutuamente: a caridade causa a devoção, enquanto o amor nos prontifica a servir ao amigo. A devoção, por sua vez, aumenta o amor, porque a amizade se conserva e aumenta com os serviços prestados ao amigo (82,2 ad 2).
Santo Tomás adverte que a devoção, como ato de religião que é, recai sempre em Deus, não em suas criaturas. A devoção aos santos não deve terminar neles mesmos, senão em Deus através deles. Nos santos veneramos propriamente o que têm de Deus, ou seja, a Deus neles (82,2 ad 3). Por onde se vê quão equivocados estão aqueles que vinculam sua devoção, já não a um determinado santo como causa final da mesma – o que já seria errôneo –, mas a uma determinada imagem de um santo ou da Virgem, fora da qual já não têm devoção alguma. Deve-se corrigir estas coisas com energia, sem “deixa-las passar em branco” sob o pretexto de que são gente ignorante, que não entendem essas coisas, etc.

Classes de culto. Deve-se distinguir entre culto de latria, dulia e hiperdulia.
a) A Deus se venera com culto de adoração ou de latria em virtude de sua excelência infinita. É tão próprio e exclusivo de Deus que, aplicado a qualquer criatura, constitui grave pecado de idolatria.
b) Aos santos lhes corresponde o culto de dulia, ou de simples veneração (sem adoração) pelo que possuem de Deus. A suas imagens se lhes deve um culto relativo, referido ao santo mesmo, não a sua imagem pintada ou esculpida.
c) À Virgem Maria, por sua singular dignidade de Mãe de Deus, se deve o culto de hiperdulia, ou de veneração muito superior à dos santos, mas muito inferior ao culto de latria, que é próprio e exclusivo de Deus. À Virgem Maria se venera, mas não se adora como Deus. Há um abismo infinito entre ambas espécies de culto.
d) A São José, por sua alta dignidade de esposo de Maria e pai adotivo de Jesus, alguns teólogos qualificam seu culto de protodulia, ou seja, o primeiro entre os cultos de dulia devido aos santos.
1. A oração (II-II,83) é o segundo ato interior da virtude da religião, que pertence propriamente ao entendimento, diferentemente da devoção que radica na vontade. Por sua extraordinária importância na vida espiritual lhe dedicamos integralmente a quarta parte desta obra.
2. A adoração (II-II,83) é um ato externo da virtude da religião, pelo qual testemunhamos o amor e a reverência que merece de nós a excelência infinita de Deus, além da nossa plena submissão ante Ele (84,1). De nenhuma maneira pode ser aplicada aos santos, nem sequer à Virgem Maria. Só adoramos a Deus.
3. O sacrifício (85) é o principal ato do culto externo e público. Consiste na oblação externa de uma coisa sensível com sua real imolação ou destruição realizada pelo sacerdote em honra a Deus para testemunhar seu supremo domínio e nossa submissão rendia ante Ele. Na nova lei – a do Evangelho – não há outro sacrifício senão o da Santa Missa, que, por sua renovação incruenta do sacrifício do Calvário, dá a Deus uma glória infinita e tem valor superabundante para atrair sobre os homens tantas quantas forem as graças necessárias. Já estudamos o que se refere à santa missa em outro ponto desta obra.
4. As oferendas ou oblações (89-87), que consistem na espontânea doação de uma coisa para o culto divino. São muitas e variadas, e a Igreja hoje deixa ao encargo dos legítimos costumes dos povos.
5. O voto (89) é “uma promessa deliberada e livre feita a Deus de um bem possível e melhor que seu contrário”. Seu cumprimento obriga grave ou levemente, segundo a importância da matéria sobre a qual recai. Sua transgressão voluntária é um pecado contra a religião, e caso se trate de uma pessoa consagrada a Deus (sacerdote ou religioso), sua transgressão constitui sacrilégio.
6. O juramento (89) é “a invocação do nome de Deus em testemunho da verdade” e só pode se prestar com verdade, com juízo e com justiça. Nestas condições é um ato de religião.
7. O conjuro (90) é outro ato de religião que consiste na “invocação do homem de Deus ou de alguma coisa sagrada para obrigar a outro a executar ou abster-se de alguma coisa”. Feito com o devido respeito e com as condições necessárias (verdade, justiça e juízo), é licito e honesto. A Igreja o emprega principalmente nos exorcismos contra o demônio.
8. A invocação do santo nome de Deus. Consiste principalmente no “louvor externo – como manifestação do fervor interior – do santo nome de Deus no culto público ou privado” (91). É útil e conveniente acompanha-lo de canto ou música “para acender a devoção dos fiéis mais débeis” (91,2).
Contra este ato de religião está a invocação do santo nome de Deus em vão. O nome de Deus é santo e não deve ser pronunciado sem a devida reverência e, por essa razão, nunca em vão ou sem causa. Págs. 256 - 265.


Link para a continuação do post: TRECHOS DA OBRA: SER OU NÃO SER SANTO... EIS A QUESTÃO: AS VIRTUDES DERIVADAS OU ANEXAS (PARTE 3)



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2 Cf. Santo Tomás, II-II,79.
3 Ibid, 61; cf. 58 a 5.6.7.
4 Já o fizemos amplamente em nossa Teologia da la Perfección Cristiana, p. 580 ss.

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